A venda de um novo Bush — operação de marketing

Miguel Urbano Rodrigues

17 de março de 2005


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


A nomeação por George Bush de Karen Hughes para subsecretária de Estado da Diplomacia Pública passou quase despercebida. Essa senhora, sua grande amiga e assessora política, é uma militante da extrema-direita. Foi-lhe confiada uma tarefa antecipadamente destinada a fracassar: mudar a imagem dos EUA no mundo.

No momento em que personalidades portuguesas como Mário Soares e o actual ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, aderiram apressadamente à campanha de marketing que sugere uma viragem na estratégia de dominação planetária do sistema de poder dos EUA julgo útil esclarecer que "o novo estilo" da política exterior dos EUA, trombeteado como grande acontecimento pelos média, é ficcional, integrando-se numa campanha mistificadora.

A Administração republicana estava consciente de que o prestígio dos EUA no mundo caiu para um nível baixíssimo em consequência das guerras de agressão empreendidas à revelia do Conselho de Segurança da ONU e dos crimes nelas cometidos. Daí a necessidade urgente de tomar iniciativas para melhorar a imagem do sistema e do seu funcionamento.

Condoleeza Rice, a Condy de Bush, deu o sinal da "mudança". Apareceu nas capitais europeias, distribuindo abraços. O discurso truculento sobre a "velha Europa" decadente, foi substituído pelo discurso sobre "a aliança perpetua e indivisível" e a nova era da cooperação. A tese das acções militares unilaterais foi de momento engavetada. O secretário da Defesa Rumsfeld trocou o seu esgar por sorrisos e apresenta agora a Europa como o primeiro parceiro de Washington.

Thomas Friedman — o ex assessor da senhora Madeleine Albright — utiliza a sua coluna no New York Times para entoar cânticos ao novo e revolucionário papel dos EUA no mundo.

Cabe perguntar: o que mudou de fundamental?

Nada, com excepção do palavreado.

O sociólogo estadunidense James Petras e a escritora canadiana Naomi Klein, duas figuras cimeiras da intelligentsia mundial, em artigos publicados respectivamente no diário mexicano La Jornada e no jornal The Nation, desmontaram bem a ofensiva de marketing da Administração Bush. Ela só "engana" aqueles que a esperavam, como os colunistas da imprensa portuguesa, para fazer dela um instrumento de desinformação.

Os falcões do Presidente permanecem firmes. Rumsfeld, Paul Wolfowitz — agora indicado pela Casa Branca para a presidência do Banco Mundial — e Feith — os três arquitectos das agressões contra o Afeganistão e o Iraque — continuam a por e dispor no Pentágono, gozando da confiança total de Bush. Não escondem que planeiam novas guerras. A jovem falcoa Condoleeza alinha com eles, multiplicando ameaças dirigidas ao Irão, à Coreia do Norte e a Cuba. O ultimato à Síria demonstrou com clareza meridiana que Washington pretende recolonizar o Líbano, transformando aquele país num protectorado.

O novo chefe da Segurança pátria é agora Michael Chertoff, um sionista militante responsável, após o 11 de Setembro, pelas detenções maciças de imigrantes muçulmanos sobre os quais não incidia qualquer acusação. Chertoff foi, aliás, o autor da famosa Lei Patriótica, que legalizou prisões arbitrarias e estimulou a discriminação racial e a tortura nas prisões.

O subsecretário de Estado para os Assuntos da América Latina continua a ser Marc Grossman, um anti-chavista fanático que concebeu e dinamizou campanhas contra a Venezuela Bolivariana.

Alberto Gonzalez, que fez a defesa da tortura no Iraque em nome da "razão de Estado", foi promovido a Procurador Geral da União, um dos mais altos cargos da Administração.

John Bolton, outro criminoso, falcão assumido, é o novo embaixador de Washington na ONU.

O actual director da CIA, Porter Goss, recentemente nomeado, foi em Miami o promotor de operações clandestinas terroristas da máfia cubana contra a Cuba revolucionária.

Petras não exagera ao afirmar que "a ofensiva do encanto" de Bush é «uma fachada provocadora e deliberada para dividir e conquistar os líderes europeus a fim de que apoiem antigas e novas guerras".

Alegam os epígonos de serviço que Bush & Condy, em súbita reviravolta, não falam já em iniciar uma guerra contra o Irão. Agora agitam o espantalho dos incentivos a Teerão e dizem confiar nos aliados europeus, como mediadores, para que o governo iraniano renuncie ao seu programa nuclear.

Santa hipocrisia! O presidente Katami aproveitou o seu encontro com Hugo Chavez para desmascarar a manobra de Washington. O Irão denunciou como envenenados os "incentivos" com que lhe acenavam em troca da renúncia ao seu direito de utilizar a energia nuclear para fins pacíficos.

O objectivo de George Bush e seus falcões é claro. Conscientes de que a "mediação" europeia fracassará, retomarão, na altura própria a linguagem da guerra. Gostariam então de substituir a cenoura pelo cacete, no caso o arsenal bélico.

