Compreender para avançar -
Os povos do Iraque, do Afeganistão e da Palestina na vanguarda da luta

Miguel Urbano Rodrigues

16 de novembro de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Em 1789, quando o povo de Paris tomou a Bastilha e, posteriormente, Luís XVI foi preso e decapitado, a Europa das Monarquias de Direito Divino viu na França, com apoio da Inglaterra, um pais sem lei, governado por aventureiros sanguinários. Logo se formaram contra ela coligações.

Milhões de pessoas não compreenderam então que a Revolução Francesa era um acontecimento decisivo para o progresso da humanidade.

Há poucos anos, em Washington, os governantes criaram a figura dos rogue states para colocar na lista de alvos de eventuais guerras preventivas países que, no âmbito da sua estratégia planetária, pretendiam atacar e, eventualmente, ocupar. A expressão, propositadamente vaga, não estabelecia fronteiras nítidas entre Estados, países e povos. Através de campanhas perversas de desinformação, o objectivo era claro: persuadir a opinião publica ocidental de que nessas terras sem ordem imperava a lei da selva imposta por bandidos e terroristas. Libertá-las e democratizá-las seria um dever civilizatório. A doutrina do "humanismo militar" — bem analisada por Perry Anderson — deu suporte teórico às agressões, justificadas em nome de grandes princípios. E, sem procuração dos próprios aliados, os EUA atribuíram-se o direito de desencadear a guerra quando e onde o julgassem oportuno. O ataque à Jugoslávia foi um ensaio geral.

Seria, obviamente, um absurdo estabelecer qualquer paralelo entre a França revolucionária do final do século XVIII e as sociedades afegã e iraquiana contemporâneas quando submetidas a ditaduras brutais. O que se repetiu foi a desinformação. Em ambas as situações históricas foi desenvolvido um esforço sistemático para deformar o significado dos acontecimentos e persuadir o mundo de que e a guerra era absolutamente indispensável e um acto ético.

Entretanto, a grande mentira sobre o Iraque, mesmo nos EUA, só funcionou parcialmente. Os dirigentes satânicos (Sadam, Osama Ben Laden e o mullah Omar) não foram capturados, nem encontradas armas de extermínio maciço. Ficou transparente que:

  1. Os ditadores e lideres fundamentalistas não eram o objectivo real.
  2. A vítima dessas guerras de agressão foram os povos.

GUERRAS DE LONGA DURAÇÃO

Transcorreram mais de dois anos desde que o Afeganistão foi invadido e as suas principais cidades bombardeadas com selvajaria. No Iraque, a agressão principiou há oito meses e Washington — com a ajuda da Grã-Bretanha — executou-a, desafiando o Conselho de Segurança das Nações Unida. Milhões de pessoas saíram às ruas em 600 cidades para condenar essa guerra criminosa.

Em ambos os casos governos fantoches instalados pelos EUA não controlam a situação. No Afeganistão as tropas de estrangeiras, sob comando da NATO, não saem praticamente de Kabul e das bases militares ali instaladas e no Iraque o comando estadunidense reconhece que se implantou o caos.

Transcorreu algum tempo antes que duas outras conclusões se impusessem a sectores cada vez mais amplos da humanidade:

  1. Os povos dos países invadidos e bombardeados cujas riquezas são saqueadas rejeitam em massa a ocupação estrangeira. Resistem.
  2. Esses povos, ao lutarem pela libertação nacional, batem-se hoje pela humanidade inteira no grande combate em desenvolvimento contra um sistema de poder de contornos neofascistas.

Nos EUA (e em menor escala na Grã-Bretanha) é transparente a desorientação dos responsáveis pelo rumo dos acontecimentos.

Nos primeiros dias de Novembro, o derrubamento no Iraque de dois helicópteros (22 militares mortos e dezenas de feridos) funcionou como espoleta de críticas vindas de sectores sociais muito diversificados. A certeza de que na Mesopotamia e na Ásia Central apenas principiou uma guerra que, segundo o Presidente Bush, havia terminado em Abril com uma grande vitoria dos EUA começa a adquirir a dimensão de um pesadelo para os eleitores da grande Republica.

