Prefácio à edição portuguesa de "Bolívar e a campanha da Venezuela"

Miguel Urbano Rodrigues

5 de agosto de 2005


Primeira Edição: Juvenal Herrera Torres, Bolívar e a Campanha da Venezuela (título original: Bolívar y su Campaña Admirable ), Campo das Letras, Porto, 2005, 133 pgs, ISBN 972-610-956-6.

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Simón Bolívar continua a ser quase um desconhecido para os portugueses. São escassas as obras editadas no país sobre a sua vida, e o pensamento do revolucionário não mereceu a atenção dos nossos historiadores e cientistas políticos.

Na opinião do autor deste livro "o pensamento de Bolívar, tal como acontece com o de Karl Marx, transcende os tempos. Tem e terá continuadores. Por isso se fala do pensamento bolivariano como se fala do pensamento marxista. Cada qual naturalmente com os seus próprios esquemas e estilos. Um e outro, partindo de mundos e realidades diferentes, fizeram a crítica fulminante da opressão existente e traçaram caminhos aos povos".(1)

A actualidade e importância do ensaio agora apresentado pela Campo das Letras é tanto maior quanto na Venezuela, pátria do Libertador, se desenvolve impetuosamente uma revolução que se assume como bolivariana.

Que significa exactamente hoje ser bolivariano?

A leitura da Campanha Admirável de Bolívar responde parcialmente a essa pergunta formulada na Europa por milhões de pessoas, não obstante a obra incidir sobre um acontecimento da juventude do herói.

Juvenal Herrera Torres é um colombiano de Medellin, tratado no seu país como historiador maldito pelos intelectuais da oligarquia. Não lhe perdoam o esforço realizado como universitário e escritor para "recuperar" Bolívar e reflectir sobre a modernidade do seu pensamento político.

Conheci-o em Havana, ali nos tornamos amigos, e tive a oportunidade de o ouvir falar durante muitas horas de Bolívar e da teia de calunias que as forças mais reaccionárias do Continente continuam a tecer em torno do homem, do ideólogo, do soldado, do revolucionário.

É natural. Desde o levantamento que na Venezuela abriu caminho à efémera I República, a vida de Bolívar foi um batalhar permanente pela independência e unidade dos povos da América Latina.

Por ter sido um revolucionário autentico, o Libertador adquiriu o perfil de um inimigo para aqueles que tudo fizeram para lhe destruir a obra. Não podendo ignorar a sua intervenção na Historia, criaram o mito dos dois Bolívares: enaltecem o general vitorioso, mas satanizam o estadista, o pensador político e o reformador social revolucionário.

Juvenal Herrera desmonta essa tese fantasista. Neste livro, um dos muitos em que estuda Bolívar, usa como instrumento para atingir o objectivo uma das suas campanhas menos conhecidas.

O discurso do historiador permite ao leitor, colocado no cenário dos acontecimentos, acompanhar a historia em movimento. É dos actos e das palavras que nasce a evidência. Entre o militar e o político não há contradição, mas, pelo contrário, harmonia. São complementares.

É compreensível que a memória da campanha de Bolívar em 1812/13 seja muito incómoda para as oligarquias colombiana e venezuelana. Ela ficou a assinalar uma prodigiosa façanha militar, com implicações políticas continentais e chamou a atenção dos povos da América para o génio do jovem que a concebeu e concretizou.

Bolívar tinha 29 anos quando em Cartagena de Índias – um dos últimos redutos no Caribe da rebelião contra a coroa espanhola – ofereceu os seus serviços ao Congresso da Nova Granada.(2)

O coronel Manuel Castillo e Labatut, que exerciam então o comando militar naquele bastião independentista, não levaram a sério o pedido do jovem caraquenho, que regressava derrotado de Puerto Cabello, na Venezuela. Mas, perante a insistência, Camilo Torres, presidente do Congresso da Nova Granada, tomou a iniciativa de lhe atribuir uma tarefa irrelevante: instalar-se com 70 homens em Barranca, um vilarejo insalubre no baixo Magdalena. Ficou transparente que a sua missão seria de simples vigilância. Estava-lhe vedado tomar a iniciativa de qualquer operação militar.

As tropas espanholas ocupavam então as principais cidades da Nova Granada, incluindo a capital, Santa Fé de Bogotá.

