Globalizar a luta numa era de viragem

Miguel Urbano Rodrigues

24 de setembro de 2004


Primeira Edição: Intervenção no Encontro Internacional «Civilização ou Barbárie», Serpa, 24 de Setembro de 2004

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Camaradas e amigos

No final do século XX um vento de pessimismo varreu o planeta. A humanidade parecia mergulhar na apatia. Quando a União Soviética desapareceu e a Rússia galopou para o capitalismo, a teoria do Fim da Historia correu pelo mundo. Nos EUA os intelectuais do sistema proclamaram a morte do comunismo e apresentaram o neoliberalismo como a ideologia definitiva.

Mas a euforia das forças obscurantistas durou pouco. A cadeia de protestos contra o capitalismo globalizado, iniciada em Seattle, ficou a assinalar o regresso da esperança. De repente, o panorama mudou.

Não estamos a ser testemunhas da morte das ideologias, mas sim de um renascimento do espírito revolucionário, com destaque para uma reflexão criadora sobre o marxismo.

Um pouco por todo o planeta, lutas de novo tipo confirmam que as revoluções do futuro próximo estão a ser forjadas na resistência às contra revoluções da era neoliberal.

Milhões de explorados apercebem-se de que o capitalismo se tornou um factor de regressão absoluta da humanidade. A grande maioria rejeita o monstruoso projecto de sociedade que pretendem impor-lhe. O Fórum Social mundial e os fóruns sociais continentais e nacionais confirmaram que o sistema de poder que aspira á dominação universal e perpétua enfrenta uma condenação crescente. Mas desses grandiosos protestos transparece também que não existe consenso quanto ás formas de luta contra o sistema imperial nem quanto à temática das alternativas ao neoliberalismo globalizado.

A consciência de que a humanidade enfrenta uma crise global sem precedentes, que é simultaneamente social, económica, financeira, militar, cultural e ambiental não é acompanhada ainda de uma disponibilidade para lutas globais que traduzam essa consciência.

Na procura de uma resposta, as questões teóricas e as práticas apresentam-se com frequência interligadas numa teia labiríntica. A luta contra a escalada de terrorismo do estado imperial é prioritária. Mas para se derrotar a engrenagem que ameaça a própria continuidade da vida é indispensável compreender antes de mais a estratégia e os mecanismos do sistema de dominação opressor. A rejeição do projecto imperial e da globalização neoliberal deve conduzir à consciência de que esta –como reconhece Thomas Friedman, ex- assessor de Madeleine Albright- não poderia funcionar sem um «punho invisível», a máquina de guerra dos EUA, que a sustenta e viabiliza.

Entretanto a tentativa de prever o futuro e esboçar os seus contornos é uma fonte de problemas.

A aspiração é legitima. O velho brado antinómico de Rosa Luxemburgo «Socialismo ou Barbárie» não perdeu actualidade. Mas a reflexão critica sobre os erros que conduziram à implosão da URSS e ao trágico desfecho do regime nascido da Revolução de Outubro de 17 desvia-se do objectivo, assumindo aspectos negativos, quando desemboca em exercícios de futurologia que deixam transparecer desconhecimento da historia, das sociedades contemporâneas e da evolução do imperialismo.

A imprescindível reflexão sobre a transição do capitalismo para o socialismo e os fracassos das revoluções que se propunham a encontrar resposta para esse desafio não devem ser confundidos com a elaboração de programas para a fase de transição. Ao inverterem prioridades e tempos históricos, na tentativa de explicarem o que não se fez e deverá fazer-se, no esforço para esboçarem o perfil do socialismo com que sonham, muitos teóricos da «transição» desenvolvem um trabalho de escassa ou nula utilidade.

Voltarei ao tema mais adiante, mas quero desde já sublinhar que tudo separa esses fazedores de «programas para a transição» de intelectuais como István Mészaros, Samir Amin e Georges Gastaud que, a partir de um conhecimento profundo do marxismo, escreveram trabalhos importantíssimos sobre a problemática da transição para o socialismo em sociedades onde ela fracassou dramaticamente.

Camaradas e amigos

Este Encontro tem por titulo «Civilização ou Barbárie». Paradoxalmente, o sistema de poder que ameaça mergulhar o mundo na barbárie apresenta-se como o campeão da luta contra o terrorismo e faz dela a primeira prioridade da sua estratégia.

Na prática, porém, a sua política de guerras ditas preventivas configura uma forma inédita de terrorismo de estado. As agressões militares dos EUA a povos com o iraquiano e o afegão contribuíram, após o 11 de Setembro, para multiplicar e disseminar o terrorismo em escala mundial. Em ultima análise é a política imperial neonazi de Washington a responsável pela proliferação de atentados terroristas praticados por seitas de fanáticos fundamentalistas, incluindo sequestros monstruosos com desfechos de tragédia como o da Ossétia do Norte.

Lutar contra o sistema de poder que tem o seu pólo em Washington tornou-se, portanto, uma necessidade ligada à sobrevivência da humanidade.

Na crise global que vivemos a frente principal no confronto com o imperialismo é aquela onde o inimigo, concentrando grandes forças, actua com mais agressividade e investe mais recursos materiais e humanos- a frente em que os desafios por ele enfrentados e a resistência encontrada lhe causam maiores dificuldades, pondo em causa o mito da sua invencibilidade.

Essa frente situa-se actualmente no Oriente Médio e na Ásia Central, no triângulo Iraque-Afeganistão-Palestina.

É hoje transparente que a estratégia dos EUA na Região fracassou. Uma esmagadora superioridade militar permitiu às suas forças armadas ocupar em poucas semanas o Afeganistão e o Iraque. Mas em ambos os casos a resistência das populações impediu a execução dos chamados planos de reconstrução, na realidade de recolonização. Não tanto pelo milhar de mortos e mais de uma dezena de milhar de feridos somente no Iraque. Para Washington, o pior é a desmoralização resultante dos ataques diários e a incapacidade de prever as acções de uma Resistência cada vez mais organizada.