O que desespera o norte-americano médio não é tanto tomar conhecimento de crimes repugnantes cometidos pelas suas Forças Armadas, nem saber que no Afeganistão e no Iraque, ruínas e museus que eram património da humanidade foram bombardeados pela USAF ou saqueados ante a indiferença dos marines. Os egoísmos próprios de uma sociedade de consumo cada vez mais desumanizada pela Mc World Cultura funcionam como defesa, embotando sensibilidades. O que gera sobretudo angústia nos eleitores é o descobrimento de que foram enganados e o temor de que aquelas guerras distantes sejam de longa duração e terminem em desastre e humilhação como aconteceu no Vietnam. O desembarque dos caixões gera tensão e angustia crescentes.

O próprio subsecretário Paul Wolfowitz, um dos ideólogos da estratégia de dominação planetária, reconheceu (ao comparecer, deprimido, perante a televisão, após o bombardeamento do hotel de Bagdad onde se hospedava) que a resistência iraquiana se apresenta organizada e tudo aponta para um conflito prolongado. O procônsul em Bagdad, Paul Bremer, e os comandantes-chefes, generais Abizaid e Ricardo Sanchez, têm a mesma opinião.

Já não é possível repetir a cantilena da Al Qaeda e atribuir a Ben Laden e a gente de Sadam Hussein acções reveladoras do alto nível de organização alcançado em escasso tempo pela Resistência do povo do Iraque à agressão dos EUA e da Grã Bretanha.

A desorientação do alto comando estadunidense assume aspectos grotescos. Dela tivemos um exemplo expressivo após o derrubamento do segundo helicóptero. A primeira nota oficial admitia que o aparelho pudesse ter caído por avaria mecânica. Mas os depoimentos de testemunhas que descreveram como foi abatido por um míssil terra-ar, obrigaram a Força Aérea a reconhecer o óbvio. A reacção, inesperada, foi recebida com espanto. O comando decidiu bombardear, como represália, o bairro onde caiu o helicóptero. Nos últimos dias, áreas urbanas onde soldados americanos foram atacados começaram a ser bombardeadas em várias cidades, no âmbito de uma operação intitulada "Martelo de ferro".

Esses gestos fazem lembrar pela irracionalidade e ineficácia vindictas das SS nazis. No Pentágono, um grupo de generais dedicou muitas horas a estudar o filme de Pontecorvo "A batalha de Argel", empenhado em extrair ensinamentos da feroz repressão que os pára-quedistas de Massu desencadearam na Kasbah daquela cidade contra a população muçulmana, na esperança ilusória de aniquilar ali a rebelião da FLN.

Ao que parece, não chegaram a conclusão alguma útil. A iniciativa, por si só, é esclarecedora da mentalidade neurótica que se implantou no Pentágono.

ENTRE A TRAGÉDIA E A FARSA

A atmosfera de desalento e medo que se instalou nos quartéis norte-americanos transparece de artigos e entrevistas publicados pela chamada grande imprensa. As mortes diárias de soldados, abatidos a tiro, ou vítimas de minas que explodem sob os carros em que viajam contribuem para tornar rotineiro os desabafos: "amanhã toca-me a mim!" e "o que faço eu aqui?"

As sentinelas, quando colocadas em postos perigosos, disparam contra tudo o que se move, incluindo crianças, cães e gatos. Uma das consequências desse clima de pânico permanente é o aumento de massacres de civis.

A soldadesca estadunidense não é nem melhor nem pior do que outras. O seu comportamento abominável resulta da engrenagem que a jogou no caldeirão iraquiano. O corpo de oficiais, sobretudo nos escalões superiores, está contaminado pelas sementes do fascismo. E, quando isso acontece, os "rapazes", na base da pirâmide, começam a cometer crimes abjectos. Sobre a chacina de Mazar-i-Charif, o saque de Kandahar e o corte de línguas aos prisioneiros em Seberghan, no Afeganistão, já foram escritas milhares de palavras. Talvez a imagem mais dramaticamente reveladora do nível de desumanização a que desceram os invasores estadunidenses, transformados em peças de uma maquina monstruosa, sejam as fotos de crianças iraquianas e afegãs (algumas com menos de seis anos) transmitidas no dia 10 de Novembro pp pela cadeia de TV árabe Aljazeera e logo amplamente divulgadas em dezenas de países. Essas crianças aparecem a ser amarradas e maltratadas por soldados do Exército dos EUA.