Pela audácia, imaginação e concepção estratégica, aquilo que Bolívar fez nas semanas seguintes traz à memória – guardadas as proporções, pois eram insignificantes os recursos humanos e materiais de que dispunha – campanhas de Alexandre, Aníbal, César e Bonaparte.

Em Barranca, Bolívar reforçou o seu destacamento de soldados esfarrapados com 130 voluntários locais e construiu dez balsas para, desafiando as instruções recebidas, navegar rio acima.

No dia 23 de Dezembro atacou Tenerife, defendida por uma guarnição de 500 homens. Venceu.

Informou Cartagena da sua vitória, mas não esperou pela resposta. Seguiu para o Norte pelo Magdalena e derrotou os espanhóis em Mempós. Encontrou ali 15 barcos e obteve a adesão de mais 300 voluntários.

Ao saberem da sua aproximação, as guarnições realistas – milhares de soldados – começaram a abandonar as praças que ocupavam. Entrou assim quase sem combater em El Banco, Chiriguá, Tamalameque e Puerto Real. Em apenas 17 dias limpou de tropas espanholas o vale do baixo Magdalena.

No inicio de Janeiro de 1813 dispunha já de um pequeno exército de 700 homens. Para financiar a campanha expropriou os bens dos inimigos da independência e estabeleceu o empréstimo obrigatório para os moradores abastados.

Antes de iniciar as operações militares, Bolívar tornara pública, em 15 de Dezembro, uma proclamação que ficou conhecida como o Manifesto de Cartagena, que antecipou, pelo rumo traçado e pela opção ideológica, a Carta da Jamaica, o discurso ao Congresso de Angostura e o projecto do Congresso Anfictiónico do Panamá.

O Manifesto de Cartagena é simultaneamente uma reflexão sobre a História e a síntese da sua futura estratégia revolucionária. Segundo o filósofo Fernando Gonzalez, "está ali a história da Revolução até 1813 e é e será sempre um ensinamento para a América do Sul".

Bolívar deixa entrever o seu próximo objectivo:

"A Nova Granada viu sucumbir a Venezuela; por conseguinte, deve evitar os escolhos que destroçaram aquela. Para esse efeito apresento como medida indispensável para a segurança da Nova Granada a reconquista de Caracas".

Em Cartagena de Índias e Tunja, onde se instalara o Congresso, as notícias das vitórias de Bolívar provocaram reacções contraditórias. O povo recebeu-as com entusiasmo. Mas os políticos, com poucas excepções, e os comandos militares concluiriam que Bolívar violara as instruções recebidas e actuava de maneira irresponsável. O coronel Manuel Castillo afirmou que era um demente que nada entendia da arte da guerra.

Quanto aos comandos espanhóis, admitiram que o jovem venezuelano iria permanecer onde estava para consolidar as áreas reconquistadas.

Enganaram-se. Depois de simular que iria subir pelo Magdalena para atacar Bogotá, Bolívar abandonou o vale do grande rio e, numa manobra rapidíssima, tomou a 8 de Janeiro a praça de Ocaña, ponto estratégico que domina a passagem da Cordilheira oriental dos Andes.

Em Tunja e Cartagena recrudesceu o clamor dos politiqueiros contra o caudilho venezuelano.

Bolívar não rompeu, mas não recuou. Pediu autorização para avançar sobre Cucuta e Mérida, rumo a Caracas.

Castillo, indignado, qualificou de aventura quimérica o projecto, próprio de uma cabeça delirante. A desproporção era efectivamente enorme. Enquanto Bolívar dispunha então de 1600 soldados mal armados, mal vestidos e pior alimentados, as forças realistas, sob o comando do general Monteverde, contavam com 16 000 homens e uma excelente artilharia.

Entretanto, os inimigos de Bolívar foram derrotados militarmente na Costa pelos realistas, o que alterou a relação de forças no Congresso. Camilo Torres, com o apoio de Nariño – o grande prócer da independência – conseguiu que Bolívar fosse nomeado comandante-chefe. Mais importante ainda, foi-lhe dada a autorização para avançar sobre Caracas.

A segunda fase da campanha foi o complemento da primeira.

O génio estratégico e táctico do general venezuelano impôs-se. O Libertador conseguiu confundir e desorientar um adversário que tinha uma superioridade de dez para um.

Cartas suas com planos falsos foram apreendidas a mensageiros. Nunca estava onde os peninsulares o imaginavam e caía sobre eles quando e onde não o esperavam.

