Os herdeiros do austro-marxismo na batalha ideológica

Miguel Urbano Rodrigues


Primeira Edição: Publicado originalmente em vários sítios web hispano-americanos, em Rebelion e no jornal brasileiro Correio da Cidadania

Fonte: https://www.resistir.info/mur/austro_marxistas.html

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Está na moda em determinados meios intelectuais a campanha para renovação do marxismo. Sendo o marxismo, na fidelidade ao pensamento de Marx, um sistema que exige permanente renovação para manter as suas potencialidades criadoras, esse debate deveria ser saudado como positivo.

Muitos dos que participam nessa campanha perseguem, entretanto, um objectivo oposto ao enunciado. Na pratica assume um ostensivo caracter anticomunista, sobretudo em países onde existem partidos comunistas com forte implantação entre as massas.

A leitura de textos dessa vaga de «renovadores» europeus e latino-americanos, supostamente empenhados em dar um novo impulso ao marxismo e reformar partidos em que alguns ainda militam, fez-me voltar à leitura de textos que lera na juventude.

As analogias históricas na analise política, erigidas em método, sempre se me afiguraram perigosas. Mas o conhecimento das grandes lutas revolucionarias do inicio do século XX, no quadro em que elas se desenvolveram, bem como as ideias e a personalidade dos protagonistas é indispensável à compreensão do presente.

Vem isto a propósito da releitura que fiz há dias de um livro em que Trotski se pronuncia sobre a fina flor dos intelectuais marxistas que conheceu em Viena pouco antes da Primeira Guerra Mundial.

Pertenço a uma geração de velhos comunistas muito distanciados das polémicas teses de Trotski sobre a Revolução Permanente. Admirando o escritor e respeitando o revolucionário, identifico na sua visão voluntarista e prospectiva da historia e na sua concepção administrativista do partido uma atitude idealista, desajustada do marxismo tal como o assimilei. O meu distanciamento de Trotski e uma opinião desfavorável sobre o trotskismo nunca me impediram de considerar uma estupidez e uma iniquidade ética e política o apagamento na URSS do nome e da obra do ex-presidente do Soviete de Petrogrado e ex-Comissário da Guerra.

Para mim nunca foi crime citar Trotski ao encontrar nos seus escritos lições úteis. É o caso do capítulo do seu ensaio autobiográfico(1) em que relata o efeito de choque produzido pelo descobrimento dos principais dirigentes da social democracia austríaca, que na época se assumia como marxista.

Em meia dúzia de paginas retracta Otto Bauer, Carlos Renner, Max Adler e Victor Adler.

«Eram — escreve — pessoas extraordinariamente cultas, que sabiam bastante mais do que eu de muitas coisas».

Na primeira reunião em que participou com eles no Café Central de Viena, a sua sensação foi de deslumbramento. Acompanhou a conversa quase com «devoção». Mas depois o interesse foi superado pelo assombro. Percebeu que aqueles talentosos intelectuais não eram revolucionários: «encarnavam o tipo de homem que é precisamente o oposto ao revolucionário».

Os austro-marxistas eram narcisos que se contemplavam com orgulho; vibravam com o esforço teórico produzido. Conhecedores profundos das obras de Marx e Engels, exegetas de «O Capital», os marxistas vienenses eram «completamente incapazes de aplicar o método de Marx aos grandes problemas políticos e sobretudo ao seu aspecto revolucionário». Escreviam magníficos artigos, reveladores da sua erudição, mas não iam alem da assimilação passiva do sistema.

Trotski é quase cruel ao tentar defini-los: «Estes austro-marxistas não passavam em geral de uns bons senhores burgueses que se dedicavam a estudar esta ou aquela parcela da teoria marxista como podiam estudar a carreira do Direito, vivendo agradavelmente dos juros de O Capital ».

Diferentes, coincidiam num sentimento: todos temiam a revolução cuja apologia faziam nos seus brilhantes trabalhos.

Nos anos que precederam a guerra começaram a sentir-se mal quando a possibilidade de ruptura da velha ordem que combatiam com palavras deixou de ser encarada como utopia. A guerra secou-lhes as gargantas e desviou-lhes o rumo e o significado dos escritos. Depois, a Revolução Russa assustou-os. Tomaram dela prudente distancia.

Que diferença, comenta Trotski, entre aqueles senhores, aristocratas do pensamento, que gostavam de ser tratados pelos operários por «camarada herr doktor» e a simplicidade revolucionaria de Marx e Engels, que «sentiam um sereno desprezo por tudo o que fosse brilho aparente, pelos títulos, pelas hierarquias». Nada do que era humano os deixava indiferentes, mas pairavam acima das ambições temporais, do circunstancial da política, das contingências da historia.

Em Berlim, Trotski registou que a social democracia alemã diferia da austríaca. Fazia-se ainda sentir o peso de personalidades como Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e mesmo o velho Bebel. Mas Kautsky, o «papa da II Internacional », como lhe chamava a direita, envelhecera, acomodara-se. Tratava de vulgarizar o marxismo como um mestre-escola, impondo-se já como única missão conciliar o reformismo com a revolução. Não escondia «a sua aversão orgânica a tudo o que significasse transplantar métodos revolucionários para solo alemão».