No mesmo dia, a BBC, numa entrevista a um cientista britânico da ONG Medact, alertou para uma tragédia em andamento: a saúde das próximas gerações de iraquianos será gravemente afectada pelas consequências da destruição dos sistemas de abastecimento de água potável, pela falta de vacinas básicas, pela contaminação da atmosfera provocada pelos incêndios dos oleodutos e poços de petróleo.

Reportagens assinadas por jornalistas sérios e de prestigio, como o inglês Robert Fisk e o australiano John Pielger, e artigos de Michel Chossudovsky e da Monthly Review esboçam de Bagdad, Mossul, Tikrit, Fallujah e outras cidades do país quadros de uma terra na qual o caos se implantou no quotidiano, eliminando a fronteira entre o real e fantástico. A tropa dos EUA surge nele como conjunto alucinatório. Movimenta-se, actua, pensa, dispara e mata imitando ora personagens de tragédias de Eurípedes ora figuras de novelas de Garcia Marquez.

É improvável que Bush e Rumsfeld saibam sequer que Eurípedes existiu. A pouca intimidade de ambos com a história e o seu desconhecimento do teatro grego não impedem, porem, que a "solução" encontrada pelo Pentágono expresse bem o pânico e a desmoralização da tropa. Rumsfeld e os seus generais afirmam que não haverá uma redução brusca dos efectivos do exército de ocupação. Uma tal medida é, a curto prazo perante a dimensão das acções armadas da Resistência, militarmente impensável. Seria, aliás, interpretada como acto capitulador. Mas a decisão tomada de substituir o mais rapidamente possível os 128 mil soldados e oficiais dos EUA que se encontram, no Iraque por um número sensivelmente igual de militares mobilizados para o efeito vale por uma prova da desconfiança que inspira hoje o exército de ocupação aos seus próprios chefes.

A esperança do Pentágono de que a França, a Alemanha e a Rússia — que dispõem de exércitos profissionais respeitados em Washington — participassem na ocupação do Iraque esbarrou com o não categórico dos governos daqueles países. Os contingentes militares polaco, italiano e espanhol são inexpressivos e os destacamentos enviados, a pedido de Aznar, por republicas "bananeras" da América Central lembram tropas de opereta.

Indecorosa é também a cumplicidade do governo PSD- PP com os agressores anglo-americanos. O envio de um destacamento da Guarda Nacional Republicana para o Sul do Iraque não é apenas um acto de capitulação. Configura uma ofensa ao povo cujas Forças Armadas cumpriram um papel histórico na Revolução de Abril. Militarmente é uma farsa na qual os homens da GNR, voluntários ou não, pouco importa, são tratados como bonecos robotizados que podem vir a ter a sorte dos carabineiros e soldados italianos do quartel de Nasiriya a que estavam aliás destinados. Exigir o regresso imediato da GNR passou a ser um dever nacional.

Outra vergonha foi a presença de jornalistas portugueses empenhados em escrever sobre a missão da GNR. O sequestro de um repórter da TSF e o ferimento de uma moça da SIC valem por um convite à reflexão sobre um tipo de jornalismo que não dignifica a profissão.

A Hollywood ligada ao Poder manifestou desde o início da agressão ao povo do Afeganistão a sua disponibilidade para colaborar com Washington. Reiterou a oferta quando o Iraque foi invadido e ocupado. Mas hoje parece cada vez mais difícil ser convincente na apologia da grandeza militar dos EUA. A Coreia e o Vietnam abalaram muito o mito do heroísmo dos marines e dos rapazes da tropa de linha e mais ainda o do génio estratégico dos seus generais, trabalhosamente construído após a guerra contra o Japão e a Alemanha.(1)

Os EUA, após a desagregação da URSS, dispõem de uma superioridade militar esmagadora no mundo actual. Não se antevê em tempo previsível a emergência de uma potência em condições de atingir, no tocante a armamentos, um nível sequer próximo do seu.

A capacidade de destruir das suas Forças Armadas é praticamente ilimitada. Isso ficou demonstrado durante a Guerra do Golfo em 90, obteve confirmação no ataque à Jugoslávia e, agora, na nova e devastadora agressão ao Iraque.

