A «Campanha Admirável» de Bolívar recordada por Juvenal Herrera Torres

Miguel Urbano Rodrigues

11 de novembro de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


O pensamento de Bolívar — tal como acontece com o pensamento de homens como Karl Marx — transcende os tempos. Tem e terá continuadores. Por isso se fala do pensamento bolivariano, como se fala do pensamento marxista. Cada qual, naturalmente, com os seus próprios esquemas e estilos. Um e outro, partindo de mundos e realidades diferentes, fizeram a critica fulminante da opressão existente e traçaram caminhos aos povos. - Juvenal Herrera Torres, in Bolívar: La Libertad del Ser y del Pensar, pg 119.

Não é frequente sentir o desejo de escrever sobre um livro imediatamente depois de o ler. Isso aconteceu agora com Bolívar y su Campaña Admirable.(1) Já conhecia outras obras do autor. Apreciara sobretudo Simón Bolívar - El hombre de América, presencia y camino,(2) um ensaio fascinante sobre o grande revolucionário latino americano.

Juvenal Herrera Torres é um colombiano de Medellin, olhado como historiador maldito, no seu país, pelos intelectuais da oligarquia.

Não lhe perdoam o esforço desenvolvido como universitário e escritor para «recuperar» Bolívar e reflectir sobre a actualidade do seu pensamento e da sua obra.

Quando o encontrei há dias em Havana falámos durante muitas horas de Bolívar e da teia de calúnias que as forças mais reaccionárias do Continente continuam a tecer em torno do homem, do político e do revolucionário.

Desde a insurreição que abriu caminho à efémera I Republica na Venezuela, a vida de Bolívar foi um batalhar permanente pela independência e unidade dos povos da América Latina.

Precisamente por ter sido um revolucionário, o Libertador tornou-se um pesadelo para as forças que tudo fizeram para lhe destruir a obra e apagar a sua memória. Não podendo ignorar a sua intervenção na História, criaram o mito dos dois Bolívares: enaltecem o general vitorioso, mas satanizam o estadista, o pensador político, o reformador social.

Juvenal Herrera desmonta no seu último livro essa tese fantasista. Para atingir o objectivo usa como instrumento uma das campanhas menos conhecidas de Bolívar.

O discurso do historiador é transparente e permite ao leitor, colocado no cenário temporal dos acontecimentos, acompanhar no dia a dia a historia em movimento. é dos actos e das palavras que nasce a evidência: entre o militar e o político não ha contradições, mas, pelo contrário, uma grande harmonia. São complementares.

é natural que a memória da Campanha de Bolívar, em 1812/13 seja muito incómoda para as oligarquias colombiana e venezuelana. Ela ficou a assinalar uma prodigiosa façanha militar, com implicações políticas continentais e chamou a atenção dos povos da América e para o génio do jovem que a concebeu e concretizou.

Bolívar, tinha apenas 29 anos quando em Cartagena — um dos últimos redutos, no Caribe, da rebelião contra a coroa espanhola — ofereceu os seus serviços ao Congresso de Nova Granada.
O coronel Manuel Catillo e Labatut, que exerciam então o comando militar naquele bastião independentista, não levaram muito a sério o pedido do jovem caraquenho que regressava derrotado de Puerto Cabello, na Venezuela. Mas, perante a insistência, Camilo Torres, presidente do Congresso da Nova Granada, tomou a iniciativa de lhe atribuir uma tarefa irrelevante: instalar-se com 70 homens em Barranca, um vilarejo no Baixo Magdalena. Ficou claro que a sua missão seria de simples vigilância. Estava-lhe vedado iniciar qualquer operação militar sem receber ordens de Cartagena.

As tropas espanholas ocupavam então as principais cidades de Nova Granada, incluindo Santa Fé de Bogotá .

Pela audácia, imaginação, talento e concepção estratégica, aquilo que Bolívar fez nas semanas seguintes traz à memória — guardadas as proporções, dados os seus insignificantes recursos humanos e materiais — campanhas de Alexandre, Aníbal, César e Bonaparte.

Em Barranca, Bolívar reforçou o seu destacamento de soldados famélicos com 130 voluntários, construiu dez balsas e navegou rio acima.
No dia 23 de dezembro atacou e tomou Tenerife, defendida por uma guarnição de 500 homens. Venceu.

