Seara de ódio num campo de incógnitas

Miguel Urbano Rodrigues


Fonte: https://www.resistir.info/mur/eua_afeg_bush.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Uma seara de ódio contra os Estados Unidos cresce nos vales e montanhas do Afeganistão. Mas não apenas nesse berço de grandes civilizações. A irracionalidade da estratégia de dominação planetária do sistema de poder norte-americano e a agressividade que a acompanha criam a cada novo mês, quase a cada semana, situações que geram em povos do Terceiro Mundo sentimentos de revolta e rejeição.

Neste inicio do século XXI adquire uma dramática actualidade a advertência do Che ao apontar o imperialismo norte-americano como o grande inimigo da humanidade.

AFEGANISTÃO: ANARQUIA E VIOLÊNCIA

Do Afeganistão fala-se cada vez menos. Os grandes media concluíram que o tema se tornou incomodo.

Até o muito prudente The Washington Post reconhece em editorial (9 de julho pp) que a anarquia alastra no país, o comercio do ópio prospera, a violência tende a aumentar e a ordem política pós talibã é muito frágil.

Enquanto os generais se interrogam no Pentágono sobre o paradeiro de duas personagens erigidas em figuras míticas — Osama ben Laden e o mullah Omar — as bombas e os mísseis norte-americanos continuam a explodir em áreas remotas das montanhas, matando. De acordo com os comunicados, os alvos seriam grupos de talibã ou de gente da Al Qaeda. Mas com frequência as vitimas são pacíficos moradores das tribos da fronteira ou soldados e oficiais de países aliados que participam na ocupação do país. Isso já aconteceu com tropas canadianas e britânicas, o que gerou em Otawa e Londres uma onda de indignação. O mais recente engano motivou um pedido de desculpas apresentado pelo próprio secretário da defesa, Donald Rumsfeld: um piloto da USAF tomou uma festa de casamento por concentração subversiva e procedeu a uma chacina colectiva. Noivos, parentes e convidados foram despedaçados pela metralha que desceu do céu.

Naturalmente, nos EUA, associações de beneficência e de defesa da moral continuam a proclamar que o povo afegão tem motivos para agradecer a cruzada norte-americana que levou ao país a paz, a educação, a democracia e a liberdade.

Assisti há dias a um vídeo original: a senhora Laura Bush, dirigindo-se às mulheres afegãs, anunciava-lhes, com convicção e emoção, que o Afeganistão, graças à solidariedade dos EUA, se encontra no limiar de uma era de felicidade.

Quanto à democracia, o quadro da Pax Americana é medonho. A Loya Jirgah, a grande assembleia tradicional, convocada para decidir o futuro político do pais, aprovou tudo o que dela foi exigido. A factura apresentada pelos chefes tribais foi de muitos milhões de dólares. Mas nem todos aceitaram o ouro americano. Algumas centenas abandonaram o plenário — instalado numa gigantesca tenda para dar a cor local — e denunciaram a grande farsa.

O presidente Hamid Karzai, que foi funcionário subalterno de uma companhia petrolífera norte-americana, comporta-se como um criado dos EUA. O assassínio do seu vice, Qadir, veio lembrar que o protectorado imposto pelo império incentivou, em vez de atenuar, as lutas endémicas travadas entre pachtuns e tadjiques.

Os ataques cada vez mais frequentes a instalações militares dos EUA esses vão prosseguir. Washington atribui-os a bandos da Al Qaeda. Mas o alto comando norte-americano está consciente de que eles anunciam numa guerra de larga duração. O Afeganistão não é o Kosovo. As espigas da seara de ódio contra os EUA germinam naquela terra de culturas milenárias.

Quatro visitas ao pais nos anos 80 permitiram-me estudar com a profundidade possível a história dos seus povos.(1) Conheci ali homens e mulheres que me inspiraram grande admiração pela lucidez, firmeza e coragem com que se batiam por uma revolução democrática e nacional. Eles são o outro lado, o invisível, de um sociedade arcaica cuja extraordinária complexidade desmente o simplismo daqueles que lhe desconheciam quase a existência antes de começarem a bombardear o Afeganistão sob o pretexto de ser o pais dos Talibã e o refugio de Bin Laden.

