Jornadas de confraternização com comunistas mexicanos

Miguel Urbano Rodrigues

21 de março de 2005


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Não conhecia o Norte do México. Estive em algumas das suas cidades no inicio de Março a convite do Partido dos Comunistas daquele país. Foi uma viagem pelo inesperado. Fez-me pensar na jornada de Leopold Bloom no Ulisses de Joyce. Com uma diferença: quase tudo era desconhecido para mim.

Monterrey surgiu-me como cidade não imaginada. A capital do Estado de Nuevo Leon é o pólo da grande indústria mexicana. O primeiro choque aconteceu no aeroporto, ultra moderno, funcional. Caminhando entre mármores ofuscantes, numa atmosfera de luxo, senti-me fora da América Latina.

Monterrey, com quase 6 milhões de habitantes, é uma estranha vitrina do México desenvolvido, uma ilha de riqueza num país onde dezenas milhões vivem abaixo do nível da pobreza não obstante a nação possuir enormes recursos naturais.

Uma burguesia arrogante vive, actua e fala ali como se fosse estadunidense. Não o confessa, mas desenvolveu uma mentalidade anexionista. Gostaria que Monterrey fosse parte do grande pais vizinho.

O urbanismo reflecte esse sentimento.

A modernidade não gera por si só harmonia e beleza. A Macroplaza impressiona pela vastidão. é uma das mais gigantescas praças do Continente. Mas, desumanizada, carece de personalidade. As estatuas dos pais da Independência, Hidalgo e Morelos, de Juarez e do general que fuzilou o imperador Maximiliano, destoam de um projecto anti-popular. Os heróis tutelares estão ali para enganar. O centro administrativo e financeiro, emoldurado por edifícios imponentes mas feios, foi concebido como núcleo isolado. Amplas avenidas de acesso isolam-no do corpo vivo da cidade. Alguém me informou de que facilitam a repressão policial em caso de necessidade.

Monterrey é o paraíso mexicano das transnacionais. Os grandes senhores de Nuevo Leon — alguns descendentes de imigrantes europeus, sobretudo franceses, que chegaram ao país no final do século XIX — proclamam obviamente que a adesão do México ao Tratado de Livre Comercio da América do Norte beneficiou o pais. Mentem. O TLCAN arruinou a agricultura e a indústria nacionais, liquidou praticamente o sector empresarial do Estado e abriu as portas à absorção quase total da banca nacional pela estrangeira. A terra onde nasceu o milho importa hoje mais de seis milhões de toneladas daquele cereal.

As políticas neoliberais desnacionalizadoras, aplicadas por sucessivos governos no quadro do TLCAN, permitiram o enriquecimento galopante de uma minoria, empobrecendo a maioria. Economistas como Arturo Huerta, professor da UNAM, iluminaram bem a profundidade do desastre.

No México o neoliberalismo supostamente modernizador está na origem de situações de contornos surrealistas. O desaparecimento dos caminhos de ferro, por exemplo. Os comboios de passageiros acabaram num país onde uma extensa rede ferroviária desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento. O presidente Zedillo, pressionado pelas transnacionais do automóvel, decidiu extinguir essa rede e vendê-la à Union Pacific dos EUA. Esta manteve somente o tráfego de mercadorias. Semanas depois de terminar o mandato, Zedillo foi nomeado para um alto cargo de direcção na Union Pacific…

Em Monterrey não é transparente a miséria que tanto impressiona os estrangeiros na Cidade do México, a maior cidade do mundo com quase 20 milhões de habitantes. Mas a pobreza exibe-se no casario dos cerros da periferia. A sociedade de classes tenta cobrir com uma capa de verniz as chagas do sistema, mas não consegue ocultá-las.

A atmosfera em Saltillo, a capital do Estado de Coahuila, a uma centena de quilómetros, muda. A cidade, que ronda os 800 mil habitantes, é também um centro industrial, mas ali a burguesia ostenta menos a sua riqueza.

A região, como grande parte do Nordeste, é semi árida, o que torna a pobre agricultura local dependente da escassa água disponível. Menos de 15% do território mexicano é cultivável, mas como o país tem o quádruplo da superfície da Espanha, poderia ser um grande exportador de alimentos se outra fosse a política da classe dominante. A conquista do governo central pela direita acentuou, porem, a subordinação servil dos interesses nacionais aos dos EUA. O presidente Fox, ex-presidente da Coca Cola mexicana, administra o país como dócil instrumento da potência imperial. Neste final de mandato o seu grande objectivo é a abertura — com a cumplicidade do Partido Revolucionário Institucional, o velho PRI — do sector energético ao capital privado, ou seja a privatização do petróleo e da electricidade, o que resta praticamente do outrora mais importante conjunto de empresas publicas da América Latina.