Mas a indiscutida superioridade militar dos EUA é posta em causa quando, em países ocupados, as suas forças terrestres são obrigadas a enfrentar inimigos que desenvolvem contra elas uma guerra não convencional. Os êxitos alcançados no Afeganistão e no Iraque pela Resistência vieram chamar a atenção para a incapacidade do comando norte-americano e os seus efeitos no baixo moral das tropas.

Segundo os porta-vozes do Pentágono, os ataques da Resistência aumentam num ritmo alarmante. Actualmente verificam-se entre três e quatro dezenas de acções ofensivas diárias contra os ocupantes. No inicio eram ataques, isolados, a tiro, nas zonas urbanas, ou iniciativas de suicidas. Agora, no deserto, nas montanhas, nas cidades multiplicam-se emboscadas, explosões de minas e de carros- bomba. As forças patrióticas começaram a utilizar um armamento diferente. De repente, comboios de carga, colunas em marcha, objectivos estratégicos são atingidos por fogo de morteiros pesados, por lança granadas, ou mesmo por mísseis terra-terra. A destruição de mais dois helicópteros no dia 15 de Novembro (17 mortos) gerou uma atmosfera de pânico nos quartéis da Força Aérea.

A sabotagem dos oleodutos e das instalações petrolíferas entrou quase no quotidiano. A produção de petróleo, que atingira 2,1 milhões de barris diários no mês anterior à guerra, caiu para metade.

Os ataques empreendidos contra o hotel das Nações Unidas, o edifício da Cruz Vermelha, a sede do governo de transição fantoche, o hotel onde se encontrava Paul Wolfowitz, o quartel italiano em de Nasiriya, e numerosas instalações militares estadunidenses deixam entrever, segundo o Pentágono, um surpreendente nível de preparação, capacidade técnica e organização.

Quase simultaneamente, apesar das pressões a que foram submetidas, as Nações Unidas e a Cruz Vermelha Internacional decidiram retirar do pais todo o seu pessoal estrangeiro, dado a insegurança generalizada existente.

As paredes da tríade EUA-Grã Bretanha-Espanha foram, entretanto, abaladas, pela transferencia para a Jordânia do pessoal diplomático da embaixada de Espanha. Aznar, o mais servil dos aliados de Bush, não conseguiu evitar essa medida, reveladora das fragilidades da coligação. Na Itália a morte de 19 soldados e carabineros e dois civis em Naziriya provocou uma onda de emoção. Berlusconi está em maus lençóis. Os protestos contra a guerra, exigindo o regresso das tropas assumem ali grandes proporções. Podem e devem ser retomados em diferentes países europeus.

Substituir o mais breve possível, antes da realização de eleições (obviamente manipuladas), o actual governo fantoche por outro igualmente tutelado por Washington, mas anunciado como plenamente autónomo tornou-se quase uma obsessão em Washington. Há poucas semanas a Casa Branca e o Pentágono opuseram-se a essa "solução". Agora passaram a defendê-la. A manobra criaria condições políticas para a redução do exército de ocupação. O que se esboça, num clima de grande confusão, é o prólogo do fracasso de toda uma ambiciosa estratégia planetária, concebida para a eternidade

A ARENGA BUSHIANA

Nos EUA, a propaganda e a contra-informação estão funcionado mal. Por vezes, o esforço para enganar a opinião publica produz efeitos contraproducentes. A tentativa para transformar a soldada Jessica Lynch numa heroina nacional — é um exemplo — fracassou. No livro em que ela descreve a sua "odisseia" — escrito por um jornalista — afirma ter sido violada. Mas no lançamento, a jovem declarou não ter disparado um só tiro e não se lembrar de nada, porque estava desmaiada. Os médicos iraquianos que lhe salvaram a vida após o ataque que destruiu o veículo em que viajava definiram já o livro como um novela caluniosa.

A indigência mental de George Bush filho aparece mais nítida nestas semanas. O Presidente sente-se no dever de intervir mais. Mas as suas falas, pouco inteligentes, comprometem em vez de ajudar.

