A tortura e a mentira no neonazismo do US Army

Miguel Urbano Rodrigues

30 de maio de 2004


Fonte: http://resistir.inf

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Ocultar a realidade é objectivo prioritário da campanha de desinformação mundial montada nos EUA para que a humanidade não se aperceba plenamente do fracasso da estratégia de poder que está na origem das guerras de agressão contra os povos do Iraque e do Afeganistão.

Nunca antes, nem no Reich nazi, um aparelho mediático comparável difundiu com tal desfaçatez a mentira à escala universal, visando a defesa e a apologia de um sistema de poder responsável por crimes abjectos.

Por isso mesmo cabe aos intelectuais progressistas repetir incansavelmente verdades escondidas ou, para ser mais preciso, factos indesmentíveis, inseparáveis da guerra, omitidos pela engrenagem da desinformação.

No Pentágono, os generais mais lúcidos tomaram já consciência de que a guerra do Iraque está perdida. Num contexto histórico e geográfico diferente a humilhação do Vietnam vai repetir-se. O exército de ocupação estadunidense terá de retirar-se, desmoralizado, sem ter atingido os ambiciosos objectivos — os inconfessados, que abrangiam a implantação permanente na Ásia Central e o controle absoluto dos seus recursos energéticos — que motivaram a invasão. Para o prestigio de Washington as consequências do desastre serão ainda mais graves, porque ele está a produzir-se num mundo unipolar, comprometendo decisivamente o sonho de dominação planetária da extrema direita republicana.

Na Casa Branca e no Departamento de Estado a certeza da derrota gerou uma atmosfera próxima do pânico. A realidade exigiu a reformulação de projectos megalómanos. O discurso triunfalista cedeu o lugar a outro menos arrogante, defensivo, exigido pelas revelações sobre a tortura dos prisioneiros.

Se o governo admitisse a inevitabilidade da retirada do Iraque a reeleição de Bush, cada vez mais difícil, seria impossível. Trata-se, portanto, de ganhar tempo, de negar o óbvio, de mudar de estilo, de forjar novas mentiras, continuando a enganar o povo dos EUA.

As ultimas sondagens revelam uma queda alarmante da popularidade de Bush. Que fazer? Os luminares do marketing, os homens do Presidente e os militares não se entendem. Os consensos são poucos.

Para já temas como as armas de extermínio maciço e o julgamento de Sadam foram arquivados como assuntos contraproducentes.

O bombardeio mediático opta agora por temas como a transferencia de poderes a 30 de Junho, o regresso da ONU, a destruição do presídio de Abu Ghrabi, a ampliação da (mal)chamada coligação e a saída das tropas de ocupação.

Este é de todos o assunto mais delicado. Paul Bremer, semanas atrás, afirmou que as forças dos EUA seriam retiradas do País se o futuro governo formulasse um pedido nesse sentido. O britânico Tony Blair disse o mesmo relativamente à sua gente. Mas Colin Powell apressou-se a desmenti-los. Que não. Os marines e os GI, afinal, ficariam por tempo indeterminado para garantir "a democracia, a paz e a reconstrução do Pais". A contradição faz parte de um jogo combinado. De alguma maneira obriga o cidadão comum, nos EUA, a meditar sobre a retirada militar, em futuro próximo, convida-o a preparar-se para uma situação incompatível com o projecto bushiano de dominação imperial perpétua.

Quanto ao executivo iraquiano que substituirá o actual Conselho de transição, será um governo tão fantoche como o actual, nomeado e tutelado por Washington. O procônsul Paul Bremer vai ser substituído por outro, John Negroponte — um veterano da CIA envolvido no escândalo do Iran Gate — que sucedeu a Madeleine Albright como embaixador na ONU.

Mas a poucas semanas do 30 de Junho, as acções armadas da Resistência multiplicam-se e a única certeza é a de que o Iraque continuará a ser um país ocupado. O primeiro ministro indigitado por Washington, Iyad Allawi, é um antigo homem de confiança de Sadam que trabalha agora com a CIA e com o MI-16, o serviço de inteligência britânico.

A inesperada campanha contra Chalabi, outro colaborador íntimo da CIA, foi montada pelos serviços de inteligência. Revistaram-lhe a casa e criticaram-no para lhe aumentar a credibilidade, levando o povo a crer que se distanciara dos EUA. Mas a manobra não atingiu o objectivo.