Informou Cartagena da sua vitoria, mas não esperou pela resposta. Seguiu para o Norte pelo Magdalena e derrotou os espanhóis em Mompós. Encontra ali 15 barcos, e obtém a adesão de mais 300 voluntários.

As guarnições realistas — milhares de soldados e oficiais — ao saberem da sua aproximação abandonam as praças que ocupavam. Entra assim quase sem combater em El Banco, Chiriguaná, Tamalameque e Puerto Real.

Em apenas 17 dias limpou de tropas espanholas o Vale do Baixo Magdalena.

No inicio de Janeiro de 1813, dispõe já de um pequeno exército de 700 homens. Para financiar a campanha expropria os bens dos inimigos da independência nos pueblos conquistados e estabelece o empréstimo obrigatório para os moradores ricos.

Antes de iniciar as operações militares, Bolívar tornara pública, em 15 de Dezembro, uma proclamação que ficou conhecida como o Manifesto de Cartagena, que antecipou, pelo rumo traçado e pelas opção ideológica, a Carta de Jamaica, o discurso no Congresso de Angostura, o pensamento do Congresso Anfictiónico do Panamá e o Projecto da Constituição da Bolívia.

O Manifesto de Cartagena é simultaneamente uma reflexão sobre a História e a síntese da sua futura estratégia revolucionaria. Segundo o filósofo Fernando Gonzalez, «está ali a história da Revolução até 1813 e é e será sempre um ensinamento para a América do Sul».

Bolívar deixa entrever o seu objectivo imediato:

«A Nova Granada viu sucumbir a Venezuela; por conseguinte, deve evitar os escolhos que destroçaram aquela. Para esse efeito apresento como medida indispensável para a segurança da Nova Granada a reconquista de Caracas».

Em Cartagena de índias e Tunja, onde se instalara o Congresso, as notícias das vitorias de Bolívar provocam reacções antagónicas. O povo recebe-as com entusiasmo. Os políticos, com poucas excepções, e os comandos militares afirmam que Bolívar violou as instruções recebidas e está actuando de maneira irresponsável. O coronel Manuel Castillo acha que é um demente, que nada entende da arte da guerra.

Os comandantes espanhóis concluem que o jovem venezuelano vai permanecer onde está para consolidar as áreas reconquistadas.

Mas é outro o seu plano. Depois de simular que iria subir o Magdalena para atacar Bogotá, abandona o vale e, numa manobra rapidíssima, toma a 8 de Janeiro a praça de Ocaña, ponto estratégico que domina a passagem da Cordilheira Oriental dos Andes.

Recrudesce em Tunja e Cartagena, entre os politiqueiros, o clamor contra o caudilho venezuelano.

Bolívar não rompe, mas não se submete. Pede autorização para avançar sobre Cucuta e Mérida, rumo a Caracas.

Castillo qualifica de «aventura quimérica» o projecto, próprio de uma «cabeça delirante». A desproporção de forças é efectivamente enorme. Enquanto Bolívar dispõe então de 1600 soldados mal alimentados, mal vestidos e pior armados, as forças realistas, sob o comando de Monteverde, contam com mais de 16 mil homens (e uma excelente artilharia) concentrados em lugares estratégicos.

Entretanto, os inimigos de Bolívar são derrotados militarmente na Costa pelos realistas e a relação de forças muda no Congresso. Camilo Torres, com o apoio solidário de António Nariño — o grande prócer da independência — consegue que Bolívar seja nomeado comandante-chefe. De repente, recebe autorização para avançar sobre a Venezuela.

Essa segunda parte da campanha foi o complemento natural da primeira.

O génio estratégico e táctico de Bolívar impôs-se. Confundir um adversário que no início tinha sobre ele uma superioridade de 10 para 1 foi a permanente preocupação do Libertador. Cartas suas com planos falsos apreendidas a mensageiros ajudaram muito. Nunca estava onde os peninsulares o imaginavam e caía sobre eles quando e onde era menos esperado. Em 23 de Maio entrou em Mérida.

Não cabe aqui uma síntese do que foi a sua cavalgada. No fim de julho destroçou os realistas em Targuanes, depois de os expulsar de Trujillo. Avança sobre Valência, ocupa-a, e no dia 6 de Agosto é recebido triunfalmente em Caracas, abandonada pelo exército espanhol. Em apenas oito meses, durante os quais percorreu mais de dois mil quilómetros, varreu os espanhóis de um vastíssimo território, de ambos os lados da Cordilheira, e libertou Caracas.

