Globalizar a luta em defesa da humanidade

Miguel Urbano Rodrigues

1 de março de 2005


Primeira Edição: Excerto da introdução e dos capítulos dedicados às lutas na Colômbia e na Venezuela na comunicação do autor ao Seminário Internacional do Partido del Trabajo – LOS PARTIDOS Y LA NUEVA SOCIEDAD – a realizar na capital do México de 4 a 6 de Março de 2005.

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


O fracasso da farsa eleitoral montada no Iraque representou uma derrota política para o imperialismo estadunidense.

O enorme poder de desinformação da gigantesca máquina mediática dos EUA não consegue esconder que 150 mil soldados do exército de ocupação estavam nas ruas das grandes cidades do centro e do sul onde a comparência às urnas foi mais elevada. Mas durante o dia bombas explodiram por todo o pais. Pela manhã a embaixada dos EUA foi bombardeada.

Ao apresentar a farsa como vitória da democracia e da liberdade, George Bush comportou-se como personagem de Kafka.

O rumo da história nos próximos anos será marcado por uma evidência: a guerra do Iraque é uma guerra perdida para o sistema de poder imperial neofascista que aspira ao domínio perpétuo sobre a humanidade.

As mudanças cosméticas introduzidas na Alta Administração no início do segundo mandato de George Bush foram acompanhadas de uma ofensiva de propaganda pouco inteligente com o objectivo de persuadir a opinião pública internacional de que algo de fundamental seria alterado na estratégia imperial. Analistas próximos da Casa Branca, para promover a confusão, falam do advento de um «Novo Bush». Mas essas ridículas manobras deixam transparecer o desespero da extrema-direita estadunidense.

O discurso contraditório da senhorita Condoleeza Rice – ameaças a uns e sorrisos para outros – confirma, aliás, que a irracionalidade e o messianismo persistem na condução da estratégia de um sistema de poder cujo símbolo é um político colocado na Presidência dos EUA precisamente pela sua indigência mental.

O conceito de solidariedade dos países desenvolvidos ficou aliás bem iluminado pela atitude assumida perante a tragédia de Dezembro na área do índico. O total da ajuda material dos EUA aos países golpeados pelo tsunami (saldo de quase 300 mil mortos e destruições incalculáveis) não atingiu mil milhões de dólares. Semanas depois, Bush pedia ao Congresso mais 85,1 mil milhões de dólares para gastos suplementares com a guerra.

EM DEFESA DAS FARC-EP

Importantes frentes de luta na América Latina são as da solidariedade com a insurgência colombiana e a Revolução Bolivariana da Venezuela. Tem faltado gente disponível para o combate na primeira delas.

Este Seminário da PT é um dos poucos eventos internacionais onde é possível hoje falar em defesa da organização revolucionária de Manuel Marulanda e do ELN.

Devemos reconhecer o óbvio. O governo de Washington conseguiu nos últimos anos, através de pressões ilegítimas e de uma ininterrupta campanha de calúnias, satanizar a insurgência, dificultando a solidariedade.

As FARC-EP são o alvo principal. Os processos mais abjectos foram utilizados por George Bush e pelo Departamento de Estado, incluindo a chantagem económica, para que a União Europeia incluísse as FARC na lista de organizações terroristas. Desde então os seus membros somente podem movimentar-se clandestinamente no Velho Mundo. álvaro Uribe, um presidente neofascista, pôs a prémio a cabeça dos principais dirigentes das FARC-EP. O poder de intimidação é tão forte que alguns partidos comunistas cessaram os contactos com as FARC.

No Continente americano o panorama não é muito diferente. Os companheiros das FARC foram expulsos dos países onde mantinham delegações. Foi o que ocorreu aqui, no México, onde Fox cedeu ao ultimato de Bush.

Neste contexto é muito positivo que 50 Partidos Comunistas reunidos em Atenas no XVII Congresso do PCG tenham assinado um protesto contra o sequestro do comandante Rodrigo Granda e a extradição para os EUA do comandante Simon Trinidad. A iniciativa fortalece a corrente da solidariedade.

