Democracia, participação, revolução — três vértices de um triângulo

Miguel Urbano Rodrigues

29 de agosto de 2005


Primeira Edição: Intervenção no II Seminário Internacional "Um outro olhar sobre a América Latina", realizada no Departamento de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o patrocínio da UFRJ, em 29/Agosto/2005.

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Amigos e companheiros:

O tema deste painel — A luta pela Democracia na América Latina hoje — coloca uma questão prévia. A palavra democracia tem significados tão diferentes e ate contraditórios, consoante aqueles que a utilizam, que me parece indispensável lembrar que no mundo actual o vocábulo serve para designar regimes políticos e comportamentos incompatíveis, alguns dos quais, paradoxalmente, antidemocráticos.

Georges Labica, um dos mais lúcidos filósofos marxistas contemporâneos, afirmou, em recente Encontro promovido na Espanha pela Corriente Roja, que uma revolução autêntica somente pode optar pela democracia participativa como forma de governo. Identifico-me com essa opinião do autor do Dicionário Critico do Marxismo. Ela implica uma conclusão: o objectivo principal da verdadeira democracia é a transformação radical das sociedades onde o povo, tornado sujeito, se mobiliza para destruir as estruturas de dominação criadas pela burguesia.

A clarificação é imprescindível, porque, quando falamos da luta pela democracia na América Latina, corremos o risco de nos perdermos num labirinto se não ficar transparente desde o inicio que:

  1. A democracia é uma ausência na quase totalidade do Hemisfério.
  2. Instituições formalmente democráticas funcionam na prática, em quase todos os países a Sul do rio Bravo como instrumento de concretização das estratégias e interesses do imperialismo e das burguesias locais.

O controle da mídia pelas forças do capital impede, com raríssimas excepções, as grandes maiorias de tomarem consciência da caricatura de democracia que serve de moldura a sistemas de poder que excluem na pratica a participação do povo nas decisões de que dependem o seu presente e o seu futuro.

A intelectualidade burguesa gosta de recordar que a Revolução Francesa se inspirou na democracia aristotélica. Mas omite que na democracia aristocrática de Atenas, como em qualquer polis grega, somente uma ínfima percentagem da população tinha acesso às assembleias.

A Revolução Americana, que se tornou quase objecto de culto para a burguesia brasileira, como criadora de um modelo de democracia, produziu uma Constituição que apenas concedia o voto a uma minoria de cidadãos. Esse direito, erigido em privilégio, nascia da riqueza.

A farsa democrática não é identificável somente na América Latina. Em artigo de comentário ao NãO francês, publicado no sítio web http://resistir.info, chamei a atenção para o facto, com frequência esquecido, de que a chamada democracia representativa não passa hoje na Europa de uma figura de retórica. Nos 15 países que integravam a União Europeia antes do seu alargamento os regimes existentes adquiriram progressivamente os contornos de ditaduras da burguesia, empenhadas em aplicar as receitas do neoliberalismo globalizado. Nos novos membros da Europa Central e do Leste os governos — alguns com tendências fascizantes — actuam como satélites de Washington.

Obviamente, existem diferenças profundas entre os regimes supostamente democráticos de países como a França e o Reino Unido – apenas um exemplo – e os existentes na Colômbia e no Peru. Elas resultam do desenvolvimento da história, da cultura dos povos, do funcionamento das instituições e também da presença de heranças imperialistas complexas.

Mas a diferenciação não impede a convergência no tocante a um objectivo que pode ser apontado como denominador comum: na Europa, tal como na América Latina, as políticas dos governos eleitos "democraticamente" são elaboradas e executadas — com duas únicas excepções — à revelia da vontade dos povos que os viabilizaram. Os mecanismos institucionais são utilizados em benefício das classes dominantes, para excluir a participação em vez de a promoverem.

Este alerta inicial justifica-se num Seminário em que nos reunimos para reflectir sobre a luta pela Democracia no espaço latino-americano.

Coloco ênfase na palavra luta.

