O agravamento da crise mundial

Miguel Urbano Rodrigues

17 de março de 2006


Primeira Edição: Intervenção no X Seminário "Los partidos y una nueva sociedad", México, Março/2006.

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


A crise mundial agravou-se desde que nos reunimos neste Seminário no ano passado.

A situação existente é muito contraditória. Enquanto o imperialismo insiste numa estratégia de dominação planetária assinalada por guerras genocidas e saque dos recursos naturais de nações do Terceiro Mundo, a luta dos povos contra a globalização neoliberal amplia-se paralelamente, sobretudo na América Latina.

Em Janeiro pp. os Fóruns Sociais de Bamako e de Caracas tornaram transparente a repulsa da humanidade pelo monstruoso sistema de poder que a ameaça.

Na capital da Venezuela, Hugo Chavez pronunciou, à margem do Fórum, um discurso patético no qual radicalizou o combate ao imperialismo ao lançar o brado "Socialismo ou morte!".

Afirmando que o capitalismo não tem reforma possível, o dirigente venezuelano definiu a estratégia agressiva dos EUA como monstruosa e cruel, configurando uma ameaça à humanidade.

O relatório elaborado pela CIA sobre a situação previsível do mundo no ano 2020 confirma que Washington persistirá na sua estratégia de dominação planetária. Segundo a Administração Bush, a globalização neoliberal, definida como "projecto Davos", é um êxito, o leadership exclusivo dos EUA não será posto em causa e, no seu combate ao chamado terrorismo, as "guerras preventivas" atingirão os objectivos fixados.

Esse panorama é desmentido pela realidade. A análise da crise estrutural do capitalismo conduz a uma conclusão muito diferente.

O sistema, na sua fórmula liberal globalizada, como afirma Samir Amin, "não é viável porque o caos que gera, longe de ser "controlável" pelos meios imaginados pelas classes dominantes, somente pode agravar-se rapidamente e em proporções dramáticas. O fracasso militar e político no Iraque, a rejeição crescente ao "projecto europeu" pelos povos a que se dirige, as explosões de violência (como as que agitaram em Novembro os subúrbios das cidades francesas) e outros fenómenos agora diários são disso prova. As coisas são assim, mas não tiro daí a conclusão de que uma saída aceitável 'será uma certeza'. O mundo de amanhã — mesmo no horizonte próximo de 2020 — provavelmente será diferente do actual, mas não necessariamente melhor. Poderá ser mesmo pior".(1)

Samir Amin não é um pessimista. é um intelectual revolucionário consciente da complexidade de uma crise cujo desfecho, positivo ou não, dependerá em ultima análise da luta dos povos contra a engrenagem que os tritura.

São muito favoráveis nesta época assustadora as condições objectivas para a dinamização desse combate e a transformação da consciência social num actor social colectivo capaz de gerar um novo internacionalismo.

O imperialismo, apesar do seu enorme poder, acumula derrotas.

No Iraque e no Afeganistão está atolado em guerras perdidas. Na Palestina a vitória eleitoral do Hamas anuncia dificuldades crescentes para o grande aliado de Washington na Região.

Não é de excluir que o desespero empurre a extrema-direita estadunidense para uma agressão ao Irão (a perspectiva de uma bolsa do petróleo em euros alarma Wall Street) que poderia assumir a forma de um bombardeamento às instalações nucleares daquele pais. Mas uma acção criminosa desse tipo não teria significado militar e intensificaria os sentimentos contra os anglo-americanos no mundo islâmico.

Um relatório sobre o exército, encomendado pelo Pentágono a Andrew Krepinevitch, um oficial na reserva, acaba de desencadear uma polémica em que intervieram o secretário da US Army, Francis Harvey e o próprio Donald Rumsfeld. O autor desse trabalho afirma que o exército esta á beira da ruptura em consequência do seu fracasso no Iraque. O recrutamento caiu para um nível muito baixo e a carência de efectivos impediu a passagem a reservistas de soldados que, contra a sua vontade, já cumpriram duas e três missões no Médio Oriente. A desmoralização das tropas de combate nessa área é considerada alarmante.

Embora lentamente, a oposição interna à guerra aumenta e os movimentos sociais que exigem a retirada do Iraque ganham a cada semana novas adesões.