Saberá Bush que no actual território do Afeganistão floresceram na Antiguidade culturas maravilhosas e nasceram génios da humanidade como Al Biruni, Firdusi e Sanaí? Terá conhecimento do que significou para a Historia a Civilização Kuchana? Terá ouvido falar das ruínas de esplendidas cidades greco-bactrianas fundadas a Norte e Sul do Hindu Kuch pelos veteranos de Alexandre o Magno?

Não me parece plausível dada a sua estrutura mental. Registei que manifestou entusiasmo pelo bombardeamento de lugares muito próximos de campos arqueológicos que constituem património da humanidade.

OS EUA NA ÁSIA CENTRAL

No Pentágono acumulam-se relatórios sobre o desenvolvimento previsível da oposição das populações à situação criada no conjunto da Ásia Central pela presença dos EUA.

As opiniões dos analistas divergem. Os norte-americanos chegaram para ficar. Os atentados do 11 de Setembro permitiram levar adiante uma estratégia de penetração e controle da Região concebida com muita antecedência. Mas a ambição dessa estratégia e a rapidez com que está a ser aplicada aumentam dialectica mente a sua vulnerabilidade.

A agressão ao povo do Afeganistão (nunca antes se vira um império declarar guerra a um homem, Osama ben Laden, e não a um Estado) foi, afinal, apenas o prólogo de uma implantação fulminante dos EUA na vastidão centro-asiática.

Na Republica do Kirguizistão já foi construída uma gigantesca base aérea. Uma guarnição de 3000 norte-americanos instalou-se nessa área estratégica, próxima das fronteiras ocidentais da China. No Turquemenistão, no Kasaquistão e no Azerbaijão, dirigentes e técnicos de grandes companhias petrolíferas movem-se como se estivessem no Texas. Mas no Uzbequistão têm de ser cautelosos. Nesse pais, pátria do turco chagatai Tamerlão – um dos mais famosos conquistadores da história – uma guerrilha islâmica com 2000 homens actua nas montanhas, alarmando com a sua simples presença as tropas americanas, o punho de ferro que antecedeu a chegada dos homens do capital.

O russo Vladimir Putin não protesta. Vai mais longe nas cedências do que Ieltsine, o que não parecia possível. Simula não ver aquilo que é transparente. Um cordão de bases militares norte-americanas, nada menos de 17, tomou forma desde a região transcaspiana aos contrafortes ocidentais das Cordilheiras do Pamir e do Tien Chan.

A China inquieta-se. E tem sobrados motivos para isso.

O BIG BROTHER DE ORWELL

O prof. David Held, da London School of Economics and Political Sciences, definiu o 11 de Setembro como o ponto de inflexão da era contemporânea em que o projecto da globalização neoliberal se encontrou com o projecto do terrorismo em massa. A fórmula, ambígua, suscita confusões, porque para aquele académico britânico o segundo seria uma iniciativa do «terrorismo radical mundial». E aí comete um erro. Ambos os projectos são, paradoxalmente, comandados pelos EUA. O Estado que funciona como pilar e motor da globalização utiliza o seu imenso poder para desencadear, directa ou indirectamente, o terrorismo mais brutal contra governos e povos que apresenta como estorvos ao desenvolvimento da sua estratégia de dominação planetária. Para essa política de escalada conta na nevrálgica zona do Médio Oriente com um aliado, Israel, cujos métodos reactualizam os utilizados pela Alemanha nazi.

A irracionalidade dos dois projectos — o económico e o político-militar — que tendem para a fusão, começa, entretanto, a assustar os sócios no G-7 que comparticipam dos benefícios da sobrexploração do Terceiro Mundo e actuaram como cúmplices das criminosas agressões contra os povos do Iraque, da Somália, da Jugoslávia e do Afeganistão.