Em Julho pp, o escritor José Saramago, meu compatriota, em entrevista concedida em San Salvador, divulgada pelo sítio Rebelión, afirmou que hoje "não se trata de substituir um governo por outro, mas de refundar o conceito de democracia".

No mundo globalizado — sublinhou — "estamos vivendo todos numa espécie de Apocalipse Negro no qual não parece haver solução imediata e é isso que representa a maior afronta à humanidade".

Segundo o Prémio Nobel de Literatura, para superarmos a crise de civilização e evitarmos o colapso, é urgente "colocar no centro da discussão o tema da democracia, da democracia autentica, de refundar o conceito a partir das necessidades reais em que vivem as pessoas".

Reflectindo sobre a alternativa, conclui que a exigência para todos, diária, terá que ser "a reinvenção da democracia".

Creio que todos estamos de acordo com Saramago quando nos recorda que "se não chegarmos a uma democracia plena (…) o poder tende a concentrar-se mais no político, subordinado ao económico e ao financeiro, e será autoritário, e então, se não se mudar essa relação de poder, a situação se agravará".

Na prática já é autoritário, funcionando como ditadura da classe dominante. E essa realidade força a uma tomada de consciência de todos quantos rejeitam o sistema: a luta não pode esperar pelo debate teórico sobre os contornos da democracia autêntica. Antes de podermos definir com rigor o que queremos, somos forçados pelo movimento da história a lutar contra o que não queremos, contra aquilo que recusamos.

A democracia participativa, revolucionária, tal como a define Labica, será o desfecho natural de um confronto de duração imprevisível com o monstruoso sistema de dominação planetária do capitalismo, hegemonizado hoje pelos EUA.

O capitalismo, como Istvan Meszaros e Samir Amin, entre outros pensadores, têm demonstrado, atravessa uma crise estrutural que o imperialismo estadunidense procura superar, em opção irracional, através das chamadas guerras preventivas e do saque dos recursos naturais de povos do Terceiro Mundo.

Coloca-se portanto uma questão de prioridades: a primeira tarefa, em defesa da humanidade contra a barbárie, deve ser portanto a participação dos povos numa luta solidária, tão globalizada quanto possível, contra a engrenagem imperial que os oprime.

Na América Latina, essa difícil luta pela Democracia, em desenvolvimento, tende a assumir dimensão continental, assumindo características peculiares, mas muito diversificadas.

UM PANORAMA MUITO CONTRADITóRIO

A América Latina é uma diversidade. Entre os países que a constituem existem abismos culturais e económicos. O denominador comum é a dependência de um sistema de poder imperial e a herança resultante – com excepção do Haiti e de algumas ilhas- de terem sido colonizados pela Espanha e por Portugal cujos idiomas são hoje aqui falados por mais de 500 milhões de pessoas.

Foram diferentes as estratégias dos colonizadores. Mas, com poucas excepções, ficaram assinaladas por políticas de genocídios. Os de Tenochtitlán, no México, e o posterior à conquista do Tahuantinsuyo, no Peru do Incário, deixaram memória pela sua amplitude.

Essas chacinas (dois séculos após a conquista, a população desses territórios não atingia 20% da existente antes da chegada dos espanhóis) deixaram marcas profundas no imaginário dos povos mestiços contemporâneos, filhos de culturas antagónicas.

A independência política não conduziu à independência real. Os ideais de Bolívar não se concretizaram. Nos países por ele libertados, no México, no Prata, no Brasil, em toda a vastidão latino-americana, a um tipo de dominação sucedeu outra. Durante mais de um século, o imperialismo britânico, aliado às oligarquias locais, exerceu sobre a América do Sul uma hegemonia económica ostensiva. A partir do final da Primeira Guerra Mundial, o imperialismo estadunidense, que já dominava no México, na América Central e nas Caraíbas, ocupou o seu lugar. Com a agravante de que os mecanismos da dominação política, em muitos casos, acompanharam a penetração do capital, reduzindo alguns países à condição de colónias de novo tipo.

