O X Seminário Internacional do PT mexicano reflectiu a luta dos povos da América Latina

Miguel Urbano Rodrigues

26 de março de 2006


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


O Seminário "Los Partidos y una Nueva Sociedad", promovido anualmente no México pelo Partido do Trabalho daquele país, tornou-se na América Latina (e não só) uma referencia para os cientistas políticos e intelectuais progressistas preocupados com o debate de ideias num momento em que a humanidade enfrenta uma crise de civilização.

Não é propriamente a Agenda que faz dele um acontecimento político e ideológico diferente de outros. é sobretudo a atmosfera.

O X Seminário, este ano, nos dias 17, 18 e 19 de Março, confirmou a tradição.

O que diferencia, afinal, este evento de outros na aparência similares?

Numa roda de participantes em que se discutiu o assunto houve consenso no tocante a cinco peculiaridades que, somadas, contribuem para a "excepcionalidade" do Seminário da PT.

  1. - Com poucas excepções não têm passado por ali grandes nomes do pensamento de esquerda. Não é um evento de "estrelas".
  2. - é um Seminário aberto, muito contraditório. O PT adoptou o "Venceremos" como hino e canta-se a Internacional. Mas entre os participantes figuram personalidades que, afirmando ser revolucionárias, assumem por vezes posições incompatíveis com um ideário de esquerda.
  3. - Comparecem tradicionalmente delegações dos Partidos Comunistas da China, da Rússia, do Vietnam, da Coreia Popular, do Laos, de Cuba e de muitos partidos comunistas da América Latina.
  4. - Não há Declaração Final, mas as Resoluções aprovadas expressam no conjunto uma firme condenação do imperialismo e uma solidariedade internacionalista calorosa com as lutas dos partidos, movimentos e povos que se batem pela liberdade e pelo socialismo contra o sistema de poder dos EUA, o colonialismo e o racismo.
  5. - é um dos raríssimos Encontros Internacionais onde são lidas e aclamadas comunicações enviadas pelas Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia-Exército do Povo, organização perseguida e caluniada em todo o mundo capitalista.

CONTRADIçõES

O X Seminário funcionou como um vasto painel que reflectiu a imagem contraditória que a América Latina oferece nestas semanas, agitada por um vendaval de esperança.

Um dirigente do PT, Gonzalo Yañez, sintetizou, na abertura, a euforia existente ao afirmar que diferentemente de anos anteriores não se procede ao inventário de derrotas, mas à reflexão sobre uma cadeia de grandes vitórias da esquerda latino-americana.

Muitas das intervenções deixaram entretanto transparente, ao longo dos três dias do evento, que um ponderável sector da intelligentsia política do Continente elimina fronteiras entre povos, governos e estratégias de poder. Em generalizações simplistas e inaceitáveis acentua-se a tendência para transformar uma vitória eleitoral numa situação que abre automaticamente as portas a uma transformação radical da sociedade rumo ao socialismo. E a confusão assume tais proporções que alguns oradores identificaram na vitória de Bachelet, no Chile, um triunfo da esquerda continental. A intervenção do chileno Júlio Uga, do Partido Comunista daquele país foi útil e oportuna ao esclarecer que o governo da presidenta eleita dará continuidade à política neoliberal dos anteriores executivos da Concertación.

A euforia nascida da mobilização das massas contra a globalização neoliberal e de um muito positivo aumento da combatividade dos trabalhadores não significa obviamente que a América Latina se encontre no limiar de uma época pré-revolucionaria.

As políticas desenvolvidas pelos governos de Lula, de Kirchner e de Tabare Vasquez confirmam que a eleição de presidentes com forte apoio popular, com programas moderadamente anti-imperialistas e de condenação do neoliberalismo, não impediu a realização de políticas incompatíveis com os compromissos assumidos perante o povo.

A confusão é inseparável do que significa hoje a "Esquerda" para os latino americanos progressistas.

Se na Europa um partido como o PS, de Soares, Sampaio e Sócrates, tem desenvolvido sistematicamente políticas de direita, fácil é imaginar as ilusões que o discurso "socialista" gera na América Latina.