O DECRETO DA «GUERRA A MUERTE!»

Juvenal Herrera chama a atenção no seu livro para a importância que assumiu na Campanha Admirável uma decisão de transcendental significado tomada por Bolívar: o polémico decreto de «Guerra a muerte!».

Ao ocupar Trujillo, apercebera- se da indiferença da população no recebimento daqueles que chegavam para a libertar.

Na Venezuela — contrariamente ao que ocorria em Nova Granada, onde a herança da rebelião dos comuneros, no final do século XVIII, deixara raízes na consciência das massas — o povo não se tinha sentido representado no discurso dos próceres da I Republica. Esta fora obra de uma aristocracia de brancos descendentes de espanhóis que, embora invocando os ideais da Revolução Francesa, mantinham a escravatura e desprezavam índios e mulatos e pretendiam conservar os seus privilégios. O próprio Bolívar pertencia pelo nascimento a essa classe social .

Atentos ao sentimento das classes oprimidas, os realistas compreenderam que, mediante uma política demagógica, poderiam transformar em aliada a massa dos oprimidos. Por um lado desencadearam uma feroz repressão contra a classe dominante dos crioulos brancos. Simultaneamente, promoveram o levantamento dos negros, dos índios escravizados, dos mestiços, dos libertos. O clero, ultra reaccionário, ajudou, exigindo fidelidade ao rei de Espanha, Fernando VII, que representava Deus .

Como sublinha Juvenal Herrera, «Bolívar não esquecia que muito mais de metade das forças realistas na Venezuela era formada por nativos que haviam adquirido o habito da obediência ao império, que nunca tinham sido livres e portanto nada sabiam de liberdade, e, assim, nessas circunstancias, a guerra de independência tinha ao mesmo tempo certo caracter de confrontação civil».

Ao declarar por decreto uma guerra sem quartel aos ocupantes estrangeiros, Bolívar pretendeu «divorciar a fidelidade a Cristo da fidelidade ao Estado espanhol». O objectivo era a «substituição do rei, como símbolo de fraternidade e justiça pela América e a Republica».

Vale a pena recordar que Carlos IV, deposto por Napoleão, tinha declarado publicamente que «os americanos não têm necessidade de saber ler (...) basta que sejam reverentes para com Deus e o seu representante, o Rei de Espanha».

«Ao opor a 'guerra a muerte' ao ódio de castas e raças — comenta Juvenal Herrera — Bolívar indicou ao povo que a divisão não se faria de acordo com o nível social ou a cor da pele , que a pátria era o património comum de todos os nela nascidos».

A «Campanha Admirável» não visava a liquidar o domínio espanhol no Continente. A curto prazo não seria possível. Bolívar tinha consciência disso. Meses depois da retomada de Caracas, finda a guerra contra a França na Europa, a Espanha ficou com as mãos livres para combater a rebelião das colónias na América. Em breve, o general Pablo Morillo desembarcaria com um exército de 15 mil veteranos das guerras contra Napoleão. Dez anos de luta transcorreram ate à capitulação no Peru do último exército da Espanha na América do Sul.

Mas a Campanha Admirável foi, alem de assombrosa façanha militar, uma experiência que permitiu a Bolívar conhecer melhor os povos da Região, reflectir sobre o tipo de instituições a eles adequadas e estruturar a sua concepção do exército libertador.

Para o jovem general, o exército deveria ser o braço armado do povo, um instrumento de garantia das liberdades e direitos dos cidadãos, ao serviço da nação, garantia futura da independência.

Datam dessa época os primeiros atritos com Santander, que, anos depois seria o seu maior adversário.

O REFORMADOR REVOLUCIONáRIO

Quando, finda a guerra, Bolívar tratou de aplicar na Grande Colômbia — Venezuela, actual Colômbia, Panamá e Equador — as suas ideias libertárias, tornou-se inevitável o conflito com uma parcela ponderável dos seus generais e os defensores de um parlamentarismo caricatural inspirado em modelos europeus.