Não cabe aqui recordar a história contemporânea da América Latina. Mas, para reflectirmos sobre as lutas do presente, é oportuno lembrar que, a partir do inicio da Revolução Cubana, o sentimento anti-imperialista, que permanecera na consciência dos povos, cresceu torrencialmente, emergindo como elemento fundamental nas lutas contra o sistema de opressão generalizado. Cuba demonstrava que era possível derrotar o inimigo interno e resistir ao imperialismo.

A incompreensão de que a revolução cubana se impusera em circunstâncias excepcionais, gerou ilusões e esteve na origem de uma época de aventuras guerrilheiras, que envolveram uma geração de revolucionários românticos. O desfecho desses desafios de gente generosa é conhecido. Em algumas situações foram o prólogo da implantação de ditaduras militares sanguinárias.

Chamarei apenas a atenção para duas questões.

  1. Contra o que Washington proclamou após a morte do Che, a derrota das guerrilhas rurais e urbanas no Sul do Continente não demonstrou que a luta armada se havia tornado uma impossibilidade absoluta. A vitória do sandinismo, na Nicarágua, em 1979 – viabilizada pela estratégia de Carlos Fonseca Amador, um grande revolucionário quase desconhecido – e a incapacidade do imperialismo para derrotar militarmente os combatentes da Frente Farabundo Marti, em El Salvador, e os da UNRG na Guatemala, desmentiram a tese imperialista. Simultaneamente a insurgência colombiana tem sobrevivido a todas as tentativas empreendidas para a aniquilar.
  2. A persistência nos povos latino-americanos de um sentimento anti-imperialista enraizado torna hoje possível na América Latina o que na Europa, por múltiplos motivos, não tem estado ao seu alcance. Refiro-me à possibilidade de conquista do poder Executivo através de eleições por personalidades e forças que se apresentam com programas anti-neoliberais e anti-imperialistas.

A reflexão sobre a segunda questão, isto é sobre problemas e desafios colocados pela chamada via institucional, é muito importante num Seminário como o nosso.

Uma revolução cuja meta seja o socialismo a curto prazo, não é, com a actual relação de forças, possível em sociedades como as latino-americanas. Mas a luta pela conquista de parcelas do poder político, onde quer que isso seja viável , apresenta-se como dever para as forças progressistas.

Lenine enunciou uma evidência ao afirmar que o governo em sociedades capitalistas representa apenas as insígnias do poder. é parcela e instrumento do Estado criado pela burguesia para lhe servir os objectivos.

A evolução e o desfecho da experiência socializante da Unidade Popular, no Chile, lembram-nos que o governo de Allende nunca controlou o Estado na sua totalidade — o Legislativo e o Judiciário hostilizaram-no permanentemente e muito menos o Poder económico.

O desenvolvimento da Historia nos últimos anos desmentiu, porém, a tese segundo a qual a era das revoluções teria findado e o neoliberalismo globalizado seria a ideologia definitiva.

Seattle serve de referência, assinalando o início de uma época em que os povos começaram a mobilizar-se para expressar, em manifestações marcadas pelo espontaneísmo, a sua recusa do projecto de vida que o imperialismo lhes pretende impor.

No caso da América Latina, os seus povos infligiram derrotas importantes ao poderoso vizinho do Norte.

As consequências desastrosas das políticas do chamado Consenso de Washington — na realidade um diktat — geraram um descontentamento entre as massas que se traduziu em dois tipos de rejeição:

  1. Gigantescas acções de protesto que desembocaram em rebeliões populares que levaram ao derrubamento de Presidentes, como ocorreu no Equador, na Bolívia e na Argentina.
  2. A formação de alianças de forças maioritariamente progressistas que, no âmbito de instituições formalmente democráticas, levaram à Presidência, utilizando os mecanismos eleitorais existentes, lideres com programas anti-neoliberais e moderadamente anti-imperialistas. Foi o que aconteceu na Venezuela, no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e, embora em circunstâncias diferentes, no Equador e na Argentina.

Essas experiências apresentam ensinamentos de grande significado ainda insuficientemente estudados.