O facto de o México se encontrar em campanha eleitoral não contribuiu para facilitar uma reflexão serena sobre o que é hoje a Esquerda nos países a Sul do rio Bravo. Dois dos candidatos à Presidência, Roberto Madrazo, do PRI, e Felipe Calderon, do PAN, defendem programas de cumplicidade óbvia com o imperialismo, embora o primeiro se apresente como representante de um partido de origem "revolucionária". Mas o terceiro, Lopez Obrador, do Partido da Revolução Democrática (PRD) irrompe na campanha como um social-democrata de esquerda, que não é. Seria uma ingenuidade acreditar que Obrador – que leva grande vantagem nas sondagens – assumirá, se eleito, os objectivos e ideais anti-imperialistas do general Lázaro Cardenas, pai do fundador do PRD, Cuhautemoc Cardenas. Tudo indica que não resistirá à pressão dos EUA para desmantelar a Pemex e privatizar o essencial do sector energético.

O facto de o Partido del Trabajo participar da Aliança "Para El Bien de Todos", que sustenta a candidatura de Obrador, não contribui para facilitar a compreensão do processo mexicano porque o Partido organizador do Seminário se define como irredutivelmente anti-imperialista, identificando-se com o pensamento de Marx e Lenine, não hesitando em apontar o socialismo como única alternativa a um capitalismo senil.

Para os leitores portugueses avaliarem a complexidade deste X Seminário creio oportuno referir que Alberto Anaya, o dirigente mais carismático do PT, prestigiado professor universitário de Economia, apresentou ao Seminário, com outros camaradas do PT – Alfonso Rios Vasquez, Arturo Lopez Cândido e José Roa Rosas –- uma comunicação intitulada "Los Problemas de la Construcción del Socialismo", que, transcendendo o âmbito académico, tem a estrutura e o tom de um documento militante. Nesse ensaio, de grande qualidade, Anaya, procede a uma síntese histórica das ideias centrais de Marx, do socialismo de Lenine, de Mao Tse e Deng Xiaoping, prosseguindo com um enunciado de elementos teóricos e práticos da questão fundamental da transição do capitalismo ao socialismo, para concluir com um balanço do socialismo real e uma proposta dos eixos essenciais da reformulação actual do projecto socialista.

A PRESENçA DA CHINA

As intervenções da delegação chinesa – integrada por um vice-ministro, pelo embaixador no México e membros do Comité Central do Partido Comunista – suscitaram o debate mais interessante do Seminário.

Na resposta a perguntas formuladas, os representantes do grande país aproveitarem a oportunidade para abordar temas que suscitam polémica no Ocidente.

Não será por acaso que nas grandes universidades dos EUA e da Europa destacados cientistas políticos escolhem a China para tema de teses em que se esforçam por apresentá-la como um país em rápida evolução para o capitalismo. Alguns lamentam o rumo que atribuem à China, mas curiosamente esses autores são quase todos anticomunistas convictos.

Essa contradição parece inseparável do medo nascido da certeza de que o século XXI será um século chinês e que os interesses do gigante asiático são incompatíveis com a estratégia de dominação mundial do imperialismo norte-americano.

Contestando as campanhas que apresentam a China como uma sociedade em transição para o capitalismo, os delegados chineses, chamaram a atenção para o facto de o Estado não se apresentar ali como representativo de qualquer modelo socialista. No Ocidente promove-se deliberadamente uma falsa imagem da China, simulando ignorar que o país se encontra no início de uma longa caminhada. A etapa primária de acumulação, a actual, não é apresentada pelo Partido como expressiva da futura sociedade, mas somente como uma fase da transformação rumo ao socialismo.

Iluminando os tremendos desafios enfrentados, os delegados chineses lembraram que em 1949, após a vitória da Revolução, a renda per capita não excedia no país 27 dólares. Com 22 % da população mundial, a China dispõe apenas de 7% da terra cultivável e de 6% da água existente no planeta. O atraso global do país e a insuficiência de recursos naturais não impediriam que sob a direcção do Partido, superadas complexas crises internas, a China se transformasse nos últimos anos numa sociedade que apresenta as maiores taxas de crescimento do planeta. Erradicou a fome, é já o maior produtor mundial de cereais e como potência industrial ocupa o primeiro lugar em múltiplos sectores produtivos.

A China, sublinharam, não esconde a existência de problemas sociais graves. Aproximadamente 800 dos 1300 milhões vivem em zonas rurais onde o progresso é muito mais lento e as carências transparentes. O esforço para a redistribuição da riqueza produzida é uma preocupação prioritária, mas o Partido e o Governo têm consciência – assim foi afirmado – de que graves insuficiências nos sectores da educação e da saúde são ainda um obstáculo ao desenvolvimento harmonioso da sociedade.

Longe de se mostrarem chocados com as perguntas criticas, os delegados de Beijing agradeceram a franqueza que caracterizou o debate, mas afirmaram com muita firmeza que o Partido Comunista controla o processo de transformação social, indefectivelmente fiel aos princípios do marxismo-leninismo.