Em Junho o Weatherhead Center for International Affairs da Universidade de Harvard promoveu no lago de Annecy, numa paradisíaca estancia turística da França, um Seminário sobre «O Futuro da Política Exterior dos EUA».

Estiveram ali eminentes especialistas em questões internacionais. Pelos relatos a que tive acesso, soube que os participantes europeus e asiáticos, predominantemente conservadores, ficaram em estado de choque. O que os alarmou foi a convergência dos seus colegas norte-americanos no tocante à aprovação do «unilateralismo» dos EUA, ou seja do seu direito, autoproclamado, de agirem por conta própria, à revelia das Nações Unidas ou dos seus próprios aliados.

Quanto ao modo de actuar, os académicos norte-americanos dividiram-se. Para uns, defensores da tendência imperialista, os EUA devem intervir em qualquer lugar do mundo onde identifiquem uma ameaça para os seus interesses. Segundo a outra tendência, a isolacionista, os EUA deveriam — salvo em casos excepcionais — abster-se de intervenções directas, optando por lançar uma contra a outra as potências regionais cuja política os incomode. Exemplos: o Irão contra o Iraque, o Paquistão contra a Índia, a China contra a Rússia, ou eventualmente contra o Japão.

Diego Hidalgo, presidente da Fundação para as Relações internacionais e o Dialogo Exterior, esteve presente. Recorda que em momento algum os expositores norte-americanos, geralmente arrogantes, abordaram temas como a paz, a solidariedade, a ajuda aos povos que se afundam na fome, na miséria e na doença.

O Presidente George Bush é um adepto entusiástico do «unilateralismo. Para ele, quem deve governar o mundo são os EUA, como nação predestinada.

No seu discurso de West Point, dirigindo-se aos futuros oficiais e ao mundo, deu um passo em frente na escalada neo-nazi ao fazer a apologia das guerras preventivas. Considera negativo esperar pela concretização daquilo a que chama as ameaças terroristas. Adverte que os EUA, ao pressenti-las, devem atacar sem perda de tempo. As referencias a Cuba são, por si só, reveladoras do recorte paranóico dessa arenga. Deve ignorar que algumas sentenças das suas arengas belicistas lembram passagens de discursos de Hitler e Goering.

O presidente da grande República tem dificuldade em compreender a ingratidão da esmagadora maioria da humanidade. Dói-lhe que milhares de milhões de pessoas não demonstrem admiração pelo funcionamento da democracia norte-americana e pelo esforço que esta desenvolve para levar a liberdade, o progresso, a cultura e a paz aos confins do mundo.

A recusa de Washington de submeter as tropas norte-americanas em missões da ONU à jurisdição do Tribunal Penal Internacional é expressiva da tendência crescente da Administração Bush para se colocar acima do Direito Internacional. O resultado foi um compromisso com sabor de capitulação do Conselho de Segurança para evitar a retirada da Bósnia dos militares dos EUA.

À força do direito Bush contrapõe o direito dos fortes. No plano interno, a lei antiterrorismo, aliás aprovada ainda no governo de Clinton, golpeia duramente direitos e garantias constitucionais. Até o velho instituto do habeas corpus , cartaz das liberdades norte-americanas, está ameaçado de suspensão.

A política dos EUA no Médio Oriente, nomeadamente o apoio ao genocídio que atinge o povo da Palestina e a exigência de renuncia de Yasser Arafat, a amplitude da sua implantação na Ásia Central e os inconfessáveis objectivos por ela visados, as repetidas ameaças à Coreia Popular, ao Irão e à Líbia, a naturalidade com que o Presidente Bush anuncia uma nova guerra destinada a eliminar o Iraque e as revelações sobre planos oficiais para assassinar estadistas estrangeiros definidos como inimigos – resumindo, a intervenção global do sistema de poder imperial nos assuntos internacionais e o gigantesco aumento dos gastos militares emergem como expressão de uma perigosa irracionalidade.

As apreensões da humanidade aumentam na medida em que essa estratégia de loucura encontra com porta voz de projectos guerreiros alucinatórios um homem investido de enormes poderes cujo primarismo, incultura e escassa inteligência suscitam consenso universal.