Na Colômbia o imperialismo e a oligarquia por ele financiada e armada enfrentam uma situação diferente de qualquer outra. A existência ali de importantes organizações guerrilheiras constitui um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC sobretudo confirma que em circunstancias históricas, geográficas e sociais excepcionais, a luta armada continua a ser possível na América latina. Há muitos anos que a oligarquia colombiana anuncia o fim do movimento-partido de Manuel Marulanda. Mas os factos desmentem essa afirmação. Nestas quatro décadas o núcleo inicial de 47 guerrilheiros, de Marquetália, transformou-se num exército popular de 17 mil combatentes que luta em 60 frentes, infligindo duras derrotas às mais poderosas forças armadas da América Latina (quase 300 mil homens). Periodicamente, generais com comandos operacionais importantes têm sido demitidos, o que é esclarecedor.

O Plano Patriota, integrado no Plano Colômbia, fracassou como os anteriores. Em Fevereiro, contra-atacando em Departamentos diferentes, sobretudo no Meta, no Caquetá, no Putumayo e em Nariño, as FARC abateram dezenas de soldados e marines em combates vitoriosos.

Neste contexto, o imperialismo e Uribe (que tinham organizado com êxito o sequestro do comandante Simón Trinidad) montaram a operação do sequestro em Caracas do comandante Ricardo Gonzalez (Rodrigo Granda), responsável pelas Relações Internacionais das FARC-EP.

Mas Hugo Chavez não é Lúcio Gutierrez. A violação da soberania venezuelana pelos serviços de inteligência colombianos, com muitas cumplicidades, incluindo a da CIA, provocou um escândalo internacional maiúsculo. Washington pretendia criar um sério choque entre a Venezuela e a Colômbia utilizando o seu fiel aliado Uribe Vélez. Mas a manobra fracassou.

Companheiros

Identifico no comandante Ricardo Gonzalez um dos revolucionários mais puros e autênticos que conheci na minha longa vida. é o tipo de comunista que me traz à memória os bolcheviques da geração de Outubro, companheiros de Lenine. Entrevistei-o mais de uma vez.

A ultima delas antes do sequestro. Foi convidado por ele que em Junho de 2001 passei algumas semanas em acampamentos das FARC numa inesquecível experiência que me permitiu conhecer o quotidiano da guerrilha e a comandantes como Marulanda e Raul Reyes, e escrever sobre essa legendária organização de combatentes, tão caluniada, a qual, pelo heroísmo, efectivos e firmeza ideológica somente encontra precedente no Vietnam de Ho Chi-min e Giap.

Sair nestes dias em defesa de Ricardo Gonzalez para exigir a sua libertação – assim como a de Simón Trinidad – é assumir o lema do Encontro de Caracas em Defesa da Humanidade.

O DESAFIO VENEZUELANO

Creio haver entre nós, aqui reunidos, consenso no tocante à necessidade de ampliar a solidariedade com a Revolução bolivariana.

A grande maioria do povo da Venezuela comporta-se hoje como uma vanguarda que encarna aspirações não somente dos povos da América Latina como de quantos lutam por uma independência real e por valores e princípios ameaçados pela estratégia imperial de dominação planetária.

A Venezuela emerge hoje, num mundo trágico e caótico, como um fascinante laboratório social no qual se desenvolve uma luta de classes como não se conhecia desde as revoluções russas de 1917. Na pátria de Bolívar e Ezequiel Zamora foi retomado um velho desafio: transformar radicalmente a sociedade e libertá-la da dominação imperialista optando pela via pacífica, isto é, utilizando para o efeito as instituições criadas pela burguesia para servir os seus objectivos, incompatíveis com os do projecto revolucionário.

Os êxitos alcançados por Chavez não devem, porém, levar a uma subestimação das dificuldades que se multiplicam e renascem, inseparáveis da própria dialéctica das vitórias parciais. O desafio é tremendo porque a burguesia, ao fim e ao cabo, não entrega nunca o poder sem luta. Há limites para a via dita pacifica.

A vitória por ampla margem de Chavez no referendo revogatório, após uma campanha em que a oposição, estimulada e financiada pelo imperialismo, desceu a níveis de perversão incomuns, foi um acontecimento de significado mundial. O povo venezuelano, assumindo mais uma vez o papel de sujeito da historia, voltou a derrotar as forças unidas da oligarquia crioula e do imperialismo. Sem a sua participação decisiva não teria sido possível o triunfo na confrontação com a engrenagem golpista que pretendia – tal como no golpe de 11 de Abril de 2002 e no lock out petrolífero – derrubar o presidente Chavez e destruir a Revolução bolivariana.

O Encontro Mundial de Intelectuais em Defesa da Humanidade abriu as portas em Caracas ao aprofundamento da solidariedade dos povos com a Revolução bolivariana.