Paralelamente, a dependência dos EUA como nação parasitária que consome muito mais do que produz aprofunda-se. Os gigantescos défices comercial e do orçamento não podem ser mantidos indefinidamente. O dólar, doente, vacila como moeda mundial.

Neste contexto a amplitude da contestação na América Latina às políticas neoliberais impostas por Washington adquiriu uma amplitude que faz do Continente uma frente de combate de enorme importância.

Essa realidade implica grandes responsabilidades para as forças empenhadas na luta contra o imperialismo.

Nos Fóruns Sociais de Bamako e de Caracas foi transparente o aumento da combatividade dos participantes. Mas essas iniciativas, muito positivas, reflectem as contradições e limitações dos movimentos sociais. Espaços de debate imprescindíveis mobilizam contra o neoliberalismo e o seu projecto democratas com concepções muito diferentes do mundo e da vida. Duas grandes correntes se confrontam, porem, quando de trata de passar da palavra à acção. Para uns, o capitalismo é reformável e pode ser humanizado. Para outros terá de desaparecer da Terra porque ameaça a própria sobrevivência da humanidade.

A América Latina é presentemente um laboratório social onde se confrontam essas concepções e as estratégias que delas resultam na passagem da teoria à acção.

Na Venezuela no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Equador, na Bolívia foi possível nos últimos anos eleger personalidades que se propunham alterar o sistema de dominação vigente, ou seja o neoliberalismo imposto pelo chamado Consenso de Washington. A prática demonstrou porém que não basta eleger com forte apoio popular presidentes com programas moderadamente progressistas para que a sociedade se transforme. No Equador, Lúcio Gutierrez traiu imediatamente. No Brasil na Argentina, no Uruguai os governos de Lula, Kirchner e Tabaré desviaram-se dos compromissos assumidos, multiplicando concessões ao sistema que no fundamental satisfazem Washington. Emergem como reformadores do capitalismo. Mas todos eles governam, apoiados por sectores da população que confiam ainda no cumprimento em futuro próximo das promessas feitas.

O caso da Bolívia é ainda mais complexo. A vitória de Evo Morales, esmagadora, produziu um efeito de tsunami político. O facto de dirigentes revolucionários como Fidel Castro e Hugo Chavez manifestarem a sua confiança no novo presidente contribuiu para a auréola de prestígio que passou a envolvê-lo. Pessoalmente julgo útil não confundir a grande vitória do povo boliviano com a pessoa de Evo Morales. Nada até agora na sua trajectória justifica a tendência para identificar nele um revolucionário providencial. Qualquer paralelo com Fidel ou Chavez é absurdo. Admito que o rumo do processo boliviano dependerá sobretudo da capacidade das massas para se afirmarem como sujeito, distanciando-se, porem de radicalismos infantis, tradicionais na Bolívia. O discurso de posse de Evo Morales, decepcionante, a composição do seu gabinete e algumas das medidas tomadas nas primeiras semanas de governo contribuíram para confirmar essa convicção.

Creio ser útil uma referência especial à Venezuela. A revolução bolivariana mobiliza hoje solidariedades em todo o mundo. A fulgurante ascensão do líder venezuelano semeou a confusão em Washington, precisamente porque o fenómeno Chavez transcende o quadro regional. Pela coragem e imaginação postas na defesa de grandes causas da humanidade conquistou o respeito e admiração dos povos da América Latina, projectando-se como revolucionário de prestigio mundial. Presidente de um país rico em petróleo mas cujo povo vegetava na miséria, surge como um revolucionário puro, por vezes ingénuo e até imprudente, cuja autenticidade surpreende e emociona. O seu desafio surpreendeu porque propõe a transformação radical da sociedade no respeito estrito das instituições.

Dificilmente se encontra precedente para um processo de mudança social como o venezuelano, desafiador da lógica aparente da história. Lenine dizia que não há revolução vitoriosa sem um partido revolucionário preparado para a conduzir. E na longa duração da história os factos confirmam a sua afirmação. Entretanto, na Venezuela desenvolve-se há sete anos um processo que desafia a tradição. Começou com a eleição de um militar cristão e a derrota esmagadora dos partidos do sistema e sobreviveu a um golpe de estado apoiado pelo imperialismo e a uma série de conspirações posteriores.

A excepcionalidade venezuelana está na ausência de um grande partido de massas revolucionário. O líder desempenhou um papel decisivo na concepção e concretização das medidas revolucionárias e na sua defesa.