Em 23 de Maio entrou em Mérida e no fim de Julho destroçou os realistas em Taguanes, depois de os expulsar de Trujillo. Dali avançou sobre Valência e ocupou a cidade sem combate. Finalmente, no dia 6 de Agosto entrou triunfalmente em Caracas, abandonada pelos espanhóis.

Juvenal Herrera chama a atenção para o significado que assumiu na Campanha Admirável uma decisão tomada por Bolívar: o polémico decreto da Guerra a Muerte. Ao ocupar Trujillo, o general vencedor apercebera-se da indiferença da população perante aqueles que chegavam para a libertar.

Na Venezuela, contrariamente ao que ocorrera em Nova Granada – onde a memória da rebelião dos comuneros no final do século XVIII permanecia viva na consciência das massas – o povo não se sentira representado no discurso e nos actos dos políticos da I Republica. Esta fora obra de uma aristocracia de brancos descendentes de espanhóis que, embora invocando ideais da Revolução Francesa, mantinha a escravatura, desprezava índios e mestiços e pretendia conservar os seus privilégios. O próprio Bolívar pertencia pelo nascimento a essa classe social.

Como bem sublinha Juvenal Herrera, "Bolívar não esquecia que muito mais de metade das forças realistas era na Venezuela formada por nativos que haviam adquirido o hábito da obediência ao império, que nunca tinham sido livres, e portanto nada sabiam de liberdade, e, assim, nessas circunstancias, a guerra de independência tinha ao mesmo tempo certo caracter de confrontação civil".

Ao declarar, por decreto, uma guerra sem quartel aos ocupantes estrangeiros, Bolívar pretendeu " divorciar a fidelidade a Cristo da fidelidade ao Estado espanhol". O objectivo era a "substituição do rei, como símbolo de fraternidade e justiça pela América e a Republica".

Vale a pena recordar que Carlos IV, deposto por Napoleão, tinha declarado publicamente que "os americanos não têm necessidade de saber ler (...) basta que sejam reverentes para com deus e o seu representante, o Rei de Espanha".

"Ao opor a guerra a muerte ao ódio de castas e raças – comenta Juvenal Herrera – Bolívar indicou ao povo que a divisão não se faria de acordo com o nível social ou a cor da pele, que a pátria era o património comum de todos os nela nascidos".

A Campanha Admirável não visava a liquidar o domínio espanhol no Continente. A curto prazo isso não seria possível. Bolívar estava consciente disso. Meses depois da retomada de Caracas, finda a guerra contra a França, a Espanha ficou com as mãos livres para combater a rebelião das colónias americanas. Em breve o general Pablo Morillo desembarcaria com um exercito de 15 000 veteranos das guerras contra Napoleão. Mais de dez anos de luta iriam transcorrer até à derrota e capitulação em Ayacucho, no Peru, do ultimo exército da Espanha na América do Sul.

Mas a Campanha Admirável foi, alem de assombrosa façanha militar, uma experiência que permitiu a Bolívar conhecer melhor os povos da região, reflectir sobre o tipo de instituições importadas que não serviriam para as colónias quando independentes. Naqueles meses tomou forma também a sua concepção do futuro exército libertador. Para o jovem general, o exército deveria ser o braço armado do povo, um instrumento de garantia das liberdades e dos direitos dos cidadãos.

Datam dessa época os primeiros atritos com Santander que, anos depois, seria o seu maior adversário.

Finda a guerra, após anos de batalhas que o levaram das florestas do Atlântico caribenho à travessia dos gigantes andinos e aos desertos do Peru e às praias do Pacifico, Bolívar tratou de aplicar na Grande Colômbia – a Venezuela, a actual Colômbia, o Panamá e o Equador – as suas ideias libertárias. O projecto chocou-se, era inevitável, com a ambição de muitos dos seus generais e com os adeptos de um parlamentarismo caricatural, inspirado em modelos europeus.

Bolívar libertou os escravos, defendeu a restituição das terras às comunidades índias, instituiu a educação gratuita, criou hospitais, e asilos para os veteranos da guerra, nacionalizou a navegação no Magdalena, protegeu a produção nacional da concorrência com as mercadorias estrangeiras, incentivou a industria incipiente e o comercio, decretou o monopólio das riquezas do subsolo, tentou moralizar a Justiça e defendeu a soberania nacional no diálogo com os EUA e com a Inglaterra, a primeira potência mundial.

