Recordando Álvaro Cunhal

Miguel Urbano Rodrigues

26 de junho de 2005


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Em Portugal, nas últimas semanas, escreveu-se e falou-se sobre Álvaro Cunhal mais do que recordo ter-se escrito e falado desde o 25 de Abril sobre qualquer outro português.

Li alguns textos muito belos e inteligentes sobre o grande desaparecido. Mas, com poucas excepções, a qualidade, nessa produção torrencial, não correspondeu à quantidade.

Um sistema mediático perverso, dominado por uma grande burguesia que identificou sempre em Álvaro Cunhal um inimigo irredutível do sistema capitalista tinha todo o interesse em que a personagem, o seu pensamento e a sua intervenção na historia surgissem deformados na imagem projectada após a morte.

Esse objectivo foi atingido. Mas o povo português, comparecendo maciçamente no maior funeral de que há memória, rejeitou a deformação. Comunistas e não comunistas desfilaram ombro a ombro no adeus a um revolucionário exemplar que entrou pela porta grande no panteão dos heróis permanentes.

Álvaro Cunhal foi uma personagem irrepetível.

Tinha a marca do diferente sem que para isso fizesse o menor esforço.

Apareceu-me desde que o conheci como um daqueles seres raros vocacionados para fazer bem tudo o que empreendem no caminhar pela vida.

Foi um grande revolucionário. A memória mais densa que dele vai perdurar é a do dirigente e ideólogo comunista de prestígio mundial. Mas o êxito acompanhou-o sempre em todas as frentes de intervenção. Escreveu um romance notável — Até Amanhã Camaradas — e contos, ensaios e narrativas de elevada qualidade literária. A sua tradução do Rei Lear, de Shakespeare, para alem da intimidade profunda com dois grandes idiomas, deixa entrever a complexidade da sua reflexão sobre a obra do genial inglês. Como artista plástico os Desenhos da Prisão anunciam o talento criador do grande pintor que poderia ter sido.

A sua obra teórica será pelo tempo afora de consulta indispensável para a compreensão do Portugal do século XX. Ninguém como ele ilumina as lutas do tempo do fascismo e desce tão fundo na compreensão das estruturas sociais do povo que foi sujeito da breve mas luminosa saga da Revolução de Abril.

Como ideólogo ele tinha a capacidade muito incomum de fazer a ponte entre a teoria e a pratica. Fazia nos recordar Marx pela maneira como do estudo e do conhecimento profundo da história retirava conclusões que o empurravam para a inovação.

Duas gerações de simuladores de cultura que vociferam contra Lenine sem nunca o terem lido teimam em exorcizar Álvaro Cunhal pela sua firme defesa do marxismo-leninismo.

Um partido revolucionário é sempre uma obra colectiva. Mas é transparente que foi decisiva a contribuição de Álvaro Cunhal para a transformação do PCP num grande partido de massas preparado para assumir tarefas históricas que não era possível prever em Abril de 74.

Lenine dizia que sem organização revolucionária não há revolução possível. A sua teoria do Partido — combatida pelos mencheviques — aparece como a coluna vertebral do leninismo.

Obviamente, o PCP não cresceu como partido moldado pelo figurino do partido bolchevique, tal este se apresentava na Revolução de Fevereiro de 17. Mas o leninismo, em Portugal — o fantasma que feriu a sensibilidade de "dissidentes" e "renovadores" ansiosos por aderir a um capitalismo "reformado" e "humanizado" — funcionou como a seiva que permitiu ao PCP manter uma organização e uma firmeza sem as quais não poderia ter respondido a exigências da historia. O centralismo democrático, tal com Lenine o concebia, é infinitamente mais democrático do que os mecanismos de falsa participação montados pelas ditaduras da burguesia de fachada democrática.

Em artigo que escrevi para resistir.info e Alentejo Popular no 91º aniversario de Álvaro Cunhal recordei que "a grande e generosa vaga inicial (de Abril de 74) marcada pelo espontaneísmo, teria baixado rapidamente se o PCP não tivesse conseguido com êxito canalizar, através de uma participação organizada, a combatividade das massas, nas cidades, nas áreas industriais e nos campos do Alentejo e do Ribatejo, para objectivos estratégicos que ultrapassavam largamente as reivindicações conjunturais."