VENEZUELA, BOLíVIA, CUBA

As intervenções cujos temas incidiam sobre a Venezuela, a Bolívia e Cuba suscitaram muito interesse.

A Revolução Bolivariana entusiasma os povos do hemisfério. As forças progressistas, do México à Argentina, acompanham com esperança as transformações em curso na pátria de Bolívar. Repete-se noutro contexto histórico o que aconteceu com Cuba. Sob o governo de Hugo Chavez, a Venezuela, acossada pelo imperialismo, aliado a uma burguesia envolvida em conspirações em cadeia, demonstra que é possível resistir à mais poderosa potência mundial e seguir um caminho próprio na construção do futuro. O seu povo derrotou um golpe de estado militar concebido e financiado pelos EUA, derrotou o lock-out petrolífero que quase paralisou o pais, venceu o referendo revogatório cujo objectivo era o afastamento de Hugo Chavez.

A economia venezuelana é ainda uma economia cujos mecanismos são no fundamental os do capitalismo. As exportações de petróleo – principal riqueza – dirigem-se sobretudo para os EUA. Mas o controlo dos recursos naturais foi transferido da burguesia para o Estado. A dependência do líder carismático, excessiva, é preocupante porque avança muito lentamente o projecto de criação de uma organização revolucionaria que responda às exigências do desafio da historia. O V Republica, mais movimento do que partido, não está vocacionado para desempenhar essa função.

Chavez radicalizou o discurso, responde com firmeza e coragem, por vezes com veemência desnecessária, inerente à sua combatividade explosiva, à insolência e perfídia das ameaças imperiais. Condena já o capitalismo como sistema de opressão dos povos condenado a desaparecer. Desfralda as bandeiras do socialismo, o que contribui para redobrar a agressividade de Washington. Mas as incógnitas colocadas pelo processo são muitas. O discurso revolucionário, torrencial, não pode por si só resolve-las. A insistência no "socialismo do século XXI" como resposta inovadora ao capitalismo senil confunde mais do que ajuda.

No Seminário transpareceu nas intervenções da delegação venezuelana a diversidade das mundividências dos seus membros. As de Rafael Uzcategui foram quase excepção pela coerência e procura do rigor ideológico.

O cubano Roberto Regalado, na apresentação do seu livro «América Latina Entre Siglos» (Ocean Press, Melbourne, Nova York, La Habana, www.oceanbooks.com.au ) justificou o prestígio que adquiriu como conhecedor profundo das lutas dos povos do Hemisfério e das estratégias do imperialismo. A obra é uma síntese das vivências e reflexões acumuladas por uma testemunha privilegiada. Como intelectual comunista militante, Regalado tem ainda o mérito de situar como pano de fundo de muitas dessas lutas a Revolução Cubana como acontecimento de significado transcendental que inflectiu o rumo da historia da América Latina, marcando a da humanidade.

As intervenções sobre o processo em desenvolvimento na Bolívia foram também acompanhadas com muita atenção, como se esperava, porque a eleição de Evo Morales por maioria absoluta catapultou o povo de Tupaj Katari e Juan José Torres para o primeiro plano da actualidade internacional. Ao colocar na presidência um índio que afirma o seu propósito de transformar radicalmente a sociedade, o milenário e heróico povo boliviano aparece já ao imperialismo estadunidense como inimigo potencial.

Num Seminário como o do PT é praticamente impossível citar as muitas comunicações importantes, separando-as das desprovidas de significado, que também foram muitas. Não tive sequer a possibilidade de ouvir ou ler todas.

Acrescentarei entretanto que, por motivos diferentes, recordo as do mexicano Arturo Huerta, um dos mais talentosos e lúcidos economistas da América Latina, as de Marcos Domich e Renan Raffa, secretários-gerais do Partido Comunista da Bolívia e do Partido Comunista Peruano.

Uma europeia, a comunista italiana Marina Minicuci, lançou ao plenário um desafio: a necessidade urgente de globalizar as luta a resistência dos povos, o que exige uma coordenação inexistente entre movimentos e partidos. Se esse trabalho não for empreendido, «sem um esforço de organização – sublinhou – tudo se esgota num intranscendente plano de retórica».

A única intervenção de um brasileiro, dirigente do PT, um trotskista-posadista, foi decepcionante. Chegou ao extremo de elogiar o envio de tropas para o Haiti .