Um alto funcionário dos EUA em declarações à Agencia Reuters abriu o jogo: "Se em Junho não se tiver chegado a um resultado nas negociações — declarou — os europeus concordarão em levar a questão ao Conselho de Segurança da ONU". E admitiu que, então, chegaria o momento de desencadear "um ataque preventivo" como no Iraque, "para implantar a democracia" no país.

Os projectos da Casa Branca e do Pentágono deixam, entretanto, transparecer a insuficiência cultural do Presidente e dos seus colaboradores mais íntimos.

Em primeiro lugar subestimam as contradições entre Washington e os aliados europeus. Sem excepção estes encaram como acontecimento calamitoso uma nova guerra norte-americana no Oriente Médio.

Em segundo lugar, os EUA não estão em condições de invadir o Irão. Atolados no Iraque, onde a guerra está perdida, não dispõem de homens nem de recursos financeiros (os défices comercial, fiscal e de conta corrente, astronómicos, continuam a aumentar, bem como a divida externa, a maior do mundo) para se envolverem num conflito de proporções muito maiores.

A quase totalidade do seu actual exército profissional — uns 250 mil soldados preparados para utilizar armas de alta tecnologia — encontra-se no Iraque, na Coreia e em bases militares de grande importância estratégica.

Os generais mais sensatos do Pentágono não desconhecem, aliás, que uma invasão do Irão colocaria problemas insolúveis. O país, com 1 650 000 quilómetros quadrados, é quatro vezes maior do que o Iraque, tem 70 milhões de habitantes, praticamente uma única religião e o seu povo assume com orgulho a herança de uma das culturas — a Persa — que mais decisivamente contribuiu para o progresso da humanidade.

Washington poderia – é uma hipótese – optar não por um ataque global de grande envergadura, mas por um bombardeamento de instalações nucleares, recorrendo eventualmente a Israel, o aliado fidelíssimo. Mas o resultado dessa variante — reconhece a própria imprensa estadunidense — seria pífio, apenas contribuindo para estimular a vaga de anti-americanismo no mundo islâmico.

O que preocupa a Casa Branca e motiva a campanha anti-iraniana não é aliás o programa nuclear da pátria de Omar Kayan. O projecto iraniano de criar uma Bolsa de Valores em Teerão na qual o petróleo será cotizado em euros alarmou Washington. Segundo o organograma aprovado essa Bolsa começará a funcionar no início de 2006. O director do projecto, Mohamad Javad Asempour, admite que a iniciativa do seu país poderá atrair operadores de outros estados da OPEP e da área do Cáspio.

No Iraque as coisas também correm mal para os EUA.

Naomi Klein lembra-nos que o namoro curdo está a custar caro aos EUA. O ex-proconsul Paul Bremer concebeu uma mascarada eleitoral que garantiu àquela minoria étnica 27% dos lugares da Assembleia Nacional não obstante ela representar apenas 15% da população iraquiana. Como a Constituição imposta por Washington exige maiorias altíssimas para decisões importantes, "os curdos mantêm agora o pais sequestrado".

"O seu objectivo principal — escreve Naomi — é controlar Kirkuk; se o alcançarem e depois decidirem proclamar a independência o Curdistão iraquiano incluirá os grandes campos petrolíferos do norte".

Conclusão: a aliança de Washington com os curdos iraquianos entregou a estes na prática um poder de veto sobre o futuro do Estado fantoche instalado em Bagdad. É compreensível que o governo da Turquia — país onde vivem mais de 15 milhões de curdos — encare com muita apreensão o desenvolvimento da situação criada na sua fronteira do sudeste.

O panorama na Região é sombrio. Aponta para o malogro inevitável da missão confiada à subsecretária de Estado da Diplomacia Publica.

Na própria Casa Branca o cepticismo quanto à melhora da imagem dos EUA é tão forte que George Bush mantem intacta a sua confiança na Diplomacia Secreta, bem enraizada na tradição nacional. A nomeação de John Negroponte para chefe da recém criada Agencia Nacional de Inteligência expressa a dualidade de políticas na aparência antagónicas. Negroponte que foi o sucessor de Bremer em Bagdad é um veterano de operações encobertas. Orgulha-se de ter iniciado a sua carreira política como organizador dos esquadrões da morte nas Honduras e do apoio clandestino aos contra nicaraguenses. Maus leitores de Clausewitz, tanto ele como o seu Presidente acreditam que o recurso ao "poder duro" (a guerra preventiva) é o desfecho natural do "poder brando" (a diplomacia).

Reflectindo sobre a complexidade da conjuntura, James Petras lançou um alerta: "Os dirigentes da Europa terão de optar entre tomar um rumo divergente do poder global através do comércio, da diplomacia e da pressão diplomática, ou capitular perante um regime dominado por civis militaristas, extremistas, movidos pelo desejo irracional de um confronto militar com a China, de intervirem na Venezuela, de destruírem os adversários de Israel no Médio Oriente, e de provocarem a Rússia".

O discurso do jovem governo socrático de Portugal demonstra que essa evidencia não está a ser captada pelo Partido Socialista.

Serpa, 17/Março/2005


Inclusão: 01/08/2021