Nessa dependência do dirigente carismático identificamos, contudo, o lado frágil da revolução bolivariana. Como mobilizador das massas oprimidas, Chavez substitui o partido revolucionário. Nem o Movimento V Republica, nem os Círculos Bolivarianos, nem as chamadas Missões puderam ate agora cumprir plenamente a função que caberia ao partido revolucionário.

Na América Latina, onde os povos se rebelam contra o neoliberalismo, este discípulo de Bolívar, desfraldando o estandarte da unidade das nações, conquistou a confiança das massas ao identificar-se com as suas aspirações e angústias. Hostilizado desde o início pelo imperialismo, tem demonstrado pela palavra e pela acção — como antes somente Fidel o fez — que é possível, apoiado pelo povo, seguir com dignidade o caminho da independência e do progresso, resistindo às ameaças e conspirações do gigante norte-americano.

O confronto explosivo com o sistema imperial aparece porém no horizonte como inevitável. A derrota infligida em Mar del Plata aos EUA, fechando a porta à ALCA, a adesão da Venezuela ao Mercosul, a Telesur, os projectos da ALBA e da Petrosur assinalam uma mudança na relação de forças no Hemisfério intolerável para Washington.

Reforçar a solidariedade com a Revolução Cubana e o combate das FARC na Colômbia, continua a ser exigência da luta na América Latina.

A resistência da Ilha heróica à guerra não declarada que lhe move o imperialismo é uma epopeia da humanidade. Na Colômbia, governada por um político fascizante, a guerrilha de Manuel Marulanda é hoje um exército popular que se bate em 60 Frentes contra o mais poderoso exército da América Latina, infligindo-lhe severas derrotas.

Um sentimento anti-imperialista muito forte torna hoje possível na América Latina aquilo que na Europa Ocidental não o é.

No Velho Mundo a social-democracia aparece, ostensiva ou tacitamente, aliada a forças conservadoras. Aderiu na prática ao neoliberalismo. O que pretende é apenas administrar o capitalismo melhor do que a direita tradicional.

A ausência de um projecto próprio europeu, a crise estrutural do capitalismo e as contradições resultantes da aliança com os EUA favorecem entretanto hoje o aumento de tensões sociais em toda a área da União Europeia.

Mas não tenhamos ilusões. Na luta pelo desmascaramento de ditaduras da burguesia de fachada democrática, ou seja os regimes instalados na Europa antes do alargamento da UE para 25 países, as forças progressistas devem estar conscientes de que não se abre neste momento a qualquer partido marxista a possibilidade de chegar ao poder através de eleições, a menos que renuncie aos princípios e se submeta ao sistema mediante alianças capituladoras, como aconteceu na França através da esquerda plural.

A fidelidade ao objectivo exige, sublinho, a intervenção parlamentar em defesa das reivindicações dos trabalhadores e a critica permanente das políticas dos partidos no poder. Mas exige também a denúncia firme da engrenagem do sistema e a recusa de ilusões reformistas. Ou seja a rejeição de uma mentalidade eleiçoeira. O capitalismo não é humanizável, tem de desaparecer.

O desenvolvimento da história desmentiu nos últimos anos a tese pessimista segundo a qual a era das revoluções tinha terminado porque o neoliberalismo globalizado seria a ideologia definitiva.

Desde Seattle, e sobretudo após a agressão dos EUA ao Iraque, gigantescas manifestações de protesto confirmaram a rejeição pelos povos do projecto imperial de dominação planetária.

István Meszaros, o eminente marxista húngaro, recorda-nos que a chamada "crise do marxismo", após a implosão da URSS levou muitos intelectuais progressistas a adoptarem uma posição defensiva precisamente numa época em que deveriam empenhar-se numa ofensiva socialista.(2)

Lenine acreditava que a Revolução de Outubro na Rússia desencadeasse "turbulentas revoltas políticas e económicas na Europa e noutros continentes.

O desfecho da I Guerra Mundial não confirmou a previsão. Após o fracasso da revolução na Alemanha e a derrota do Exército Vermelho às portas de Varsóvia, o dirigente bolchevique concluiu que era imprescindível defender a revolução russa custasse o que custasse. A impossibilidade em prazo previsível da revolução mundial exigiu uma dramática revisão estratégica. O refluxo, depois de Versailles, do movimento revolucionário na Europa tornou inevitável a opção por uma estratégia defensiva de longa duração.