Foi impossível ocultar ao povo dos EUA uma série de derrotas. A de Faluja foi a mais chocante. Após a morte ali de quatro mercenários, o governo Bush afirmou que a cidade seria alvo de uma punição exemplar. Quase um milhar de civis morreram durante o bombardeamento selvagem a que Faluja foi submetida. Mas o corpo de Fuzileiros não conseguiu retomar a cidade. Numa tentativa de esconder o fracasso, o Pentágono informou que retirara as suas forças após um acordo que normalizara a situação na área. Na realidade ocorreu uma capitulação humilhante. O comando norte-americano teve de pedir à Resistência que autorizasse a saída do material pesado da cidade e a garantia de que as suas tropas não seriam atacadas durante a retirada. Hoje Faluja é uma cidade praticamente libertada no Iraque. Por isso é bombardeada com frequência.

Em Najaf, Samarra, Ramadi, Kerbala e Kufa os marines também acumularam derrotas. Nessas cidades as tropas dos EUA não entram mais.

Durante um ano, Washington apresentou as comunidades xiitas, majoritárias no pais como predispostas á colaboração. Outra mentira. O levantamento de Moqtada Al Badr em Najaf funcionou como rastilho de uma ampla insurreição xiita. Os EUA, após semanas de luta, tiveram inclusive de recorrer à mediação do ayatollah Al Sistani para conseguir que Al Badr e o exército mahdi evacuassem o mausoléu de Ali naquela cidade santa do xiismo. Para prosseguir alias a luta noutros lugares. E os marines saíram de Najaf.

O golpe mais duro que atingiu a extrema direita estadunidense foi, entretanto, a divulgação das torturas infligidas aos prisioneiros iraquianos. Os media passaram a chamar «abusos» à tortura, mas o artificio não funcionou. Ficou transparente que a soldadesca norte-americana, com a cumplicidade do alto comando, recorria a métodos que somente encontram precedente nos utilizados pelas SS nazis no III Reich alemão. O próprio secretario da Defesa, Donald Rumsfeld, tinha conhecimento do que se passava e nos seus arquivos acumulava fotografias das humilhações sexuais infligidas a prisioneiros.

Os grandes jornais, incluindo The New York Times, adoptaram uma atitude ambígua. De modo geral apresentaram a tortura como excepcional, sublinhando que suscitara a adequada resposta de uma justiça democrática. O que é falso. Crimes similares vinham sendo divulgados por intelectuais progressistas em diferentes países. Sobre o tema escreveram cientistas sociais como o canadiano Michel Chossudovsky, escritores como o australiano John Pilger e o jornalista britânico Robert Fisk. Eu próprio faz dois anos responsabilizei oficiais superiores do exército dos EUA por crimes abjectos cometidos durante a guerra de agressão ao povo do Afeganistão. Recordo a chacina de Mazar-i-Charif, o saque de Kandahar, e o corte de línguas a prisioneiros em Seberghan.

A recente transferencia de poderes em Bagdad para um governo provisório iraquiano foi uma mera operação cosmética. O procônsul Paul Bremer regressou a Washington, mas o actual embaixador John Negroponte — um veterano da CIA — continua a por e dispor ali. O primeiro ministro Iyad Allawi é um antigo homem de confiança de Saddam que trabalhou depois com a CIA e o MI-6, o serviço de inteligência britânico. Foi acusado pelo diário australiano Sidney Morning Herald de assassinar pessoalmente, com tiros na nuca, prisioneiros iraquianos numa esquadra de polícia de Bagdad.

A cumplicidade dos aliados europeus dos EUA, da Rússia e da China permitiu, entretanto, que Washington alcançasse uma vitória táctica. O Conselho de Segurança da ONU, submetido a pressões muito fortes, num momento em que o alargamento da União Europeia enfraqueceu o eixo franco-alemão, aprovou em 8 de Junho, por unanimidade, uma Resolução, a 1546, capituladora.

O documento, violador da Carta da ONU, legitima a ocupação do Iraque ao reconhecer como representante do seu povo até às futuras eleições o governo interino fantoche instalado por Washington. Simultaneamente, o Conselho de Segurança passou a designar as tropas de ocupação como "força multinacional". Na prática, a autointitulada coligação, inventada e comandada pelos EUA, adquiriu assim um estatuto de legitimidade que vinha, sem êxito, reivindicando há muito.

O caracter capitulador da Resolução 1546 não alterou, contudo, a situação concreta existente. Koffi Annan, não obstante ser um secretario geral submisso, foi categórico ao declarar que a Organização não voltará em tempo previsível a instalar em Bagdad uma missão permanente. A memória do ataque contra a sua sede, quando morreu o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, desaconselha o regresso.

A resolução não mudou também o quadro militar. Washington pretendia que a França, a Alemanha e a Rússia enviassem tropas. Ora Chirac e Schroeder já esclareceram que isso não acontecerá. A posição de Putin é mais ambígua.

A recusa de envolvimento dos três países na guerra iraquiana configura uma grande derrota dos EUA. Para o Pentágono, a presença no combate à insurreição dos exércitos francês, alemão e russo era considerada fundamental. Rumsfeld e os seus generais estão conscientes de que o único aliado que conta militarmente é a Grã- Bretanha. As tropas italianas, polacas, ucranianas, búlgaras, bielorussas, romenas, checas, eslovacas, bálticas e de países da Ásia Oriental e da América Latina não saem praticamente dos quartéis. O devastador ataque à caserna dos italianos valeu como advertência. Aliás, os governos das Filipinas, das Honduras, da Republica Dominicana e da Nicarágua já retiraram os seus contingentes, seguindo o exemplo espanhol. Os ucranianos vão também sair.

A certeza do isolamento (pois o único aliado real, repito, é o britânico) dissipou as ilusões do Pentágono.

A guerra do Iraque assume cada vez mais os contornos de uma guerra perdida. Tal como ocorreu no Vietnam — embora num contexto muito diferente — a Resistência destruiu o moral do exército invasor. Cada soldado, ao tomar conhecimento da morte diária de companheiros numa guerra absurda que não entende, pensa que o próximo pode ser ele. Mais de 1500 soldados e oficiais receberam já tratamento psiquiátrico. O número de suicídios cresce e trinta militares, ao regressarem aos EUA, mataram as mulheres e os filhos.