Não vou aqui, é óbvio, deter-me na análise, mesmo superficial, dos êxitos e fracassos que assinalam o seu caminhar.

Permito-me apenas extrair algumas conclusões de ordem geral.

Washington compreendeu que a contestação dos povos da América Latina às políticas neoliberais estava ganhando uma amplitude que ameaçava a dominação imperial sobre o Continente. A sua contra-ofensiva foi quase imediata.

A evolução dos acontecimentos demonstra que em países onde as forças da direita tinham sofrido grandes derrotas, presidentes eleitos por forças progressistas não respeitaram os compromissos assumidos com o povo.

No Equador, Lúcio Gutierrez, numa guinada de 180 graus, passou a ser um aliado preferencial de Washington. A entrega do comandante Simon Trinidad, das FARC, a Uribe (que, por sua vez, o entregou aos EUA) foi um gesto abjecto que suscitou indignação a nível continental. Lúcio não terminou, entretanto seu mandato. O povo equatoriano, revoltado com a sua política de vassalagem, derrubou-o, obrigando-o a fugir. Teve o destino de Mahuad. Seria, contudo, uma ingenuidade acreditar que o seu sucessor, o Presidente Palácios, vai dar início a uma política que responda às aspirações populares

No Paraguai, o Presidente Nicanor Duarte, que na sua investidura pronunciou um vibrante discurso de recorte anti-neoliberal com matizes anti-imperialistas, cedeu rapidamente às pressões de Washington. Não somente aceita agora a presença de tropas norte-americanas no pais, e portanto a instalação de uma base militar, como promulgou a lei que atribui imunidade a oficiais e soldados dos EUA acusados de crimes de guerra.

No Uruguai é cedo para se avaliar o resultado histórico da grande vitória eleitoral da Frente Ampla. Mas o rumo do governo de Tabaré Vasquez justifica a frustração crescente do povo de Artigas perante as consequências de uma política inspirada nas receitas neoliberais do Brasil, incompatível com as esperanças e reivindicações das massas.

Na Argentina, o "capitalismo normal" de Kirchner, bem radiografado por James Petras, não envolve também uma ruptura com os objectivos do neoliberalismo. Com muita habilidade, o ex-governador da Patagónia, esforça-se na Casa Rosada por humanizar o capitalismo, como se isso fosse possível. Mas, sendo um populista talentoso, consegue enganar milhões de compatriotas e a sua popularidade mantém-se num nível elevado.

Quanto ao Brasil, serei brevíssimo. O país encontra-se mergulhado numa crise gravíssima, de desfecho imprevisível. Neste painel participa João Pedro Stedile, o destacado dirigente do MST – na minha opinião hoje o movimento social mais importante e combativo da América Latina. é a ti, João, que cabe falar sobre as frustrações, êxitos e desafios do povo brasileiro na luta pela democracia no espaço latino-americano.

Direi apenas o obvio: o governo de Lula, longe de utilizar as instituições em benefício do povo, desenvolveu desde o início políticas que não ferem a lógica do capitalismo e lhe serviram mesmo os interesses estratégicos. O facto de a sua política exterior ter sido globalmente positiva, apesar de manchada pelo envio de tropas para o Haiti, não altera o julgamento negativo que a historia fará da sua passagem pela Presidência.

Na Região banhada pelo Caribe, Washington adoptou uma estratégia particularmente agressiva, com a atenção concentrada no triângulo Colômbia Cuba- Venezuela.

A sobrevivência das guerrilhas das FARC e do ELN na Colômbia constitui um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC, sobretudo, confirma que em situações históricas, geográficas e sociais excepcionais, a luta armada continua a ser possível. Há mais de quatro décadas que a oligarquia colombiana anuncia o fim iminente da guerrilha de Manuel Marulanda. Entretanto o núcleo inicial de 47 combatentes transformou-se num exército popular de 18 mil homens que luta em 60 Frentes. No ano corrente, o ambicioso Plano Patriota, integrado no Plano Colômbia , foi a pique. As FARC infligiram nos últimos meses duras derrotas ao mais poderoso exército da América Latina. é significativo que o presidente álvaro Uribe, o melhor aliado de George Bush no Continente, desenvolva uma política de contornos fascizantes. E não menos esclarecedor que o governo de Washington, auto proclamado campeão da luta contra o terrorismo, tenha aprovado os sequestros no Equador e na Venezuela, dos comandantes Simon Trinidad e Rodrigo Granda, actos terroristas realizados com a colaboração da CIA.