DERROTAS MILITARES EM FALUJA E NAJAF

A situação militar continua a piorar.

A opinião publica norte-americana começa a perceber que a Resistência infligiu uma grave derrota ao Corpo de Fuzileiros Navais. Após a morte dos quatro mercenários em Faluja, Washington anunciou que a cidade seria colectivamente responsabilizada e que a punição ficaria como exemplo da sorte reservada aos que ousassem desafiar os EUA. Quase um milhar de civis morreram durante o bombardeamento selvagem a que Faluja foi submetida. Mas a operação militar fracassou (ver http://resistir.info, artigos de 14 e 16 de Abril e 3 de Maio ). As tropas de elite mobilizadas para o efeito sofreram perdas consideráveis e não conseguiram retomar a cidade.

Para ocultar a derrota foi desencadeada uma ruidosa campanha de desinformação. O Pentágono anunciou que havia retirado as suas forças após um acordo que restabelecera a normalidade na área. Na realidade o que houve foi quase uma capitulação humilhante. O comando estadunidense teve de pedir à Resistência que autorizasse a retirada do material pesado da cidade e a garantia de que as suas tropas não seriam atacadas durante a retirada.

Transcorridos 14 meses da invasão do Iraque, Faluja é hoje uma cidade livre.

Em Najaf, cidade sagrada dos xiitas, a US Army sofreu outra derrota que procura, também, ocultar. Quando o seu povo se levantou, Paul Bremer trombeteou urbi et orbi que Moqtaba Al Sadr, o líder da insurreição xiita, seria preso (ou abatido) e julgado e o exército Mahdi destruído.

Foi mau profeta. Os marines massacraram muitos civis, mas a ofensiva fracassou. Inesperadamente o comando norte-americano informou que chegara a um acordo de cessar fogo. As suas tropas sairiam de Najaf e Al Sadr também. Não se falou mais de capturar o líder.

Nos dias seguintes os fuzileiros saíram efectivamente da cidade, mas o tiroteio contra a tropa estadunidense recomeçou após o santuário do iman Ali ter sido bombardeado com morteiros. Em Najaf quem manda é a resistência xiita. Os marines foram também expulsos de Kerbala.

Quanto ao regresso da ONU ao Iraque, não parece iminente. Chirac deixou claro em Guadalajara que a França não aprovará o projecto apresentado pelos EUA no Conselho de Segurança sem profundas alterações. Algumas das suas exigências são inaceitáveis para Washington, sobretudo a relativa à fixação de uma data para a saída do pais das tropas norte-americanas.

PIOR DO QUE A GESTAPO

A divulgação das torturas infligidas a prisioneiros no Iraque suscitou uma onda de indignação de proporções mundiais.

Por si só as fotografias desses actos criminosos fizeram ruir, mesmo em bastiões conservadores dos EUA, a tese oficial sobre a ajuda humanitária ao povo iraquiano e a democratização da sua sociedade.

Os mass media passaram a chamar "abusos" à tortura, mas o artifício não funcionou. De um dia para outro ficou transparente que a soldadesca dos EUA, nas prisões, recorria a métodos que somente encontram precedente nos utilizados pela Gestapo e as SS nos campos de concentração nazis.

As imagens de vexames sexuais divulgadas pela televisão e pela imprensa são uma amostra suave de outras — tive a oportunidade de ver algumas — que abrem uma perspectiva assustadora sobre o universo de degradação em que actuavam os militares incumbidos pelos serviços de inteligência de "preparar" os iraquianos para os interrogatórios.

A reacção da Casa Branca e do Pentágono iluminou a hipocrisia e o amoralismo de um sistema de poder apodrecido. A decisão de demolir o presídio de Abu Ghrabi, em Bagdad e de libertar 600 prisioneiros ali encarcerados é expressiva do farisaísmo de Washington. Bush e a sua gente sabem que a prática da tortura não foi um fenómeno isolado nesta ou naquela prisão; inseriu-se numa engrenagem que envolveu toda a cadeia de comando. O secretário da Defesa, Donald Rumsfeld tinha conhecimento, há muito da tortura. Aprovou-a. Dos seus arquivos constavam fotos de prisioneiros submetidos a humilhações sexuais. Mas permaneceu mudo até que o escândalo rebentou. A sua atitude sorridente e as suas palavras ao dirigir-se em Bagdad ao pessoal militar de Abu Ghrabi foram, aliás, esclarecedoras do conceito de ética que perfilha.