Foi precisamente a consciência da desmoralização das tropas de ocupação que motivou a decisão de acelerar na medida do possível a substituição dos militares que se encontravam no pais desde o inicio da invasão. Mas a substituição desses homens está criando problemas muito complexos.

O exército dos EUA é hoje um corpo profissional muito diferente do que esteve na fornalha vietnamita. Naquela época não se colocava o problema dos efectivos. Actualmente não é possível mobilizar milhões de homens. As novas armas exigem forças altamente especializadas. O ingresso no exército implica um contrato, nasce de um acto voluntário. Daí uma dimensão muito menor das forças armadas. No caso do exército, o total das tropas operacionais disponíveis não atingirá provavelmente- segundo Ignacio Ramonet- 250 000.

Mais de metade encontra-se no Iraque e algumas dezenas de milhares no Afeganistão e em bases militares localizadas em diferentes países. Tendo presente que parte das tropas que participaram da invasão já foi repatriada (e está desmoralizada) o Pentágono não sabe como responder ao pedido de reforços para o Iraque. A recente convocação de 6 500 reservistas e os protestos que a medida provocou são reveladores das limitações da gigantesca máquina militar dos EUA. Da Coreia do Sul e do Haiti vão, aliás ser transferidos para o Iraque uns 15 000 homens.

A contratação de dezenas de milhares de mercenários para tarefas militares e civis naquele país é espelho das dificuldades crescentes do Pentágono.

O PÓLO DA AMÉRICA LATINA

Colin Powell declarou em Fevereiro p.p. que a América Latina não é no momento uma prioridade para os EUA. Tivemos a confirmação no corte de 11% das verbas destinadas pelo orçamento federal a iniciativas na Região.

Seria, porem, um erro minimizar o significado da frente latino-americana na batalha mundial contra o imperialismo. Washington persiste numa política muito agressiva na Região. O triângulo Venezuela-Colômbia-Cuba concentra a atenção da Casa Branca.

A vitória, por ampla margem, de Chavez no referendo revogatório de 15 de Agosto foi um acontecimento político de significado continental. O povo venezuelano, assumindo uma vez mais o papel de sujeito da história, voltou a derrotar as forças unidas da oligarquia e do imperialismo. Sem a sua participação maciça não teria sido possível o triunfo alcançado no confronto com a engrenagem golpista que pretendia — tal como no golpe de 11 de Abril de 2002 e no lock out. petrolífero — derrubar o presidente Hugo Chavez e destruir a Revolução Bolivariana.

A Venezuela emerge hoje na América Latina como um laboratório social efervescente no qual se desenvolve uma luta de classes como o mundo não conhecia, pela duração e intensidade, desde as revoluções russas de 1917. Na pátria de Bolívar e Zamora foi retomado um desafio: transformar radicalmente a sociedade e libertá-la da dominação imperialista, optando pela via dita pacífica, isto é utilizando exclusivamente para o efeito as instituições criadas pela burguesia para servir os seus objectivos, incompatíveis com os do poder revolucionário.

Os êxitos obtidos por Chavez não devem levar a uma subestimaçao das dificuldades do futuro imediato. Convém recordar que o poder económico da burguesia, com excepção da área do petróleo (e do aço), está praticamente intacto.

O desfecho da via pacifica no Chile foi o sangrento golpe militar do 11 de Setembro de 1973, preparado com o apoio do imperialismo norte-americano. Mas a Revolução Bolivariana não é uma revolução desarmada, contrariamente à chilena. A derrota da intentona de Abril de 2002 permitiu o afastamento de 150 generais e almirantes que representavam o espirito do corpo de oficiais tradicional, educado nas academias militares da burguesia e dos EUA. Hoje a esmagadora maioria do Exército está identificada com o projecto revolucionário, situação sem precedentes na América do Sul.

São muitas, entretanto, na Venezuela as interrogações sem resposta. A vitória no referendo, alcançada em condições muito desfavoráveis, foi uma grande derrota do imperialismo. Mas a vitória do povo não pôs fim à ofensiva contra-revolucionária, apoiada por um sistema mediévico perverso. O futuro da Revolução Bolivariana continua a ser imprevisível.

No Brasil e na Argentina a eleição de presidentes cujos projectos previam transformações sociais de fundo que implicavam uma ruptura com as políticas neoliberais anteriores de submissão ao imperialismo gerou enormes esperanças.

O andamento da historia não permitiu a sua concretização. Em ambos os casos as políticas adoptadas não respondem às aspirações populares.

Não cabe nesta reflexão analisar o rumo do Brasil e da Argentina. Mas é oportuno recordar que os governos de Lula e Kirchner, com linguagens e estilos muito diferentes, longe de utilizarem as instituições em beneficio dos respectivos povos, desenvolvem políticas que no fundamental não ferem a lógica do capitalismo e lhe servem mesmo os interesses estratégicos. A submissão do Brasil às políticas neoliberais é ostensiva. O prof. Ricardo Antunes, da Universidade de Campinas, definiu bem a situação criada ao afirmar –cito- que «o governo Lula tenta ganhar as classes dominantes para o seu projecto e ainda não percebeu que ele foi ganho pelas classes dominantes para o projecto delas».

Entretanto, o chamado «capitalismo normal» de Kirchner não envolve também uma ruptura com os objectivos do neoliberalismo. Não sem habilidade, o ex-governador peronista da Patagónia esforça-se na Casa Rosada por humanizar o capitalismo, como se isso fosse possível. Mas o seu populismo engana. A sua popularidade mantem-se num nível alto, enquanto a de Lula baixa.

Quanto à sobrevivência das guerrilhas na Colômbia, constitui um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC-EP, sobretudo, confirma que em determinadas situações históricas, geográficas e sociais excepcionais, a luta armada continua a ser possível na América Latina. Há 39 anos que a oligarquia colombiana anuncia o fim da guerrilha de Manuel Marulanda. Sem êxito. Nestas quatro décadas o núcleo inicial de 47 homens transformou-se num exército popular de 18 000 combatentes que luta em 60 frentes, infligindo duras derrotas ao mais poderoso exército da América Latina.