Cuba é outro vértice do triângulo caribenho que preocupa o sistema de poder imperial.

O povo da Ilha não se submete. Não abdica do propósito de construir e defender o socialismo. Na perspectiva da equipa de Bush a sua revolução, após mais de quatro décadas de bloqueio, oferece um exemplo perigoso para a América Latina. Cuba não somente sobreviveu ao desmoronamento da URSS com a qual realizava mais de 80% das suas relações comerciais, como está a caminho de recuperar o nível económico quer tinha há 15 anos. Cuba resistiu, seguindo o seu caminho. E isso é intolerável para Washington. Cuba é o único país do Hemisfério onde o direito à vida saúde à educação são pilares de um conceito dos direitos humanos revolucionário, que não é farisaico como das democracias formais do mundo capitalista.

Não creio que os EUA, atolados no Iraque e no Afeganistão, estejam actualmente em situação de invadir Cuba. Mas o povo cubano sente-se, com fundamento, ameaçado e agredido. A política de Bush visa a asfixiar economicamente a Ilha, insistindo alias em financiar os grupelhos terroristas de Miami. Daí a necessidade de ampliar a solidariedade com o heróico povo cubano.

A SOLIDARIEDADE COM A VENEZUELA

No contexto da luta por uma democracia autêntica nos países da Nossa América, a solidariedade permanente e ampliada com o povo da Venezuela tornou-se um dever militante para as forças e personalidades progressistas do Hemisfério.

Não é por acaso que no Continente e mesmo na Europa se multiplicam os comités de solidariedade com a Venezuela Bolivariana.

Essas iniciativas traduzem a compreensão de que o povo de Bolívar e Zamora se bate hoje não apenas em defesa de um processo revolucionário original, como por todos os oprimidos da América Latina.

A vitória de Chavez no referendo de Agosto de 2004 foi um acontecimento de significação mundial. O povo venezuelano, assumindo mais uma vez o papel de sujeito da Historia, voltou então a derrotar as forças, unidas, da oligarquia e do imperialismo. Sem a sua participação maciça não teria sido possível a vitória alcançada no confronto com a engrenagem golpista que pretendia — tal como golpe de 11 de abril e no lock-out petrolífero — derrubar o Presidente Chavez e restaurar a engrenagem da ditadura oligárquica.

O I Encontro Mundial de Intelectuais em Defesa da Humanidade, reunido em Caracas no final do ano passado, permitiu a amigos da Venezuela de dezenas de países verificar a tensão criadora que varre o pais e, transcendendo a realidade nacional, se traduz em projectos que reflectem o espírito da integração dos povos latino-americanos, tal como a concebia Simon Bolívar, uma integração incompatível com a anexionista, de tipo ALCA, ideada em Washington.

é natural que iniciativas como a Telesur, a Petrosur, a Petrocaribe, a Alba suscitem a oposição do governo Bush e contribuam para o reforço das campanhas anti-Chavez na mídia estadunidense. Porque cada um desses projectos, acusados de utópicos, está impregnado do espírito solidário e revolucionário do bolivarianismo.

A Casa Branca e no Departamento de Estado, que não escondem a sua simpatia pelas políticas neoliberais desenvolvidas pelo governo de Lula e acompanham sem inquietação o que se passa na Argentina de Kirchner, encaram como desafio intolerável o rumo tomado pela experiência venezuelana.

E porquê?

Actualmente a Venezuela é um laboratório social onde se trava uma luta de classes como o mundo talvez não conhecia desde as revoluções russas de 1917. O processo bolivariano assume-se já como incompatível com o capitalismo, por tímidas que sejam as reformas ate agora implantadas. Ora Washington não aceita que a meta seja a mudança radical da ordem social preexistente à eleição de Chavez.