A proximidade dos grandes desertos do Norte terá sido o motivo da criação em Saltillo do Museu do Deserto. Não imaginava a existência de algo semelhante. Num país que faz da museologia uma arte (o Museu de Antropologia da capital é um dos mais belos do mundo), a instituição do Estado de Coahuila abre aos visitantes os portões para uma viagem científica fascinante pelo universo desconhecido dos desertos desde a pré historia à actualidade. As secas duram em certas épocas dez anos. Mas a capacidade de adaptação das plantas e da fauna é tamanha que a vida animal e vegetal nunca morre naquelas solidões onde cactos gigantescos brotam de solos lunares.

Saltillo é muito mais mexicana do que Monterrey. A influência material e cultural dos EUA transparece na organização da vida, na fúria consumista , nos comportamentos individuais. Símbolos do poder imperial aparecem até no vestuário. Mas o humor crioulo responde com imaginação. Em lojas de roupas de marca vi nas montras camisolas com os emblemas do FBI e da CIA. Com uma peculiaridade. No circulo envolvente das três letras do primeiro estava estampada uma definição: Fanáticos Borrachos Irrecuperables. Algo parecido para a Cia.

No centro histórico de Saltillo sobreviveram belos edifícios da época colonial. Foi num desses antigos palácios que tive a oportunidade, em encontro promovido pelo Partido dos Comunistas do México, de falar sobre a crise global do mundo contemporâneo, desenvolvendo o tema "Socialismo ou Barbárie". Tal como na véspera em Monterrey — aí na sede de um Sindicato — o debate durou mais de duas horas. Foi gratificante o contacto com companheiros de luta que, em condições muito desfavoráveis, não somente mantém uma combatividade exemplar como revelam um conhecimento invulgar dos clássicos do marxismo e um interesse absorvente pela marcha das ideias na Europa e na totalidade da América Latina.

No México os programas dos visitantes desconhecem as distâncias. No dia seguinte pela manhã estava na vertente do Pacifico. À tarde, após uma correria de 250 km através de dois estados — Jalisco e Nayarit — fui recebido fraternalmente pelos camaradas do Partido de los Comunistas na cidade de Tepic.

Um encontro com a juventude foi o prólogo de uma palestra na Biblioteca Marx-Lenine em sessão presidida pela sua directora, uma jovem, filha de Alejandro Gascon, o líder histórico do Partido, falecido semanas antes.

Poderia concluir-se que o Partido de los Comunistas tem uma forte implantação nacional e uma bancada no Congresso. Seria, entretanto, uma conclusão errada. Não obstante contar com 10 mil filiados, não conseguiu até hoje obter sequer o registo como organização partidária, sem o qual não pode disputar qualquer eleição. A engrenagem perversa do sistema político mexicano permite absurdos como esse.

Em Tepic, durante quase três horas o debate incidiu prioritariamente sobre as guerras asiáticas do sistema de dominação imperial e as lutas em curso no Continente Americano nomeadamente na Venezuela bolivariana e na Colômbia, bem como o combate ao projecto anexionista da ALCA. A quantidade e qualidade das intervenções reforçou a minha convicção de que a América Latina é neste início do século um laboratório social onde fermenta a vontade de resistência de povos impacientes para assumirem o papel de sujeito transformador da historia. Sentira isso também dias antes ao falar sobre Bolívar na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do México, a convite do núcleo de apoio às Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia (FARC-EP).

Em Tepic fui espontâneo ao expressar no final a minha admiração pelo povo do México, filho de dolorosas fusões cuja síntese inacabada tornou possível a mais bela e profunda cultura das Américas.

A juventude comunista acompanhou-me até ao aeroporto de Tepic, numa despedida que me emocionou. Na manhã seguinte, rumo a Lisboa, voando sobre o Atlântico, repassando imagens e palavras das jornadas mexicanas, subiu em mim um sentimento de confiança na humanidade. Acredito que ela vai sobreviver ao desafio do sistema de poder exterminista de um capitalismo condenado a desaparecer.


Inclusão: 04/11/2021