O Plano Colômbia está em execução e não obstante a ausência de condições para uma intervenção directa –inviável no momento- os EUA não renunciaram à ideia de criar uma força interamericana que actuaria contra as guerrilhas das FARC e do ELN, acusadas de serem organizações terroristas. A detenção no Equador do comandante Simon Trinidad confirmou, aliás, a existência de cumplicidades profundas de vários serviços de inteligência latino-americanos com a CIA.

Cuba é o terceiro vértice do triângulo que preocupa os estrategos estadunidenses. O povo da Ilha não se submete, não abdica do direito de construir e defender o socialismo. Na perspectiva de Washington a sobrevivência da sua revolução, aguentando o mais prolongado bloqueio de que ha memória, oferece um perigoso exemplo para a América Latina. Demonstra que é possível resistir vitoriosamente seguindo um caminho próprio. Cuba é o único pais do Hemisfério onde o direito á vida, à saúde, à educação, à cultura é pilar de um conceito revolucionário dos direitos humanos que não é farisaico como o das democracias formais do mundo capitalista.

Não creio, camaradas, que os EUA, atolados no Iraque e no Afeganistão, estejam no momento em condições de invadir Cuba. Mas o povo cubano sente-se com fundamento ameaçado. No contexto de uma autentica guerra não declarada, as ultimas medidas do governo Bush, reforçando o bloqueio e impondo sanções incompatíveis com o direito internacional, visam a asfixiar economicamente a pátria de Martí e Fidel. Configuram uma política definidora de um estado pirata. Daí a necessidade de ampliar a solidariedade com o heróico povo cubano.

A nível continental, a luta contra a ALCA permanece como objectivo fundamental. Os EUA exigem que o «Acordo» por eles concebido seja implementado no inicio de 2005. Perante as resistências encontradas, o projecto anexionista mudou de forma e procedimento, mas a sua essência mantem-se intacta, como sublinhou em Havana o cubano Osvaldo Martinez.

No panorama global, a traição do equatoriano Lúcio Gutierrez, hoje totalmente submisso às ordens de Washington, veio alertar as forças progressistas do Continente para uma realidade. Na América Latina a conquista da Presidência por políticos com programas anti-neoliberais, eleitos com o apoio maciço dos trabalhadores e dos intelectuais progressistas, não é, por si só, garantia do cumprimento dos compromissos assumidos.

O oportunismo e a capitulação dos dirigentes populistas que suscitaram grandes esperanças não justificam, porem, atitudes pessimistas. Do Rio Bravo à Terra do Fogo os povos da América Latina, com raras excepções, demonstram maior disponibilidade para a luta. Isso ocorre no Peru, na Bolívia, no Uruguai, no Paraguai, no Chile, como no Brasil e em países da América Central.

Mobilizar para acções concretas, bem coordenadas, esse formidável potencial de combatividade — eis a grande tarefa a ser assumida pelas organizações e partidos revolucionários do Continente e pelos movimentos sociais progressistas que recusam o discurso dos reformadores do capitalismo.

LUTAS SOCIAIS NA EUROPA

O pólo europeu na luta global contra o sistema de poder que ameaça a humanidade tende a assumir também importância crescente. Os Estados da União Europeia –tal como o Japão, a Rússia, a Austrália, a Nova Zelândia e alguns da Ásia Oriental - estão integrados nesse sistema. Os seus governos e classes dominantes participam activamente da exploração capitalista. São parte de uma engrenagem. Como beneficiários da globalização neoliberal, muitos deles participaram em agressões contra outros povos ( Golfo, Somália, Bósnia, Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, etc.). Essa cumplicidade não impede que contradições complexas oponham permanentemente no âmbito da OCDE e do próprio G-7 estados e transnacionais da Europa ao sistema de poder estadunidense e às suas transnacionais. O alargamento da UE, com a entrada de países cujos governos são na maioria satélites de Washington, aprofundou essas contradições que se expressam com frequência em conflitos comerciais e em posições diferenciadas na ONU. Esses conflitos são inseparáveis da crise profunda do capitalismo e da estratégia da dominação planetária liderada pela extrema-direita dos EUA.

Em Seminários Internacionais realizados no Chile, no México e no Brasil chamei a atenção para o caracter estrutural que a crise do capitalismo apresenta hoje nos EUA. São cada vez mais transparentes as consequências de uma estratégia irracional em que o poder das finanças passou a ser sustentado por uma política de terrorismo de estado. Sendo actualmente uma nação parasita que consome muito mais do que produz- em Abril o défice comercial ultrapassou 48 mil milhões de dólares e em Junho foi ainda mais elevado- os EUA, cuja taxa de poupança é muito baixa – praticam uma política de saque dos recursos naturais de outros povos. O défice do orçamento federal será este ano, segundo a Casa Branca, superior a 445 mil milhões de dólares, o maior de sempre.

O prof. Remy Herrera, da Universidade de Paris 1, aqui presente em Serpa, formulou em Havana, na VI Conferencia sobre Problemas do Desenvolvimento e da Globalização, uma pergunta oportuna: poderão os EUA redinamizar a acumulação de capital no centro do sistema mundial através da guerra imperialista quase permanente?

A sua resposta é negativa porque as destruições de capital são «insuficientes para a acumulação capitalista».

A desvalorização do dólar relativamente ao euro –apesar de a Europa permanecer na fronteira da estagnação- não é uma simples manobra monetária para estimular as exportações. Desta vez reflecte a gravidade da crise estadunidense. Gigantescos défices –sobretudo o do orçamento e o comercial assustam os aliados europeus e asiáticos. A divida externa, a maior do mundo e a publica interna, atingem níveis alarmantes. O endividamento das famílias americanas representa quase 85% do PIB.

O gigante tem pés de barro e os cúmplices estão conscientes da sua fragilidade.

É natural que as lutas sociais na Europa Ocidental estejam em ascensão num momento em que o alargamento da União Europeia para 25 países traz a certeza de um aumento de tensões entre grandes e pequenos. O ingresso de países como a Polónia, a Hungria e a Republica Checa, que se comportam como autentica quinta coluna dos EUA, aprofunda clivagens e será fonte de novas situações de conflito.