Relatos sobre a conferencia de imprensa do início de Novembro transmitem o panorama de um desastre mediático. Bush tentou persuadir os jornalistas de que as coisas vão cada vez melhor no Iraque, cujo povo, apesar de alguns contratempos, começaria a compreender os benefícios da solidariedade dos EUA, que o libertaram e se esforçam para lhe abrir as portas da democracia, do bem estar e da felicidade.

Falou do avanço da reconstrução do país no momento em que bombas e mísseis americanos, em operações de vindicta, voltam a explodir em cidades iraquianas. Na sua fraseologia peculiar, qualificou de mensageiros da democracia e da liberdade os soldados dos EUA que disparam sobre as populações, e chamou patriotas aos traidores e mercenários que colaboram com o exército de ocupação. Simultaneamente definiu como perigosos terroristas, criminosos e bandoleiros os combatentes iraquianos que executam acções de Resistência.(2)

Insistiu enfaticamente que o seu objectivo prioritário é "democratizar todo o Médio Oriente".

Um jornalista sintetizou a impressão que lhe causou a entrevista presidencial numa frase breve: "foi uma arenga labiríntica, com montagem kafkiana, sem o talento do mestre checo".

Al Gore, que acompanhou aquilo pela televisão, emitiu um juízo mais severo. Na sua opinião, Bush está a conseguir o que parecia impossível: a política que desenvolve e defende é — afirmou — tem um estilo fascista mais acentuado que a do Big Brother do romance 1984, de George Orwell.

Na sua enciclopédica ignorância, Bush filho desconhece que os resistentes iraquianos árabes que nas margens do Tigre e do Eufrates se opõem à cruzada de barbárie estadunidense têm como ancestrais povos, criadores de grandes civilizações, que há mais de três mil anos se bateram junto às muralhas de Nimrod e Babilónia, de Susa e Elam, de Ctesifon e Seleucia. Descendem de muitos povos que resistiram a gregos, romanos, bizantinos, sassanidas, mongois, turcos e ingleses. Pelos grandes rios da Mesopotamia navegaram Hamurabi, Assurbanipal, Nabucodonosor, Dario, Alexandre, Crassus, Trajano, Cosroes, Hulagu Khan, sultões otomanos e califas abássidas. Procônsules britânicos precederam ali o procônsul de Bush filhote.

Os resistentes que não aceitam a ocupação estadunidense e contra ela se levantam representam o povo de cultura árabe que resultou da fusão de muitos povos que deixaram marcas profundas na terra milenária da Mesopotamia. Quem encarna ali a barbárie — nunca é excessivo repetir essa evidencia — são os generais e soldados da US Army e da US Air Force e os seus aliados britânicos.

A MARÉ ESTÁ A SUBIR

O exibicionismo de Bush e o seu discurso cavernícola chamam a atenção, mas não se deve esquecer que a capacidade de intervenção real do presidente é escassa, pois não passa de instrumento e símbolo do sistema de poder neofascista, responsável pela estratégia de dominação planetária dos EUA.

Como combater essa estratégia é hoje o grande desafio que a humanidade enfrenta.

Em diferentes Conferencias e Seminários internacionais tenho reflectido sobre a questão. No âmbito deste artigo pretendo apenas alertar os leitores para alguns aspectos práticos e actuais dessa luta.

Em primeiro lugar parece-me negativa a conclusão de que, no terreno da praxis não se pode fazer quase nada enquanto as forças progressistas que repudiam a globalização neoliberal e as políticas imperiais que a sustentam não elaborarem uma alternativa credível, e tanto quanto possível consensual, ao sistema existente.

Tal atitude conduz ao imobilismo e concentra a luta em debates teóricos travados sobretudo no Fórum Social Mundial e em múltiplos Fóruns e Conferencias, que, em escala continental e nacional, manifestam a esperança sintetizada no lema "outro mundo é possível".

É um facto que sem teoria não há mudança social, e que nos últimos anos a reflexão sobre a crise de civilização se aprofundou muito. Trabalhos muito criativos de intelectuais marxistas como o húngaro István Mészaros, o francês George Gastaud e o egípcio Samir Amin — apenas três exemplos — representam valiosas contribuições para a compreensão da crise estrutural do capitalismo, da extrema agressividade do imperialismo estadunidense e de acontecimentos contemporâneos que são consequência de ambas.