O esforço de encobrimento das responsabilidades impedirá por muito tempo que o mundo possa tomar conhecimento pormenorizado do que foi a tortura como prática sistemática nas prisões iraquianas. Mas a própria suavidade das penas impostas aos primeiros soldados-torcionários submetidos a julgamento deixa transparecer o temor de revelações muito comprometedoras para altas patentes do exército de ocupação.

É significativo que o próprio general Ricardo Sanchez, comandante chefe das forças dos EUA no país, tenha sido transferido, após acusações de cumplicidade nos horrores de Abu Ghrabi. O desmentido não convenceu. Muitos milhares de norte-americanos descobrem com espanto que uma parcela importante do corpo de oficiais do Exército dos EUA tem hoje um comportamento neofascista.

Como é da praxe, os grandes jornais dos EUA adoptam uma posição ambígua. Insistem em apresentar os casos de tortura como excepcionais, salientando que, ao serem divulgados, suscitaram a imediata e adequada resposta de um governo e de uma Justiça democráticos, nomeadamente do Presidente da União.

Ora na realidade crimes similares vinham a ser revelados há muito por escritores e jornalistas progressistas em diferentes países. Sobre eles escreveram cientistas sociais com o prestigio do canadiano Michel Chossudovsky, jornalistas como o australiano John Pilger e o britânico Robert Fisk. Eu próprio, há mais de dois anos, responsabilizei oficiais superiores do US Army pela sua cumplicidade em crimes monstruosos cometidos durante e após a agressão ao povo do Afeganistão. Recordo a chacina de Mazar-i-Charif e o corte de línguas a prisioneiros em Seberghan.

Jornais de máscara austera como The New York Times desfraldam agora a bandeira do eticismo informativo e fazem acto de contrição, reconhecendo que lhes cabem culpas por falta de vigilância na publicação de artigos irresponsáveis de redactores seus, sobretudo os que davam como certa a posse pelo Iraque de armas de extermínio maciço. Esse tipo de autocrítica lembra as do Departamento de Estado quando desclassifica documentos sobre a falsidade das acusações do Pentágono que serviram para justificar a agressão ao Vietnam e o envolvimento da Administração Nixon na preparação do golpe de Estado de Pinochet, em 1973. Santa hipocrisia!

Não é impossível que o senador Kerry, se eleito, decida, futuramente, na tentativa de branquear a imagem da democracia americana, tornar públicos documentos secretos que aprofundem o mar de lama em que estão hoje atolados a administração Bush e os falcões que rodeiam Rumsfeld.

Seria, entretanto, uma ingenuidade acreditar que a simples mudança de Presidente determinaria uma guinada de 180 graus na política externa dos EUA.

Cabe lembrar que Kerry, sensível às brisas eleitorais, criticou asperamente o governo de Madrid, quando Zapatero, respeitando um compromisso, decidiu retirar do Iraque as tropas espanholas. O problema nos EUA não é fundamentalmente de homens. A raiz do mal está sobretudo no sistema de poder, na estratégia imperial de dominação que ameaça a humanidade, inseparável do funcionamento das engrenagens do capitalismo globalizado, corroído por uma crise estrutural para a qual não encontra soluções.

As guerras ditas "preventivas", de agressão a povos do terceiro Mundo e de saque dos seus recursos naturais, expressam o desespero desse sistema.

É nesse contexto que a luta que tem por cenário a terra milenária da Mesopotamia, berço de grandes civilizações, assume os contornos de uma epopeia. O povo do Iraque, que, por resistir à ocupação da sua pátria e à barbárie estadunidense, é qualificado pelos invasores de "rebelde" e "terrorista", aparecerá às gerações de amanhã como herói colectivo de uma saga. Bem merece a gratidão e a solidariedade activa de todos os homens e mulheres do planeta que defendem valores eternos da condição humana pelos quais ele se bate com coragem espartana.

Lisboa, 30 de Maio de 2004


Inclusão: 01/08/2021