Outro problema: o futuro exército europeu, defendido com empenho pela França e pela Alemanha e combatido pelo Pentágono, continuará a ser uma área de atrito. Como prólogo, o debate sobre a criação da chamada «força de reacção rápida» e dos battle groups antecipa fricções inevitáveis. O tumor iraquiano contribui para as intensificar.

A hegemonia financeira e militar de Washington é ainda demasiado forte para que os aliados europeus e o Japão a desafiem abertamente. Mas que acontecerá – como pergunta Georges Gastaud – se as potências capitalistas mais importantes se aproximarem dos EUA, mais frágeis economicamente do que parece? Enganam-se, responde o professor francês, "os que imaginam que a era das guerras imperialistas pertence para sempre ao passado, embora hoje seja impossível prever as formas que assumiriam esses conflitos, tanto menos previsíveis quanto a URSS já não existe para defender a paz".

As forças progressistas não somente se opõem à militarização da Europa, qualquer que seja o modelo, mas também à Constituição Europeia que, na pratica institucionalizou o capitalismo, reduzindo as soberanias nacionais a simples fachada.

A mobilização dos povos contra a Constituição não atingiu lamentavelmente o nível que seria desejável, em parte pelo desconhecimento das consequências da sua aplicação.

Mas o agravamento da crise do sistema levará a uma intensificação das lutas de significado anti-imperialista. Quanto mais os EUA se afundarem no Iraque maiores serão as dificuldades dos governos da UE em camuflarem as suas divergências sobre a estratégia de Washington para o Oriente Médio e a Ásia Central.

Os factores negativos não devem, contudo, ser esquecidos. Na Europa Ocidental tal como na América Latina o nível de organização e a capacidade de mobilização das forças que rejeitam a globalização neoliberal e o seu projecto são muito insuficientes. Não correspondem à dimensão da crise.

O balanço dos Fóruns Sociais convida á reflexão. A intervenção dos Movimentos Sociais desde Seattle tem suscitado polémicas fascinantes. É importantíssima a contestação ao projecto de sociedade do neoliberalismo. Os movimentos sociais contribuíram decisivamente para uma mudança de atitude de milhões de pessoas perante situações que antes suportavam passivamente. Ao passarem da quase indiferença à contestação do sistema colocaram este na defensiva. O quadro mudou.

Mas a convicção de que os movimentos sociais emergem colectivamente como uma vanguarda de vocação revolucionária expressa uma atitude romântica. Tenho chamado repetidamente a atenção, sobretudo no sítio web resistir.info, para os limites e perigos do espontaneísmo movimentista quando a intervenção dos movimentos sociais não tem como complemento imprescindível a participação intensa na luta de organizações e partidos revolucionários com projectos bem definidos. Não é sem apreensão –apenas um exemplo- que acompanho a guinada de um partido como a Rifondazione Comunista, da Itália, quando afirma, pela palavra de Fausto Bertinotti, que «o movimento dos movimentos» (o que será isso?) funcionará como alavanca da revolução de amanhã. Os partidos tenderiam com o tempo a diluir-se nesse «movimento dos movimentos». Apreensão similar é a provocada pela adesão da maioria dos partidos comunistas da Europa Ocidental a um projecto de Partido que pretende representar o fundamental das esquerdas marxistas de vários países, mas que parece anunciar- se como mais uma organização empenhada em reformar o capitalismo. A recusa de adesão a tal projecto dos Partidos Comunistas Português e Grego apontou um caminho correcto.

Camaradas e amigos,

Julgo útil recordar também aqui outra situação negativa. Nos últimos anos, tendências que apresentam matizes neoanarquistas favoreceram na prática os objectivos de forças e personalidades que, mesmo quando declaram o contrario, actuam como se fosse possível uma reforma profunda do capitalismo que o humanize, o que é uma impossibilidade absoluta.

Penso concretamente nos trabalhos e na intervenção polémica do irlandês John Holloway, actualmente professor na Universidade mexicana de Puebla, e do italiano Toni Negri cujas teses sobre a problemática do poder e o imperialismo se me afiguram perigosamente desmobilizadoras.

O livro do primeiro, «Mudar o mundo sem tomar o Poder»(1), publicado inicialmente quando era professor em Edimburgo na Escócia, e depois editado na Argentina e no Brasil, funcionou na América Latina como instrumento de confusão, sobretudo em meios universitários. O facto de Holloway se declarar plenamente identificado com as posições do subcomandante Marcos, do EZLN, sobre o Estado e a inutilidade da luta frontal contra o Poder do Estado burguês contribuiu para confundir amplas camadas da juventude. Cabe recordar que Marcos se define como um rebelde, mas não como revolucionário. Holloway, seu grande admirador, diz-se marxista, mas pensa e escreve como um neoanarquista.

Não menos confusionista é o efeito das mensagens contidas na obra de Negri. O seu discurso sobre a metamorfose que enxerga no imperialismo, que se teria diluído, actuando através de múltiplos pólos diferenciados, é absolutamente incompatível com a definição clássica do imperialismo, de Lenine. A historia desmentiu-lhe nos últimos anos essa tese absurda. Mas Negri insiste. Desmobilizadora é também a sua apologia da «não violência» num momento em que a Resistência iraquiana enfrenta com heroísmo o terrorismo de estado neofascista dos EUA. Negri semeia a confusão quando é cada vez mais necessária uma grande frente antimperialista, a única por ora possível.

ALTERNATIVAS E PRIORIDADES

A questão das alternativas aparece-me como intimamente ligada à da frente de luta principal.

Fidel Castro no III Encontro Anti-Alca interveio no debate para afirmar que não haverá uma alternativa, mas muitas, segundo a região, o país, o povo, as condições objectivas e subjectivas. Não se referia obviamente a alternativas ao projecto anexionista imperial. Para ele no hemisfério somente há uma alternativa à ALCA: a integração das economias latino-americanas. Fidel referia-se às alternativas às políticas de ajuste impostas à América latina pelo Consenso de Washington com os trágicos resultados conhecidos.