Trabalhos como esses não devem ser confundidos com o discurso de destacadas personalidades segundo as quais, por si só, a dinâmica dos movimentos sociais poderá, gradualmente, conduzir à superação do monstruoso sistema de exploração dominante.

Os movimentos sociais desempenharam um papel de extraordinária importância no despertar das consciências. E é indispensável que continuem a cumprir essa tarefa. O significado da sua intervenção, a importância da sua capacidade mobilizadora são tão decisivos que forças que afirmam estar empenhadas em travar a revolta dos povos contra o sistema de dominação imperial, se esforçam por conter o ímpeto da avalancha desencadeada e desviá-la para novos e inofensivos rumos. A tentativa de instrumentalização dos movimentos — cada vez mais ostensiva no discurso humanista e cativante de muitas ONG de tendência social democrata e de um amplo leque de forças ideologicamente dispares — arranca do pressuposto de que o capitalismo, sendo invencível pelo seu poder, não pode ser derrotado e que não se autodestruirá. A única opção lúcida seria portanto lutar pela sua reforma. Paralelamente, a teorização desenvolvida por intelectuais com máscara marxista, mas de pendor neoanarquista, como Toni Negri e John Holloway, funciona na pratica como complemento da anterior, favorecendo-a e gerando grande confusão entre a juventude e nos meios académicos.

É, entretanto, falso o pressuposto dessas campanhas, que dividem os movimentos e têm muitas vezes por tempero uma propaganda anticomunista que apresenta o socialismo como utopia. O capitalismo não é, pelos objectivos e essência, humanizável.

Diferem muito as tácticas utilizadas no esforço para neutralizar e instrumentalizar os movimentos sociais. Uma delas é a que subalterniza a luta contra o imperialismo e recorre a processos não éticos para desacreditar a solidariedade a Cuba, aos Sem Terra brasileiros, às organizações guerrilheiras colombianas, à Intifada palestiniana. Apresentar a situação criada no Iraque e no Afeganistão como um tema não prioritário nos grandes debates sobre o futuro é, com raras excepções, um denominador comum no discurso dos reformadores do capitalismo.

Simulam esquecer que o futuro se constrói no presente e mergulha as raízes no passado.

Ora o Iraque e o Afeganistão são precisamente neste final do ano 2003 os dois cenários onde a resistência à escalada de militarização do planeta está a exigir uma mobilização permanente das solidariedade dos povos em escala mundial.

O desespero e a desorientação em Washington são inocultáveis. As forças de ocupação estadunidenses e britânicas estão atoladas numa guerra não prevista. Ao responder à revolta das populações com a violência irracional, o comando militar agrava a situação de caos criada no país. Bush, primário como sempre, defende agora "a iraquização do conflito", mediante a transferencia da responsabilidade pela "segurança" para um exército nativo de colaboracionistas. Esqueceu já o que aconteceu no Vietnam.

É também evidente que a crise económica e financeira nos EUA se aprofunda. As falências de gigantes transnacionais como a Enron, a Anderson, a World Com e tantas outras, o aumento do desemprego, o alastramento da pobreza, a desvalorização do dólar, os gigantescos défices fiscal e comercial reflectem uma crise estrutural de extrema complexidade. Durante anos esses défices eram financiados pelo afluxo de capitais estrangeiros. Mas esse dinheiro não chega mais.

O défice da balança de transações correntes deverá este ano superar os 400 mil milhões de dólares. O volume do investimento estrangeiro directo caiu nos EUA de 300 mil milhões de dólares em 2000 para 124,4 mil milhões em 2001 e para apenas 30 mil milhões no ano passado, quantia muito inferior à que a China atraiu — a China que em 2002 apresentou um saldo positivo de 103 mil milhões de dólares no seu comercio bilateral com os EUA. Agora ninguém está interessado também em comprar os Títulos do Tesouro da pátria do dólar.

A maior divida externa do mundo, quase 7 milhões de milhões de dólares (mais de 60% do PIB), começa a assustar o governo e o Federal Reserve. Até muito recentemente o afluxo torrencial do capital estrangeiro, europeu e japonês, era um factor de tranquilidade para as autoridades monetárias. Mas essa fonte secou.