Um alerta, companheiros. O interesse despertado pela Revolução bolivariana não é acompanhado em dezenas de países pelo conhecimento do quadro político e social existente quando Chavez conquistou a Presidência e dos factos ligados à cadeia de conspirações posterior. A própria expressão Revolução bolivariana gera ainda perplexidade. Na Europa, nos EUA, na ásia e na áfrica, Bolívar continua quase um desconhecido, não obstante ser um gigante na história.

Hugo Chavez tem afirmado repetidamente que a Revolução bolivariana não é, contrariamente ao que ocorreu com a chilena, uma revolução desarmada. Essa evidencia não deve, contudo, levar-nos a esquecer que mais de uma centena de oficiais superiores das forças armadas estiveram directa ou passivamente envolvidos no golpe de Abril de 2002.

O sequestro do comandante Ricardo Gonzalez das FARC em pleno centro de Caracas, com a provada cumplicidade de polícias venezuelanos, envolve um convite à reflexão.

O muito que se fez até agora na Venezuela é insuficiente – sejamos realistas – para que a Revolução possa atingir as suas metas. é longo e semeado de obstáculos o caminho a percorrer.

Rodolfo Sanz, cientista político e dirigente do Partido Pátria para Todos escreve no seu livro Dialéctica de una Victoria que uma segunda assembleia constituinte será necessária para «transformar a estrutura do Estado, para derrubar o que permanece em pé do antigo aparelho da IV Republica». O governo não controla a totalidade do Estado, nomeadamente em sectores cruciais como a Educação. O Poder Judicial em momentos decisivos assumiu uma posição hostil.

No Encontro Mundial de Intelectuais Chavez radicalizou o discurso, anunciando que a revolução entrou numa nova fase.

Os factos confirmam essa tomada de posição. Entretanto, a agressividade do imperialismo para com o governo de Chavez acentuou-se. Nas suas críticas à Revolução bolivariana Condoleeza Rice viola ostensivamente as normas internacionais que regulamentam as relações entre estados soberanos.

István Meszaros lembra-nos que Washington tem adoptado sempre uma atitude de hostilidade perante todos os processos revolucionários que desde o final da II Guerra Mundial fixaram como objectivo a introdução de mudanças estruturais radicais na ordem capitalista anterior.

O projecto transformador da Unidade Popular no Chile era inaceitável para os EUA porque ameaçava o capitalismo.

Julgo útil recordar aqui que a Revolução Portuguesa de Abril de 74 também foi identificada em Washington como ameaça ao sistema. O imperialismo estadunidense e a social-democracia europeia uniram esforços para a travar. Nesse caso não foi necessário recorrer ao golpe de estado para impedir o seu avanço porque o Partido Socialista de Mário Soares cumpriu o papel que lhe distribuíram, contribuindo decisivamente para a ruptura da unidade entre a vanguarda militar, o MFA, e o movimento popular, o que mudou a correlação de forças em beneficio da direita. Merece reflexão a hostilidade que políticos como o sueco Olaf Palme e o alemão Willy Brandt demonstraram desde o inicio para com a Revolução Portuguesa. Pela sua solidariedade com processos como o da Revolução Sandinista e a sua repulsa pela ditadura de Pinochet tinham adquirido a imagem de políticos progressistas. Mas a sua solidariedade em Portugal, pais europeu, beneficiou ostensivamente partidos como o PS e o PSD, promotores da contra-revolução. A ameaça ao capitalismo, que identificavam em Portugal, alarmou-os. Ambos compreenderam que a Revolução Portuguesa, com uma reforma agrária radical e a nacionalização da banca e das indústrias estratégicas, era a mais profunda ocorrida na Europa Ocidental, desde a Comuna de Paris.

Hoje, Washington não esconde a sua satisfação perante o rumo capitulador adoptado no Brasil pelo governo de Lula e não manifesta inquietação relativamente à política de Kirchner na Argentina. Em ambos os casos, a «ordem social» preexistente não é posta em causa pelas políticas de dirigentes que ignoram os compromissos assumidos com o povo.

O grande medo que a Venezuela inspira resulta precisamente da fidelidade de Chavez ao compromisso popular. A Revolução Bolivariana é vista por Bush como ameaça ao sistema capitalista. O projecto, embora não se defina ainda como socialista está orientado para uma mudança estrutural radical.


Inclusão: 04/11/2021