As falsas democracias latino-americanas são regimes caricaturais e opressores. O Brasil necessita de um projecto nacional (o actual Governo abandonou o esboçado no Programa da Frente que o elegeu) que terá de ser muito diferente do argentino, como este do uruguaio e do paraguaio. O das forças progressistas do Chile apresentará um perfil próprio, tal como os do Peru, da Bolívia e do Equador. O da Venezuela bolivariana define-se a cada dia na defesa da revolução. A longa e heróica luta da insurgência colombiana pesará nas soluções institucionais democráticas que o povo de Nariño reivindica. Em cada caso, no México, na América Central, no Caribe, o projecto nacional, para obter o apoio das massas, terá que partir da especificidade nacional.

A opinião emitida por Fidel Castro foi oportuna como elemento clarificador de um debate que, por falta de rigor, inclusive no emprego da palavra alternativa, é fonte de interpretações contraditórias.

Tornou-se já evidente que dos Fóruns Sociais Mundial e Continentais não pode sair qualquer alternativa global ao neoliberalismo porque no mundo actual é impossível apresentar uma alternativa de contornos definidos, bem estruturada, de valor universal, ao sistema que ameaça destruir o planeta.

A dualidade antagónica socialismo ou barbárie, tal como a apresentam cientistas sociais revolucionários como Mészáros, Gastaud e Samir Amin expressa bem a situação de crise existente. Ou o capitalismo, na sua fase senil, destrui a civilização, empurrando a humanidade para a barbárie (ou a extinção) ou o capitalismo é erradicado, desaparece. Num pequeno artigo, Mészáros divulgou recentemente uma carta em que Paul Sweezy, em 1987, deixava transparecer uma lúcida percepção do rumo dramático da história resultante do desespero do capitalismo, incapaz de superar a crise por ele criada.

Seria, contudo, entrar no terreno da especulação esboçar sequer os contornos do socialismo, ou dos socialismos, que sucederão ao capitalismo. O estudo em profundidade do terremoto que levou à implosão da URSS, uma tragédia para a humanidade, apenas principiou. Sabemos que o socialismo real não correspondeu ao projecto de Lenine, desfigurando-o. Mas o perfil do socialismo de amanhã não pode ser esboçado hoje. O mais provável será o aparecimento e a convivência de sociedades comunistas muito diferenciadas. Estamos longíssimo do estado universal.

A controvérsia assume uma grande actualidade porque intelectuais de esquerda sérios, respeitados, alguns marxistas, afirmam que a elaboração de uma alternativa teórica ao neoliberalismo se apresenta como tarefa prioritária, devendo preceder a organização da luta frontal contra o imperialismo cujas condições seriam criadas por ela.

Repito o já dito. A reflexão sobre a problemática da transição para o socialismo e os erros cometidos na URSS é uma tarefa incontornável. Nesse campo, os trabalhos, muito diferentes, de Mészáros, Samir Amin, Sweezy e Gastaud e também, muito antes, de Bethelleim, são importantíssimos, imprescindíveis à compreensão do mundo unipolar em que vivemos e à renovação criadora, revolucionaria do marxismo, tal como a concebiam Marx, Engels e o próprio Lenine.

Mas sair desse terreno para a formulação de projectos que subalternizam a luta contra o imperialismo, concedendo prioridade ao debate teórico sobre a construção da sociedade futura seria cair na utopia, levar agua ao moinho do inimigo. Não são apenas diletantes das ciências sociais como o alemão-mexicano Hanz Dieterich, que desenham os contornos da democracia participativa como meta próxima e atingível, esquecendo que entre ela e o presente se ergue a muralha poderosa de um poder imperial de contornos neofascistas. Hoje gente mais responsável sustenta que a transformação da sociedade capitalista se apresenta como tarefa imediata que deve preceder a tomada do poder político A teorização sobre a construção do poder de baixo para cima», subestimando a luta contra o estado burguês, como a concebe o mexicano Marcos, do EZLN, pode cativar intelectuais de esquerda e segmentos da juventude, mas não preocupa muito as classes dominantes. A convicção de que a transição se pode realizar desde o interior do sistema, na vigência do capitalismo, sem sequer colocar o problema do Estado, do Poder, é ingénua. Sem que os seus defensores disso tomem consciência, eles estão a retomar noutro contexto histórico com outra linguagem, velhas teses reformistas de Edward Bernstein. Na prática o que propõem não é uma nova lógica socialista e revolucionária, mas a humanização do capitalismo. O que é – insisto – uma impossibilidade absoluta, por ser incompatível com a própria essência do sistema. O movimento, contrariamente ao que afirmava Bernstein, não é tudo, mas quase nada, como sustentou Rosa Luxemburgo ao desmontar-lhe as teses revisionistas e oportunistas. A meta das grandes lutas do nosso tempo não é o enfraquecimento gradual do capitalismo, reformando-o de dentro do sistema, mas sim o seu desaparecimento.

As pompas do discurso, em francês, português, inglês, espanhol, italiano ou alemão em torno do chamado «socialismo democrático» não alteram a realidade: a social democracia europeia, transcorrido um século, não acrescentou, na sua teorização reformista, praticamente nada às formulações de Bernstein.

No seu livro «O poder da ideologia»(2), István Mészáros, aqui presente, já lembrava que – cito - «Nenhum acontecimento ou desenvolvimento novo pode afectar de modo significativo a perspectiva estratégica da social democracia ocidental orientada para a justificativa apologética da sua escolha original — o caminho da reforma estritamente gradual e a rejeição categórica da possibilidade de mudança revolucionária — e para a confirmação aprioristica da perfeição da estratégia adoptada. A ultima coisa que esta perspectiva necessita, ou poderia trazer á tona sem se destruir, seriam princípios teóricos realmente novos e objectivos radicalmente reorientados (...) Na realidade, as «mudanças graduais » legitimadas da teoria social democrata não são sequer graduais em qualquer sentido da palavra (isto é, mudanças adequadas para assegurar, ainda que lentamente, a prometida transição para uma sociedade muito diferente –socialista )mas meramente conciliatórias. A sua premissa, admitida mais ou menos abertamente, é a necessária exclusão, de toda a mudança estrutural radical, por qualquer meio (repressivo ou não) que a«ordem constitucional» estabelecida tenha à disposição.»