O Mito da Nova Economia, concebida para durar séculos, foi desacreditado pelos factos. A crise tornou-se estrutural, porque a lei da acumulação, base do sistema, não funciona como antes.

As guerras preventivas, o saque dos riquezas de países agredidos ou tratados como semi-colonias, e a dinamização do complexo industrial militar são respostas a uma crise estrutural que não pode ser superada mediante a aplicação dos remédios tradicionais em períodos de recessão.

Os acontecimentos da Ásia — Palestina incluída — confirmam que essa estratégia, que configura — como tenho repetido — um assalto à razão está a arrastar os EUA para um desfecho de catástrofe. Nos terrenos político, militar e económico.

É neste contexto que a solidariedade à luta dos povos do Iraque, do Afeganistão (e da Palestina, onde o sionismo funciona como braço armado do imperialismo) se impõe como exigência à humanidade democrática, a mulheres e homens de correntes de pensamento muito diferenciadas, mas que identificam no sistema de poder que tem o seu polo nos EUA uma ameaça global à própria continuidade da vida.

Tal solidariedade, entretanto, para ser funcional, terá de se expressar de maneira firme, numa disponibilidade permanente para a luta sem complexos, nem temores.

Essa atitude de serenidade e lucidez tem sido dificultada, por vezes com êxito, pela propaganda inimiga. O discurso montado em torno do terrorismo continua a confundir milhões de pessoas. A passagem da consciência dos crimes cometidos no Iraque e no Afeganistão a uma postura de protesto organizado contra a ocupação, de denúncia da farsa da "reconstrução" e da "democratização" tem sido neutralizada e mesmo travada em muitos países, a nível individual e colectivo, pelo temor de que tais gestos sejam interpretado como uma forma de cumplicidade indirecta com Sadam, Osama e os talibãs, como traduzindo indiferença perante os crimes dessa gente.

Tais complexos são paralisantes, funcionam em beneficio dos responsáveis das chacinas em curso do Médio Oriente.

Como afirma Chomsky, com coragem, o chefe do terrorismo de Estado no mundo é hoje Bush.

Quem empunha as bandeiras da liberdade são os resistentes do Iraque, do Afeganistão, da Palestina. Como vanguarda dos seus povos lavam vergonhas da humanidade, emergem como heróis colectivos.

As notícias que chegam diariamente de Bagdad e Kabul dissipam duvidas: a maré da luta está a subir.

Depende muito da solidariedade internacional que ela não baixe. O que foi possível em Fevereiro e Março, quando dezenas de milhões saíram as ruas condenando a guerra, está novamente ao nosso alcance. A intervenção dos povos, como sujeito da historia, é a mais eficaz das armas no combate em desenvolvimento contra a barbárie imperialista.

Havana, 16/Nov/2003


Notas de rodapé:

(1) Em conversas mantidas com oficiais franceses e alemães quando era deputado à Assembleia Parlamentar da União da Europa Ocidental, organização político-militar, tive a oportunidade de verificar que muitos tinham opiniões negativas sobre o Exército dos EUA e a capacidade do seu corpo de oficiais. Em 1951, ao visitar na Normandia os campos de batalha de Junho de 44, ouvi ali depoimentos similares. Eisenhower foi, como comandante supremo, somente um general político. Mas os filmes de Hollywood não podem apagar a História. Os três comandantes operacionais na batalha foram britânicos. Montgomery comandou as forças terrestres; o almirante Cunningham as navais; e o marechal Tedder as aéreas. A propaganda que glorificou Patton omite que foi o exercito britânico, em Caen e Bayeux, com apoio dos canadianos, que suportou durante os dias que decidiram a vitoria aliada, o ataque maciço das divisões panzer de Von Rundstedt e Rommel, quebrando-lhes o ímpeto e aniquilando-as como força de choque, o que permitiu a manobra americana de envolvimento que fechou a bolsa de Falaise. (retornar ao texto)

(2) Os mesmos jornais que em Nova York e Washington, enalteciam durante a II Guerra Mundial como heróicas e patrióticas as acções da Resistência francesa e dos partisans italianos contra as forças de ocupação da Wehrmacht alemã, qualificam agora de terroristas e criminosas iniciativas similares que no Iraque e no Afeganistão visam o exército do EUA. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021