O processo de revisão manipulatória do marxismo, iniciado por Edward Bernstein (Cavaco Silva confessou ser seu grande admirador), assente na premissa de que o movimento é tudo pelo que a revolução seria desnecessária e aberrante, contaminava muitos dos dirigentes, contendo o ímpeto do partido, tornando-o quase inofensivo. O velho SPD exibia ainda uma imagem revolucionária, mas nele estava em rápida ascensão a corrente reformista que viria a ser liderada por Ebert, o futuro presidente da Republica de Weimar, o carrasco dos espartaquistas que após a Guerra viria a afogar em sangue a revolução alemã.

Trotski recorda que enquanto Rosa e ele participaram como militantes numa grande manifestação de massas em Berlim, Kautsky optou por assistir como mero espectador. Entre ele e o sentir do proletariado revolucionário surgira um abismo.

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Durante a ditadura dos generais, trabalhei no Brasil com duas ou três gerações de intelectuais de esquerda que então se diziam marxistas. A maioria galopou para a direita. Actualmente, muitos defendem a globalização capitalista, como o Presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-príncipe da Sociologia Marxista, pai, com o chileno Enzo Faletto, da teoria da dependência, hoje por ele renegada.

Na Europa pululam entre os críticos do neoliberalismo sacralizado e do hegemonismo imperial dos EUA reformadores da sociedade capitalista cujo único denominador comum é uma aversão insuperável ao comunismo como projecto, mesmo remoto, de um mundo futuro, longínquo. Uns dizem ser marxistas, outros não.

Faz oito anos, fui em Pontevedra, com Boaventura Sousa Santos, um dos participantes num Seminário promovido pela Aula Castelao de Filosofia. O tema era a Democracia no mundo que emergia da Guerra Fria, da Descolonização, do desaparecimento da União Soviética.

Recordo que Boaventura, numa mesa redonda final, depois de expressar a sua inaceitação do leninismo, sublinhou que a postura crítica que assumia perante a obra teórica de Lenine e a intervenção na historia do grande revolucionário russo não implicava uma rejeição global do marxismo. Para ser mais explícito informou que admirava os austro-marxistas.

Foi breve a minha réplica. Lembrei-me dos Adler, de Otto Bauer e também do alemão Bernstein. Achei oportuno o esclarecimento; demonstrava, afinal, óbvio.

Você, Boaventura — comentei — deixou tudo muito claro. Em Lenine não aprecia o revolucionário. Aqui poucos dos presentes, admito, leram os austro-marxistas. Mas por que os admira você? Porque não foram revolucionários, porque nunca constituíram ameaça para o sistema. Eram inofensivos».

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Incontáveis vezes ao longo da vida, sobretudo durante os anos do exílio brasileiro, nas décadas em que a América Latina foi um efervescente laboratório ideológico, intervim no debate travado em torno do binómio antinómico reforma-revolução.

O tema voltou a ser actual, embora o interesse da discussão seja inseparável da recusa de paralelos descabidos e da consciência de que o contexto histórico é profundamente diferente do anterior. Não será com citações de Rosa Luxemburgo e Bernstein, fundamentando o discurso em situações históricas e sociais da época, que o debate poderá adquirir hoje significado e utilidade.

O mundo contemporâneo, hegemonizado pelas globalização neoliberal, é uma herança do capitalismo reformado. Mas neste início do século XXI a ideia de revolução, a fronteira entre o reformismo revolucionário e as reformas de defesa do capitalismo são outros, inimagináveis na época da Revolução de Outubro.

A correlação de forças existente na Terra, submetida a um sistema de poder que desenvolve uma estratégia fascistizante, agressiva e irracional, de dominação planetária não permite sequer prever como e quando surgirão condições para rupturas revolucionarias que ponham fim ao flagelo do capitalismo desumanizante. Mas a nossa incapacidade para definir sequer os contornos que assumirá o socialismo futuro, não impede, antes exige, a condenação firme das campanhas desenvolvidas por aqueles que, invocando farisaicamente a necessidade de renovar o marxismo, se empenham, através de um discurso confusionista, — imitando o que aconteceu na Itália e está a ocorrer em França — se esforçam, repito, não para renovar, mas na pratica para dividir partidos que não renunciaram ao marxismo-leninismo, criando condições para o lançamento de pontes que levem à sua descaracterização e posterior assimilação pelo sistema dominante.

Portugal é, no momento, exemplo desse fenómeno político como palco de um espectáculo no qual não faltam cenas de estridências shakespeareanas, que os revolucionários de outros países, por desinformação, acompanham mal.

Modernas caricaturas dos austro-marxistas do começo do século, os encenadores portugueses da peça em exibição (não me refiro aos militantes que são arrastados e confundidos pela sua pregação) têm de comum com os Adler, os Bauer e os Renner — sem o seu talento, cultura, desambição pessoal e sentido da ética política — a aceitação inconfessada da ordem capitalista, a recusa de identificar no povo o sujeito da historia e o temor mal consciencializado da intervenção das massas rumo a rupturas (embora distantes) que abalem os alicerces da engrenagem capitalista. Não são marxistas esses dirigentes com rotulo de «renovadores». Nunca foram comunistas. Não é o cartão de um partido que faz o dirigente revolucionário, sequer a passagem pela Comissão Política do seu Comité Central.

É minha convicção que aquilo que está em discussão nestas semanas no Partido Comunista Português merece ser acompanhado com atenção pelos partidos, organizações e movimentos de esquerda de todo o mundo.


Notas de rodapé:

(1) Leon Trotski, Mi Vida, pags 217 a 225, Compañia General de Ediciones SA, México, 1960. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021