Aliás as mudanças graduais da social democracia reformista, introduzidas na Europa por via parlamentar desde o inicio do século podem ser constitucionalmente derrubadas também por via legislativa. E isso tem sido feito sob a égide dos governos neoliberais. Em Portugal o processo desenvolveu-se tanto por iniciativa de governos do PS como de partidos da direita quimicamente pura, empenhados uns e outros em destruir as nacionalizações e a reforma agraria e em aniquilar conquistas dos trabalhadores alcançadas durante o período revolucionário do general Vasco Gonçalves.

Os partidos revolucionários não devem permanecer á margem dos processos eleitorais. Seria uma atitude romântica, muito negativa. Mas a sua participação nos parlamentos implica, para serem coerentes, a recusa de qualquer tipo de concessões ao sistema. Estas costumam acabar em compromissos e mesmo alianças como aquelas que conduziram ao desaparecimento do Partido Comunista Italiano e à actual descaracterização, para não dizer decadência, dos Partidos Comunistas francês e espanhol.

Volto a citar Mészáros:

«O quadro da orientação estratégica da socialdemocracia ocidental apresenta um fatídico nó cego ideológico. As insuperáveis limitações da política parlamentarista como tal para obter o domínio das forças controladoras do metabolismo social capitalista jamais serão sequer consideradas e muito menos contestadas seriamente a partir das mudanças em curso e das novas possibilidades emergentes, e em resposta a elas. Ao contrário, em consequência da sua carcaça institucional paralisadora, a teoria social democrata é transformada num exercício manipulador de relações publicas com o objectivo de ser eleito ou de permanecer no cargo. Deste modo a classe trabalhadora, como agente social da alternativa socialista, torna-se supérflua e, na verdade, por causa das suas aspirações radicais, totalmente embaraçosa para o partido parlamentarista. Por esta razão deve ser ideologicamente diluída até se tornar irreconhecível» (...)

Mészáros chama a atenção para uma evidencia esquecida: durante décadas de permanência no poder, os partidos social democratas escandinavos, tal como os da França, da Alemanha, da Grã Bretanha não conseguiram (nem pretenderam) realizar mudanças estruturais na ordem económica capitalista. Comportaram-se como administradores dóceis do sistema.

A SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL

A tarefa principal dos partidos revolucionários que lutam contra o capitalismo globalizado deveria consistir hoje em trabalhar pelo fortalecimento e ampliação das forças que combatem o imperialismo, hegemonizado pelo sistema de poder neonazi dos EUA.

As condições objectivas são favoráveis no momento em que o povo do Iraque, numa resistência que assume as proporções de uma insurreição contra os invasores, surge como herói colectivo, batendo-se pela humanidade inteira.

São entretanto enormes as dificuldades a superar para que os povos tomem consciência de que a defesa do planeta depende como nunca da sua mobilização solidária com as vitimas das agressões imperiais. Aos efeitos de uma manipulação mediática perversa e alienante, concebida cientificamente, somam-se as consequências paralisantes da acção do reformismo social democrata. As campanhas tendentes a integrar a classe trabalhadora no sistema, persuadindo-a de que somente alianças eleitorais amplas podem aproximá-la dos seus objectivos são anestesiantes. Na Europa Ocidental sobretudo o espirito combativo dos trabalhadores caiu acentuadamente no ultimo meio século. O rumo das coisas no Brasil e na Argentina confirma que um populismo reformista em determinadas situações neutraliza as melhores potencialidades combativas das vitimas do sistema.

A solidariedade internacional somente pode funcionar no âmbito de uma nova concepção estratégica da luta orientada para uma articulação organizacional de acções ambiciosas da classe trabalhadora. Tais acções são objectivamente favorecidas pelo agravamento da crise estrutural do capitalismo.

Na impossibilidade, por ora, de um plano mundial de luta, as forças progressistas mais lúcidas, em cada continente, em cada pais, golpearão tanto mais o sistema de poder aí dominante quanto maior for a sua capacidade para articular e executar acções concretas, de âmbito nacional e internacional, que contribuam para inviabilizar os projectos do imperialismo e das burguesias dele dependentes.

A reconstituição da solidariedade internacional, de acordo com as transformações ocorridas no mundo, é, portanto, um dos maiores desafios que se colocam às organizações e partidos revolucionários.

Neste contexto, a definição da frente de batalha principal e das frentes complementares adquire grande importância, condicionando o tipo, a dimensão e os fins das iniciativas a promover.

Se admitirmos que para o imperialismo estadunidense a frente prioritária se localiza actualmente na Ásia, na área onde o malogro da sua estratégia mais contribui para aprofundar a crise interna do sistema, impõe-se uma conclusão: dinamizar a luta contra a guerra passou a ser a tarefa prioritária das forças progressistas em todo o mundo.

Trata-se de uma luta em que podem participar dezenas de milhões de pessoas com mundividências muito diferentes.

A maré da contestação assumiu proporções gigantescas em Fevereiro e março de 2003, quando mais de 20 milhões de pessoas saíram às ruas em grandes cidades para condenar a guerra. Entretanto, depois de ocupado o Iraque, o protesto caiu bruscamente. As massas não perceberam então que a ocupação de Bagdad ficaria a assinalar o começo de uma longa guerra de libertação.

É necessário que a maré do protesto volte a subir. O momento é muito propicio para isso. A insurreição do povo iraquiano desorientou Washington, que perdeu a iniciativa, passando á defensiva no plano político, e sofrendo duros golpes no terreno militar.

No primeiro aniversário da agressão ao Iraque milhões de pessoas voltaram a tomar as ruas em muitas cidades. Em Roma foram quase três milhões, em Barcelona 150 000, em Madrid 100 000. É significativo que a Itália e a Espanha, por iniciativa de governos de direita, tenham enviado para o Iraque importantes contingentes militares.

Mas a jornada de protesto não apresentou, contudo, a nível mundial a amplitude das do ano anterior.

Na América Latina a participação popular foi fraquíssima.