Atrevo-me a afirmar que a poderosa criatividade de Álvaro Cunhal, como estratego se afirmou sobretudo nos anos da escalada contra-revolucionária. Repito aqui o que então escrevi: "Se é um facto que as grandes conquistas de Abril se concretizaram sobretudo no breve período compreendido entre o malogro da intentona da "maioria silenciosa" e o 25 de Novembro, cabe recordar que a tenaz defesa dessas conquistas, quando principiou a contra-revolução, não teria sido viável se na época uma percentagem importante dos trabalhadores não houvesse resistido com lucidez e firmeza à ofensiva restauradora das forças da direita tradicional dirigida pelo Partido Socialista".

A intervenção pessoal de Álvaro Cunhal na estruturação de um colectivo partidário mobilizado para uma luta permanente e dificílima aparece-me como determinante naqueles anos. A sua capacidade de estratego, servida por uma sensibilidade que lhe permitia adoptar as inflexões tácticas indispensáveis com uma rapidez impressionante tornou possível aquilo que desesperou sempre o PSD e o PS: a vitalidade revolucionária do PCP como partido que num batalhar ininterrupto havia adquirido, no quadro de uma democracia já castrada, a estrutura e o perfil que o projectaram no mundo como paradigma de organização que na luta utilizava como guia para a acção o marxismo-leninismo, não com o breviário escolástico a que fora reduzido nos países do Leste e na URSS, mas como teoria (e praxis) criadora em permanente renovação. Tal como Lenine o imaginara.

A atenção dedicada à morte de Álvaro Cunhal como acontecimento — atenção inseparável da ambiguidade que caracteriza a actuação dos dirigentes da burguesia portuguesa — não pode esconder uma evidência: nenhum português contemporâneo (com excepção de Vasco Gonçalves) foi tão caluniado e injuriado como o ex-secretário-geral do PCP.

A sua grandeza feria os inimigos da Revolução.

Em mesas redondas aflitivas pela perversidade e mediocridade da maioria dos analistas, falou-se muito do mito Cunhal. Aventureiros da política, alguns ex-comunistas, esboçaram dele retratos fantasmáticos, como se fora um actor de Hollywood ou um cavalheiro do jet set.

A vida proporcionou-me a oportunidade de trabalhar durante mais de uma década com Álvaro Cunhal. Sempre o vi e senti como um camarada que se assumia, no relacionamento, como alguém que não suportava privilégios, sequer deferências especiais.

O seu talento em debates na TV, a finura no trato e a capacidade de usar o sorriso como arma de resposta a eventuais grosserias terão contribuído para generalizar a ideia do "sedutor".

A lembrança mais forte que conservo dos contactos com ele é a de um camarada que estabelecia uma fronteira muito nítida entre a atitude assumida no trabalho e a adoptada em momentos de convívio.

Álvaro era de uma extraordinária exigência, seco, a roçar pela dureza quando o encontrava para tratar de assuntos a que chamarei políticos. Nesses diálogos nada havia de sedutor no seu estilo. Poucas vezes ouvi dele elogios. E não sinto enleio em revelar que as críticas eram muito frequentes e por vezes severas. Quase sempre justas. Não magoavam, porque, fraternais, elas eram inseparáveis da confiança que transmitia simultaneamente no seu jeito inconfundível.

Finda uma reunião, quando, raramente, sobrava tempo, transmutava-se e, para mim era encantatório ouvi-lo falar de pintura, de história, ou emitir opiniões sobre temas ideológicos que eu colocava.

A minha admiração pelo dirigente e pelo homem cresceu com o tempo. Não foi minimamente afectada pelo seu afastamento da função de secretário-geral.

Nos últimos oito anos, porque vivi longe do pais, só tinha a oportunidade de o rever em breves visitas a Portugal. Visitava-o sempre na sua casa dos Olivais. Impressionava-me a maneira serena com que assumia o envelhecimento e sobretudo a cegueira progressiva. A última conversa prolongada que mantivemos ocorreu na semana em que as torres do World Trade Center, em Nova York ruíram. Recordo que Álvaro, bem informado e muito lúcido, previu a escalada de violência e irracionalidade que o imperialismo estadunidense iria iniciar com a agressão ao povo do Afeganistão.