Companheiros

Os êxitos obtidos por Hugo Chavez — e cito o líder porque a dependência dele é transparente e excessiva — não devem, porem, levar a uma subestimaçao das dificuldades que ali se multiplicam e renascem, inseparáveis da própria dialéctica da vitoria.

A oposição saiu desmoralizada e dividida da derrota do referendo. Mas trata de se reorganizar.

é muito positivo que a grande maioria do Exército esteja hoje identificada com o projecto revolucionário, situação inédita na América do Sul. Hugo Chavez insiste que a revolução bolivariana, contrariamente ao que ocorreu no Chile da Unidade Popular, não é uma revolução desarmada. Essa evidencia não faz esquecer que mais de uma centena de oficiais superiores das Forças Armadas estiveram envolvidos no golpe do 11 de abril.

As grandes maiorias iniciais geraram no próprio governo ilusões românticas. Foi muito mais fácil substituir uma Constituição anacrónica por uma progressista do que reformar políticos formados numa sociedade como era a venezuelana. Uma parte dos que embarcaram inicialmente no navio da revolução não aguentou as primeiras tempestades. Uns ficaram pelo caminho; outros mudaram de embarcação.

O sociólogo Rodolfo Sanz, no seu lúcido livro Dialéctica de una Victória adverte que uma segunda Constituinte será necessária para "transformar a estrutura do Estado, para derrubar o que permanece de pé do antigo aparelho da Quarta Republica". Apesar de todos os seus esforços, o governo não controla ainda a totalidade do Estado, nem a Educação, nem a Saúde, nem o Poder Judicial, baluartes onde elementos contra-revolucionários conservam ainda importantes posições.

Companheiros:

Fica implícito que identifico na Venezuela bolivariana a vanguarda das lutas que os povos da América do Sul travam hoje pela democracia participativa.

Seria ingénuo concluir que o processo em curso , de ruptura com o sistema de dominação imperial , vai desembocar numa futura revolução socialista. O desfecho da revolução libertadora, liderada por Hugo Chavez, é por ora, imprevisível. Por isso mesmo a solidariedade com os que por ela se batem aparece como mais necessária.

O panorama oferecido pela América Latina, no auge de uma crise de civilização, é como já sublinhei muito contraditório.

Pessoalmente sou optimista. O oportunismo e a capitulação de dirigentes populistas que suscitaram grandes esperanças mas logo esqueceram os compromissos com o povo não justifica atitudes de desalento.

Do México à Argentina os povos da América Latina, com raras excepções, demonstram uma disponibilidade crescente para a luta. Temos o um exemplo comovedor de heroísmo do povo boliviano que, em condições dificílimas, enfrentando dura repressão, se levantou nos páramos andinos para derrubar dois presidentes que actuavam como procônsules do imperialismo. Mas a recusa das políticas neoliberais manifesta-se em todo o espaço latino-americano, da América Central e das Caraíbas ao Peru e ao Chile.

Neste quadro considero alentador que a direcção zapatista, pela palavra do sub comandante Marcos, tenha há poucas semanas tornado publica uma inflexão estratégica, atravessando a ponte que separa a rebeldia da opção revolucionária. A partir de agora o EZLN declara-se disponível para participar ao lado ao lado dos trabalhadores mexicanos nas grandes lutas sociais do povo de Cuauhtemoc que transcendem o âmbito do indigenismo.

Mobilizar para acções concretas, coordenadas, esse formidável potencial de combatividade é um grande desafio para as organizações e partidos revolucionários do Continente e para os movimentos sociais progressistas que recusam o discurso dos reformadores do capitalismo.

POR UM NOVO INTERNACIONALISMO

Sendo a América Latina uma área submetida à dominação imperialista, a articulação das lutas dos seus povo com as que se desenvolvem noutras Regiões do Mundo, particularmente na ásia e na Europa surge não apenas como dever, mas como exigência da Historia.