Era inevitável que as contradições entre os interesses dos aliados europeus dos EUA e as perigosas e agressivas metas de uma estratégia que ameaça a própria continuidade da vida no planeta sejam hoje transparentes. Mas a covardia dos governos da União Europeia (sócios na partilha dos recursos mundiais) e as forças e mecanismos de poder que os controlam impedem que o agravamento das tensões no clube dos ricos possa contribuir para conter a escalada americana que empurra a Terra para uma tragédia.

COMO É POSSÍVEL?

Dando livre curso à tendência bem norte-americana de privilegiar o secundário em prejuízo do fundamental, um numero crescente de intelectuais liberais formula nas grandes universidades dos EUA a pergunta — «Como foi possível?», procurando uma explicação para a presença de George W Bush na Casa Branca.

A resposta a essa questão parece preocupar muito mais esses brilhantes intelectuais do que o combate ao sistema em cujo vértice este presidente incapaz e perigoso se situa. Também não os motiva a busca de uma explicação para a elevada popularidade de que continua a gozar e o apoio que a maioria da sociedade presta à sua política perigosamente aventureira.

O jornal mexicano Norte, chamava há dias (17 de Julho pp) a atenção para uma realidade que perturba muito os cérebros do sistema de poder dos EUA: a derrocada do socialismo real na URSS e a desagregação desta não conduziram ao triunfo do capitalismo, como previam os epígonos da globalização neoliberal.

O capitalismo globalizado, de figurino imperial, pelo contrario, está muito doente. E os sintomas, alarmantes, suscitam temores de que a doença seja incurável.

A repentina vaga de escândalos financeiros nos EUA, gerando o pânico nas bolsas, acabou, aliás, surpreendentemente por envolver a própria pessoa do presidente dos EUA, trazendo à memória outros escândalos, que abalaram o prestigio de anteriores ocupantes da Casa Branca.

As fraudes que fizeram ruir gigantes como a Enron, a Word Com, a Andersen e outras transnacionais permitiram que milhões de americanos — 60% das famílias jogam na Bolsa —- descobrissem de um dia para outro que empresas que lhes inspiravam profundo respeito eram, afinal, geridas por executivos que se comportavam como gangsters.

Mas, inesperadamente, outros negócios sujíssimos, em empresas menores, revelaram que o presidente dos EUA tem também um turvo passado financeiro. «A rede de corrupção que envolve a família Bush e a firma petrolífera Haliburton (e outras) — cito outra vez El Norte — «provoca assombro, mas também nojo e indignação». Sabemos agora que num sistema que pretende ligar a ascensão política ao mérito pessoal, uma empresa ligada ao Presidente foi beneficiada por contratos com o Pentágono já durante a chamada guerra contra o terrorismo. Para cúmulo, o actual vice-presidente Dick Cheeney, um super falcão foi um dos dirigentes da Haliburton...

George Bush, que em 91 escapou milagrosamente da Securities and Exchange Comission na sequência de negócios suspeitos, cometeu então na empresa Harken o tipo de fraudes que hoje censura nos gigantes como a World Com, já falida.

Acompanhei pela televisão, com mal estar, alguns discursos deste presidente que deveria envergonhar o povo de Jefferson e Lincoln. Sendo, obviamente, muito diferente, este rebento da família Bush me faz lembrar pela arrogância, auto suficiência, gestos, burrice e agressividade o Kaiser Guilherme II quando era o chefe do poderoso Império Alemão, cujo exército era o terror da Europa. George filho não pode, reconheço, proclamar como fazia o Hohenzollern que o seu poder tem origem divina. Mas meses atrás anunciou solenemente que a sua cruzada contra o povo do Afeganistão contava com o apoio de Deus.

Para que moderna tragédia nos está empurrando a neo barbárie norte-americana cujo símbolo é a personagem grotesca de George W.Bush?


Notas de rodapé:

(1) Miguel Urbano Rodrigues, «Nómadas e Sedentários na Ásia Central», 435 pgs, Ed. Campo das Letras, Porto, 1999. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021