Lastimo que em Portugal, o sistema mediático que tanto o caluniou em vida não tenha divulgado alguns dos artigos que em dezenas de países foram dedicados ao autor de O Partido com paredes de vidro.

Impressiona o contraste entre muitos desses textos e o tom e o conteúdo da maioria dos depoimentos de políticos da burguesia portuguesa. Li trabalhos sobre Álvaro Cunhal agora publicados no México, no Brasil e noutros países da América Latina que deixam transparecer uma profunda e comovida admiração pelo revolucionário e pelo cidadão. Admiração que se expressa também pela reprodução de paginas dos seus livros e de ensaios e artigos da última fase da sua vida.

Em Portugal os comentários desrespeitosos não me surpreenderam. Prefiro recordar artigos inesperados como o da jornalista São José de Almeida. Sem esconder a sua posição de anticomunista indefectível, o seu artigo sobre Álvaro Cunhal fica como lição de dignidade oferecida a gente que viu na morte do dirigente comunista uma oportunidade para fazer baixa politiquice.

Li textos que, sendo berros de ódio, mancharam os jornais que os divulgaram. Os autores ficam nus na praça pelo seu primarismo. Considero mais negativos depoimentos como os de Mário Soares e Manuel Alegre. O primeiro toca o realejo do Cunhal que sonharia com a implantação de uma "democracia popular" nos moldes das existentes na Europa do Leste. E retoma, desastradamente, a antinomia vencedor-vencido.

Mente conscientemente. Álvaro Cunhal tinha uma opinião muito crítica sobre o funcionamento desses regimes e o trabalho neles desenvolvido pelos partidos ali no poder. Aliás, nunca defendeu para Portugal o partido único.

Mário Soares contempla a historia como campo de um jogo de futebol. E claro, apresenta-se como vencedor, mirando de cima Álvaro Cunhal, o derrotado.

Que pobreza de reflexão, para não dizer indigência!

O 25 de Novembro não foi uma vitória pessoal de Mário Soares. Permanecerá na história como uma derrota do povo português tornada possível pela ruptura da unidade entre o movimento popular e a heterogénea vanguarda militar (abalada por múltiplas divisões) que tornara possível o 25 de Abril. É um facto que Mário Soares desenvolveu uma intensa actividade contra-revolucionaria desde o 11 de Março, mas foi a mudança da relação de forças na sociedade portuguesa que pôs fim ao projecto de Abril. Ao enfeitar-se com as penas de pavão de um vencedor exibe uma imagem bem pequenina da sua dimensão política e humana.

Quanto ao artigo de Manuel Alegre publicado na revista Visão aparece como exemplo de uma atitude de desrespeito. O texto é, na aparência elogioso. Mas a técnica é perversa. O autor atribui a Álvaro palavras e opiniões que ele, morto, não pode desmentir.

Quem conheceu o comunista que foi secretário-geral do PCP sabe que algumas dessas opiniões são incompatíveis com o seu pensamento sobre os temas em causa.

Álvaro Cunhal foi, alias, sempre avesso a confidencias políticas e pessoais.

Nesta homenagem tão insuficiente que se destina também a leitores estrangeiros, recordo com saudade a sua maravilhosa e raríssima faculdade de, usando uma linguagem muito simples, acessível a qualquer pessoa, transmitir ideias e conceitos de elevado conteúdo ideológico.

Muitos anos passarão até que volte a nascer entre nós um homem com a dimensão de grandeza de Álvaro Cunhal. Foi a enterrar o maior português do século XX. Essa evidencia não pode ser apagada. O seu grandioso funeral foi simultaneamente uma herança carregada de lições para o Partido revolucionário que conferiu sentido à sua existência. Oxalá os comunistas portugueses saibam colectivamente interpretá-las, levando-as à prática nas grandes lutas que se esboçam no horizonte.

Serpa, 26 de Junho de 2005


Inclusão: 01/08/2021