A sua breve ditadura do ano 28 – tão criticada pelos que o hostilizaram e caluniaram – foi um regime revolucionário progressista que antecipou ideias da ditadura do proletariado, tal como a viria a definir Lenine quase um século mais tarde.

As oligarquias locais, que já detinham o poder económico, pretendiam garantir o poder político com a independência. Opunham-se a reformas de fundo nas estruturas sociais e económicas das antigas colónias.

Bolívar concluiu que a vitória militar seria inútil socialmente se as novas republicas não adoptassem uma política que permitisse ao Estado funcionar em beneficio das grandes maiorias. As suas ideias universais não podiam, contudo, prevalecer na época porque colidiam frontalmente com o regionalismo conservador, a arrogância e a mesquinhez da nova aristocracia militar que se instalara no poder de Caracas a Lima, de La Paz a Bogotá.

A Igreja excomungou Bolívar, identificou nele um satanás americano. Na Venezuela retiraram-lhe a nacionalidade e confiscaram-lhe as propriedades. Os inimigos colaram-lhe apodos como "caudilho dos descamisados", "monstro do género humano" e "tirano libertador de escravos".

Para o general Santander, vice-presidente da Grande Colômbia, a vizinhança dos EUA era uma dádiva da Providência e o exército deveria ser o instrumento de repressão do Estado oligárquico, tal como o concebia. A propriedade privada aparecia-lhe como sagrada e cimento da democracia. Daí a sua irredutível oposição ao Bolívar revolucionário quando este, ao regressar do Peru, após cinco anos de ausência, se mostrou alarmado com a miséria dos povos oprimidos da Grande Colômbia.

De uma carta então dirigida a Santander consta o desabafo que o incompatibilizaria com a nova classe dominante: "Não sei como não se levantaram ainda todos estes povos e soldados ao concluírem que os seus males não vêm da guerra, mas de leis absurdas".

Santander acusou-o de pretender desencadear uma "uma guerra interior em que ganhem os que nada possuem, que são muitos, e percam os que temos, que somos poucos".

Não é de surpreender que o governo dos EUA, cuja ambição crescia, condenasse com veemência o projecto bolivariano de uma América Latina unida numa grande confederação de Estados irmãos. Os governos de Monroe e de John Quincy Adams viram nele "um déspota militar de talento", "o louco da Colômbia", "o libertador de negros". Os agentes consulares norte-americanos no Peru financiaram conspirações contra o revolucionário cujas ideias e actos eram incompatíveis com os projectos de Washington para o Sul do Continente, a longo prazo, porque no momento a potência hegemónica na região era a Inglaterra. Foi um desses diplomatas que incentivou a invasão do Equador pelo exército peruano. Outros apoiaram o general Ovando, responsável pelo assassínio do marechal Sucre, o mais puro e talentoso dos soldados de Bolívar.

Juvenal Herrera recorda neste livro tão didáctico que se assistiu naqueles anos a uma aliança de quantos se opunham à concretização "do ideal bolivariano que identificava a guerra de libertação com uma revolução social que extinguisse os privilégios e eliminasse todas as formas de opressão, elevando os habitantes ao nível de cidadãos".

António José Sucre dizia que Bolívar diferia de todos os seus contemporâneos porque tinha o dom de "ver o futuro". Foi o primeiro latino-americano a apontar a ameaça que o nascente imperialismo dos EUA iria representar para as republicas do Sul. Mas em 1830, quando morreu amargurado, as classes dominantes festejaram em todo o Continente o seu desaparecimento físico. O esfacelamento da Grande Colômbia reforçou a sua convicção de que a obra do Libertador fora definitivamente destruída.

Engano. As ideias de Bolívar iriam renascer. O seu exemplo, as suas lições, o sonho da unidade latino-americana não foram esquecidos. Hoje, transcorridos 174 anos, o projecto revolucionário do herói de Carabobo e Junin é retomado na Venezuela e empolga milhões de latino-americanos.


Notas de rodapé:

(1) Juvenal Herrera Torres, Bolivar: La Libertad del Ser y del Pensar, pág 119, Bogotá (retornar ao texto)

(2) Nova Granada era o nome do antigo vice-reino cujo território corresponde à actual Colômbia.(retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021