A oportunidade para ampliar a solidariedade com o Iraque - repito mais uma vez - é óptima. A insurreição popular assumiu ali proporções que alarmam a Casa Branca e o Pentágono. O desmascaramento do novo governo títere e a exigência da retirada das tropas estrangeiras encontram cada vez maior receptividade à escala mundial. É preciso também insistir na denuncia dos crimes cometidos pelas forças da Grã Bretanha, dos EUA e dos seus satélites, e prosseguir com a desmontagem da campanha que apresenta como rebeldes e terroristas os patriotas que resistem à ocupação. O simples facto de Bush fazer da luta contra o terrorismo a alavanca da sua campanha eleitoral envolve um convite á reflexão. É um dever recordar que as guerras de agressão contra os povos do Iraque e do Afeganistão resultaram, segundo ele, da necessidade de combater o terrorismo. É importante que em todo o mundo a classe trabalhadora tome consciência de que o terrorismo de Estado estadunidense –repito- assumiu já contornos neofascistas.

Camaradas e amigos

Na Europa estremecem os alicerces de uma União Europeia cujos governos, não obstante as contradições de interesses existentes, actuam no fundamental como cúmplices do imperialismo.

Na América Latina emocionantes lutas se perfilam no horizonte. Os protestos contra a guerra coincidem com a luta contra o Plano Colômbia e o Puebla-Panamá, tal como a exigência do encerramento das bases norte-americanas, incluindo a de Guantanamo. Essa exigência tende a assumir maior amplitude no momento em que o Pentágono pretende reforçar a sua implantação militar na Amazónia e na América Central.

A jornada continental contra a ALCA será também um gesto de solidariedade com aqueles que no Iraque, no Afeganistão e na Palestina se batem contra o sistema. O mesmo se pode dizer da acção continental de solidariedade com aqueles que se manifestaram nos EUA durante a Convenção Republicana, contra a reeleição de Bush.

Não é impossível que o senador Kerry, se eleito (o que parece pouco provável), na tentativa de branquear a imagem da democracia no seu pais, decida tornar públicos documentos secretos altamente comprometedores para a Administração Bush. Essa é uma velha prática dos presidentes dos EUA: denunciar crimes daqueles que os precederam na Casa Branca.

Seria, entretanto, uma ingenuidade acreditar que a simples mudança de presidente determinaria uma guinada de 180 graus na política externa dos EUA. Kerry e o seu companheiro Edwards contestam o calendário da guerra, a estratégia utilizada e a metodologia. A principal acusação a Bush é a de ter mentido ao povo dos EUA a partir de informações falsas, afirmando que o Iraque possuía armas de extinção maciça. Mas Kerry não condena a agressão; aprova-a. E na sua campanha já advertiu que defende a permanência no Iraque das tropas dos EUA. É significativo que tenha criticado asperamente Zapatero quando o novo governo de Madrid, respeitando um compromisso assumido, decidiu retirar as forças espanholas daquele país. Um dos seus objectivos é comprometer a França e a Alemanha naquilo a que chama «a reconstrução do Iraque».

O problema dos EUA não é fundamentalmente o do ocupante da Casa Branca. A raiz do mal está sobretudo no sistema de poder, na estratégia imperial de dominação, inseparável do funcionamento das engrenagens do capitalismo globalizado, corroído por uma crise estrutural.

Camaradas, amigos

A alternativa Socialismo ou Barbárie é, por si só, definidora de uma época simultaneamente trágica e fascinante. Se conseguirmos travar a marcha para o abismo, o homem poderá, finalmente, caminhar pelas grandes alamedas de acesso a um mundo que responda a aspirações eternas da sua condição. Mas o desfecho é, por ora, uma incógnita. Dependerá das actuais gerações. É indispensável derrotar um monstruoso sistema de dominação, um IV Reich em formação.

Nessa batalha ecuménica a participação de organizações e partidos revolucionários de novo tipo assumirá enorme significado. Mas onde estão eles? — pergunta-se. Admito que muitos vão definir-se e crescer no próprio processo de luta.

Entretanto, a tarefa de criar condições para acelerar a crise do sistema imperial, através da mobilização dos povos, exige esclarecer a questão fundamental da(s) alternativa(s). Insistir pela elaboração imediata de uma alternativa teórica ao neoliberalismo, de âmbito mundial, somente pode conduzir a debates estéreis, como já afirmei. Na actual fase histórica esse objectivo é utópico.

O consenso em torno de um projecto de sociedade futura de povos de forças políticas e sociais distanciadas por ideologias e vivências culturais muito diferentes, quando não antagónicas, é — não me canso de repetir tal evidência — uma impossibilidade.

Mas a mobilização mundial orientada para acções de luta — de cidadãos com ideologias e culturas diferenciadas — contra a guerra e o terrorismo de estado que a promove, essa é possível, como já ficou demonstrado no ensaio geral de Fevereiro de 2003. Levar mais longe essas acções, multiplicá-las, ampliar-lhes os objectivos no decurso da luta, inclui-las numa plataforma comum — eis o desafio maior que enfrentam hoje os revolucionários de todas as nacionalidades.

A história da humanidade apresenta-se indissoluvelmente ligada a desafios que na aparência se apresentavam como insuperáveis. A Revolução francesa de 1789 nasceu como um desses desafios. O mesmo se verificou com a Revolução Russa de Outubro de 1917. E ambas venceram.

Ninguém diria que nos anos 60 que o Vietnam obrigaria os EUA a dobrarem os joelhos e retirarem-se, derrotados. E isso aconteceu.

Há poucos meses a ideia de uma insurreição popular no Iraque era recebida com sorrisos. Hoje, ela é uma realidade.

Sou optimista. A vitória está ao nosso alcance. E nela a juventude, como os intelectuais, tem, a nível mundial, um insubstituível papel a desempenhar ao lado da classe trabalhadora. A luta contra o sistema imperial não visa já somente mudar a vida. Hoje, como diz Georges Gastaud, é para a salvar que se torna indispensável abolir a exploração.


Notas de rodapé:

(1) Jonh Holloway, Cambiar el mundo sin tomar el poder. Ed. da revista argentina Herramienta, Buenos Aires, e da Universidade Autonoma de Puebla, México, 2001. (retornar ao texto)

(2) István Mészáros, The Power of Ideology, Harvester Wheatshea, Londres, 1989 (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021