O mundo do capital sobreviveu também ao temporal do crash da Bolsa York. A crise não era estrutural. A própria opção pelo fascismo na Alemanha de Weimar inseriu-se numa crise cíclica do capitalismo.

No contexto defensivo, os órgãos de combate socialistas que actuavam no âmbito de instituições de fachada democrática podiam ganhar lutas secundárias, através de reformas impostas pela luta de massas, mas não vencer a guerra contra o capital. A correlação de forças não o permitia.

Mészaros recorda que os dois pilares da classe trabalhadora no Ocidente, os partidos progressistas e os sindicatos, se encontravam na prática inseparavelmente ligados a um terceiro membro da montagem institucional geral, o Parlamento, "mediante o qual se fecha o círculo sociedade civil-estado politico e se converte nesse 'círculo mágico' paralisante ao qual não se pode escapar".

Não cabe aqui lembrar as diferenças, profundas, que separavam a concepção que Lenine tinha da defesa do socialismo num só estado, a Rússia revolucionaria — defesa indissoluvelmente ligada ao reforço da democracia socialista e à luta permanente contra as tendências autoritárias — e as teses de Staline sobre o tema.

O que me parece útil sublinhar neste Seminário Internacional é a necessidade, num contexto de crise global da civilização, de uma passagem da defensiva à ofensiva pelas forças progressistas.

A maré da contestação ao sistema voltou a subir no ano passado com o agravamento da crise do capitalismo globalizado.

Como termómetros de uma maior disponibilidade dos povos para as lutas organizadas, muito difíceis, que se esboçam no horizonte, os Fóruns Sociais Mundiais de Bamako e de Caracas foram esclarecedores.

Participei no primeiro, que teve por sede o Mali.

Daquele pobre e esquecido país africano saiu um Apelo ( http://www.resistir.info/africa/resume_appel_bamako_p.html ) que correu pelo mundo.

Lembramos que as experiências de cinco anos de convergências mundiais das resistências ao neoliberalismo permitiram criar uma nova consciência colectiva.

O Apelo de Bamako pretende ser "uma contribuição para a emergência de um novo sujeito popular histórico".

Para que isso seja possível, isto é a passagem da consciência social ao actor social activo, popular, plural e multipolar, será preciso definir alternativas capazes de mobilizar em escala mundial grandes forças sociais e políticas.

O capitalismo não cairá sem luta.

Quais os objectivos desse Apelo:

Mobilizar para
1- Construir o internacionalismo dos povos do Sul e do Norte face às devastações engendradas pela ditadura dos mercados financeiros e pela implantação globalizada e descontrolada das transnacionais;
2- Construir a solidariedade dos povos da ásia, da áfrica, da Europa e das Américas face aos desafios do desenvolvimento no século XXI;
3- Construir um consenso político-económico e cultural alternativo á globalização neoliberal e militarizada e ao hegemonismo dos Estados Unidos e seus aliados.

Metas essas muito belas e difíceis de atingir, porque construir um mundo com alicerces na solidariedade dos seres humanos e dos povos é tarefa somente realizável após um período revolucionário, de contornos imprevisíveis, de muito sofrimento.

A afirmação de Marx de que a violência é a parteira da história permanece válida. Perderíamos tempo tentando imaginar que formas ela assumirá no confronto final com o capitalismo. Mas a convicção de que outro mundo é possível e que teremos de lutar muito por ele implica a necessidade de nos prepararmos para a viragem iminente.

Companheiros, sendo o socialismo a única alternativa à barbárie capitalista, a passagem da defensiva à ofensiva é, repito, uma exigência premente. Somente a ofensiva nos pode conduzir a uma vitória que garanta a continuação da humanidade.


Notas de rodapé:

(1) "Au dela de la mondialisation libérale: un monde meilleur où pire", comunicação apresentada por Samir Amin no Forum Social Mundial, Bamako, Janeiro de 2006. (retornar ao texto)

(2) István Meszaros, "Para Alem do Capital", capítulo XVIII ( http://www.resistir.info/meszaros/meszaros_cap_18.html ), Editorial Boitempo, São Paulo, Brasil, 2002. (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2021