Bolívar libertou os escravos, determinou a restituição das terras aos índios, instituiu a educação gratuita, criou hospitais, asilos e creches, protegeu a produção nacional da livre concorrência com as mercadorias importadas, incentivou a indústria e o comércio, nacionalizou as minas e decretou o monopólio estatal das riquezas do subsolo, moralizou a Justiça, defendeu a soberania nacional no diálogo com os EUA e a Inglaterra, então a primeira potência mundial.

A sua ditadura do ano 28, tão caluniada pelas forças da direita, foi um regime revolucionário e progressista que antecipou ideias da ditadura do proletariado, tal como a viria a definir Lenine quase um século mais tarde.

Para as oligarquias locais, que já detinham o poder económico, a independência deveria garantir-lhes o poder político. Opunham-se a mudanças de fundo nas estruturas sociais e económicas herdadas do império espanhol.

Bolívar concluiu que a vitoria militar seria inútil socialmente se não adoptasse uma política que permitisse a reconstrução do Estado em beneficio das grandes maiorias. As suas ideias universais chocavam-se frontalmente com o regionalismo conservador, os egoísmos de classe, a arrogância e a mesquinhez da nova aristocracia militar.

A Igreja excomungou Bolívar, comparou-o a satanás. Os inimigos chamaram-lhe «caudilho dos descamisados», «monstro do género humano», «tirano libertador de escravos», etc.

Para Santander, que considerava uma dádiva da Providencia a vizinhança dos EUA, o exército deveria ser o braço armado do estado oligárquico, tal como o concebia. A propriedade privada era, na sua concepção da democracia, sagrada. Daí a sua irredutível oposição ao Bolívar revolucionário, quando este, ao regressar do Peru, após cinco anos de ausência, alarmado com o espectáculo de miséria oferecido pelas massas oprimidas, desabafou numa carta que lhe dirigiu: «Não sei como não se levantaram ainda todos estes povos e soldados ao concluírem que os seus males não vêm da guerra, mas de leis absurdas».

Santander, ao tempo vice-presidente da Grande Colômbia, acusou-o de querer desencadear «uma guerra interior em que ganhem os que nada têm, que são muitos, e percam os que temos, que somos poucos».

Não é de surpreender que Washington condenasse com veemência o projecto bolivariano de uma América Latina unida numa vasta confederação de Estados irmãos. Os governos de Monroe e de John Quincy Adams viram nele «um déspota militar de talento», o «louco da Colômbia», o libertador de negros. Os agentes consulares norte-americanos no Peru financiaram múltiplas conspirações contra o revolucionário cujas ideias e actos eram incompatíveis com os projectos de Washington para o Sul do continente. Foi um desses diplomatas que incentivou a invasão do Equador pelo exército peruano. Outros deram apoio permanente ao general Ovando, responsável pelo assassínio do marechal Sucre, o mais puro dos grandes soldados de Bolívar.

Como recorda Juvenal Herrera no seu importante livro sobre a Campanha Admirável, assistiu-se naquela época, tão mal estudada nas escolas da América Latina, a uma aliança de quantos se opunham à concretização «do ideal bolivariano que identificava a guerra de libertação com uma revolução social que extinguisse os privilégios e eliminasse todas as formas de opressão, elevando os habitantes ao nível de cidadãos».

Sucre costumava dizer que Bolívar diferia de todos os seus companheiros porque tinha o dom de «ver o futuro».

Em 1830, quando ele morreu amargurado, as classes dominantes festejaram em todo o continente o seu desaparecimento físico. Estavam convictas de que a sua obra fora definitivamente destruída. Engano.

O Libertador desenvolveu uma unidade orgânica harmoniosa entre o pensamento e a acção. O seu exemplo, as suas lições, a sua concepção da unidade latino-americana não foram esquecidos. Hoje, transcorridos 173 anos, o projecto revolucionário bolivariano permanece vivo e as suas bandeiras são retomadas em toda a América Latina


Notas de rodapé:

(1) Juvenal Herrera Torres, Bolívar y su Campaña Admirable, 135 pgs, Ed. de Corporación Bolivariana Símon Rodriguez, Medellin, Colombia, 2003. (retornar ao texto)

(2) Juvenal Torres Herrera, Bolívar, el hombre de América, presencia y camino, 495 pgs, Universidade Autónoma de Guerrero, Mexico, 2001, 2ª edição. (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2021