A engrenagem de poder dos EUA, controlada hoje pela extrema-direita norte americana, não tem soluções para a crise estrutural do capitalismo. A opção de Bush & Cia para retardarem a implosão do sistema agravou a crise global de civilização. As guerras "preventivas" e o saque de recursos naturais de outros povos accionaram mecanismos que ameaçam a própria sobrevivência da humanidade.

Mas a irracionalidade, o assalto à razão, tal como aconteceu com o III Reich nazi está a produzir efeitos contrários aos visados por um sistema monstruoso que principia a adquirir os contornos de um IV Reich.

A guerra do Iraque é uma guerra perdida. O bombardeio mediático perverso que nos apresenta como terroristas aqueles que do Tigre ao Pamir resistem à ocupação não tem o poder de criar historia através da mentira.

Os minutos de silêncio pelas vítimas inocentes do 11 de Setembro, do Março madrilenho e do Julho londrino não apagam a evidência: somente no Iraque a agressão estadunidense é responsável por mais de 100 mil mortos civis. E a vida de um norte-americano, de um espanhol, de um inglês não vale mais do que a de um iraquiano.

A guerra do Afeganistão é outro conflito que terminará com derrota dos EUA.

Que fazer, companheiros, pergunto?

Não temos receitas milagrosas para derrotar o imperialismo. Os debates em torno da procura da alternativa para o neoliberalismo globalizado são quase sempre estéreis, resvalando para o discurso escolástico. A revolução é, por ora, uma esperança distante e o socialismo do futuro alternativa à barbárie — assumirá forma no próprio decurso da luta; não pode ser definido antecipadamente.

Mas podemos, sim, contribuir para apressar a derrocada do sistema imperial. A solidariedade, nos seus múltiplos níveis, é uma arma muito poderosa.

Carlo Frabetti recordou recentemente que Cuba não é uma Ilha nem o Iraque, o Afeganistão, a Palestina. "A solidariedade internacional e a indignação perante a barbárie imperialista — lembra — abatem as fronteiras. Todas as fronteiras. Em todos os sentidos. De todas as maneiras. Com todo o tipo de respostas, desde as mais generosas às mais brutais".

O terror nasce hoje antes de mais do terrorismo de Estado do sistema de poder imperial que o gerou.

O NãO do povo francês à Constituição Europeia, um projecto que institucionaliza o capitalismo, encerra grandes lições para toda a humanidade. Exigindo o Sim, desfilaram por Paris Blair, Schroeder, Zapatero, Berlusconi, presidentes e primeiro ministros de toda a Europa. As burocracias sociais europeias eram favoráveis à Constituição. A mídia exerceu uma pressão permanente, maciça, a favor do Sim. A campanha assumiu facetas delirantes. Um intelectual prestigiado escreveu que o NãO teria um significado comparável à ocupação da França pela Alemanha na última guerra mundial.

Apesar do massacre desinformativo, a França — uns país rico com cinco milhões de pobres — votou NãO.

Volto a citar o filosofo marxista Georges Labica. Em Junho, numa conferencia em Serpa, Portugal, ele afirmou que o NãO do seu povo implicava também solidariedade com os povos em luta do Iraque, da Palestina, da Venezuela, da Colômbia, de Cuba, de toda a América Latina, de todo o mundo. E acrescentou:

"A consciência da solidariedade entre todos os oprimidos é algo muito forte, temos de criar condições para que essa solidariedade se desenvolva, rumo a um verdadeiro internacionalismo".

Companheiros

Vou terminar.

No Brasil o povo vive sob cataratas de impossíveis.

Não pretendo cair em analogias. Mas acho oportuno recordar que o NãO francês transformou ali o impossível aparente num possível real.

Lutar pela democracia participativa, a única autêntica, aquela que abre a porta à transformação radical da sociedade é o grande desafio — simultaneamente nacional e internacionalista em defesa da humanidade.

Cabe ao povo brasileiro, como sujeito da história, assumi-lo.

Serpa, Agosto/2005


Inclusão: 04/11/2021