Um ausente, o prof Remy Herrera, do CNRS da França, enviou uma brilhante e original comunicação intitulada "Crise Estrutural do Capitalismo, Lutas Sociais, Alternativas".

AS RESOLUçõES APROVADAS

Não houve Declaração Final. Mas as Resoluções aprovadas, muitas por aclamação, em atmosfera de fraternidade, surgiram como o desfecho natural de um encontro internacional – compareceram delegações de 30 países representando 62 organizações e partidos – que foi de certa maneira um mostruário, embora contraditório, do momento que se vive na América Latina, caracterizado por uma ascensão torrencial das lutas anti-imperialistas dos seus povos.

é, por ora, impossível prever os contornos das sociedades de amanha, mas até em Washington a extrema direita neo-nazi, instalada no Poder, tomou consciência de que o neoliberalismo suscita a repulsa unânime dos povos e que para muitos milhões de latino americanos o socialismo surge como a única alternativa à barbárie capitalista.

Cito entre outras Resoluções as relativas a Porto Rico, à Coreia Popular, ao Equador, ao Haiti, à Republica Dominicana, à libertação de presos políticos, à luta das FARC-EP e do ELN colombianos, ao Iraque, à luta da juventude e dos trabalhadores da França, à Venezuela bolivariana, a Cuba, à China, à Palestina, ao Brasil, à Argentina, à defesa da agua e outros recursos naturais, à condenação das campanhas anticomunistas, às migrações e ao racismo, etc.

Uma atmosfera de profunda emoção envolveu a homenagem a Schafik Handal, o grande revolucionário salvadorenho recentemente falecido. Fundador da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, ex-comandante de uma guerrilha épica, Schafik, homem de pensamento e acção, deixa-nos o exemplo inesquecível do comunista e combatente exemplar que foi desde a juventude.

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O X Seminário coincidiu com a realização na capital mexicana do IV Fórum Mundial da Agua controlado por transnacionais que pretendem privatizá-la a escala mundial.

Paralelamente houve outro Fórum, de combate ao projecto, promovido por organizações progressistas. Ambos polarizaram durante dias a atenção da comunicação social.

Os desfiles de protesto contra o Fórum oficial, de iniciativa dos sindicatos, trouxeram às ruas do centro milhares de pessoas. Não faltaram choques com a polícia.

Gigantesca megalópolis, a Cidade do México, coração de uma área metropolitana com 20 milhões de habitantes, vive com intensidade esses acontecimentos. Por todo o lado a água tornou-se tema de debates apaixonados. Um motorista de táxi, em conversa comigo, subiu cinco séculos no tempo para responsabilizar os espanhóis pelo desaparecimento da maravilhosa laguna onde se erguia Tenochtitlan, a capital azteca destruída por Hernan Cortés.

O Seminário foi tão absorvente e denso que me obrigou a opções difíceis no aproveitamento dos dias livres.

Mas pude dedicar umas horas a revisitar o Museu de Antropologia, um lugar mágico onde, em cada regresso, tento descer mais fundo na compreensão da história profunda do México pré-colombiano.

Voltei também a Teotihuacan, a cidade dos deuses, a das Pirâmides do Sol e da Lua, prodígio de urbanismo, que fora abandonada há seis séculos quando os espanhóis ali chegaram.

O México é para mim paixão permanente. Eu a senti pulsar com força quando uma manhã, em Xoximilco, navegando numa canoa pela rede de canais (193 quilómetros) daquele labirinto aquático, meditava sobre as contradições da terra e do povo que nela vive.

Herdeiro de uma Historia trágica e bela, o México moderno sente orgulho das civilizações assassinadas que revivem na nação mestiça, filha de culturas antagónicas, mal fundidas.

Esse pais do inimaginável, onde o absurdo nunca surpreende, levou adiante no começo do século XX a primeira grande revolução que teve por cenário a América Latina. A memória de guerrilheiros como Emiliano Zapata e Pancho Villa, cujos feitos lembram os de míticos heróis gregos, torna hoje mais doloroso o presente. Choca o espectáculo oferecido por uma direita cavernícola, encastelada no poder sob tutela dos EUA, cujo representante é o presidente Fox, ex-director da Coca Cola.

Na despedida, ao contemplar do céu a maior cidade do mundo, aqueceu-me a certeza de que o meu México fascinante permanece vivo e o seu povo voltará a caminhar pelas grandes alamedas da Historia. Num mundo em que o capitalismo terá desaparecido.

Serpa, 26/Março/2006


Inclusão: 04/11/2021