
I
Adeus Mãe! Adeus Pai! Adeus amigos!
Parto!
Vou de viagem até não sei onde,
Como de todas as viagens se diz
Posso voltar ou não.
Tudo pode acontecer
E eu não sou homem que tema acontecimentos
Eu vivo!
E viver é já por si acontecer,
Mergulhar em acontecimentos,
Forjar acontecimentos:
Viver!
Esta casa não é mais o meu lar:
É o desejo de o ter em breve, apenas.
É apenas o sonho de regresso no futuro,
E viver,
Sendo acontecer, é uma forja de futuro.
Hei-de voltar, portanto!
Ninguém fale em morte.
A morte é um outro acontecimento,
Sem dúvida cruel
Mas inevitável na vida.
Prefiro morrer como normal acontecimento
Da vida que escolho ao partir
Que viver morto no mar de acontecimentos
Que geram vida e futuro.
Antes viver,
Mesmo a própria morte,
Que morrer vivendo!
Levo comigo duas malas:
Roupas
— umas novas compradas há pedaço
Outras já usadas.
Tal como eu:
Parte novo
— a parte que me resta viver,
Parte experimentado
— breves anos de acontecimentos-lições
Com as respectivas e sucessivas correcções de erros
E indecisões na gramática da vida
Fica todo um mundo de recordações:
O amor suave e sofredor da Mãe
A amizade ríspida e muda do Pai,
Um gato que salvei da morte
E faz ron-ron nas minhas mãos,
Amigos
E livros,
Muitos livros que ajuntei soldo a soldo
Para aumentar meu património
De saber e experiência
No duro e temível e belo acontecimento
Que é viver.
Parto com tudo isto:
Vou bem acompanhado,
E tudo aquilo que fica só,
Entregue ao dia-a-dia do isolamento
Imposto a todos e a tudo,
Viver nesta viagem,
É cuidar de tudo o que é querido
Sem o ver
É sentir que se afaga o rosto
Duma multidão de oito milhões
Com um só rosto
— o da Mãe!
É amar!
Viver!
Adeus!
Vou partir para o ponto de chegada.
Olhai bem para lá.
Fazei também por lá chegar em breve,
Que eu já lá estou à vossa espera,
Acenando ternamente,
Envolto em presença ou ausência,
Mas lá, certamente,
Vivo!
II
A caminho do futuro alcancei a primeira paragem. Simples apeadeiro na via-férrea de disciplina e compreensão. E entrei para a “sala de espera“... aguardando novo rumo...
Para já, perdi o nome. Chamo-me Franco e quero ser Bravo. O cartão de visita que não mostro diz ser agente técnico, vigiar a montagem de máquinas numa oficina dos arredores e estar à espera da chegada de um engenheiro amigo, que me contratou e anda pela Alemanha em viagem de estudo...
À volta da sala de espera um pequeno mundo de mentiras se forma.
O meu lar é agora este triste quarto interior e escuro, com um rijo colchão no leito, quatro tábuas cobertas de chita de ramagens a fazer de guarda-fatos e uma mesa com duas gavetinhas. Na mesinha de cabeceira repousa um enegrecido Cristo numa concha marinha crucificado – resto da consolação de um náufrago que me passou às mãos para dar “aparência“, mas consegue, apesar disso, dar-me a presença da Mãe, que o herdou de família ao criar o lar em que nasci.
Aqui vive Franco com o seu bigode novo, aguardando novos caminhos, arquitectando uma vida normal que não tem, para contar à mesa a outro hóspede, que comigo reparte as gentilezas do interesse da dona da casa e da sua criada – dama de companhia – toda a existência humana deste casarão a cair aos bocados...
Aqui aguardo e confio, minto e vigio...
Está calor.
Dias lindos de um Outono que se avizinha na plenitude da sua beleza. E enquanto uns se dirigem, revoltados por anos sempre iguais de indiferença às suas aspirações, para os ofícios e empregos, e outros se encaminham para as praias, a gozar ainda no oceano prazeres que os rendimentos lhes oferecem, vou eu em busca de uma árvore enorme que encontrei algures, da sua sombra amiga e companheira, cúmplice das leituras em que vou gastando e ganhando o tempo...
Filosofia, Literatura, História, Poesia... continuam a ser fiéis amizades que alcancei na vida de ontem. E acarinham-me, e amparam-me, e sustentam a minha dificuldade em aguardar nesta “sala de espera“ em que me encontro as “ligações“ necessárias para a nova caminhada...
À noite, no quarto, depois de despejadas à mesa do jantar a série diária de mentiras abro enfim o tesouro marxista das verdades, guardado a cadeado numa das malas. E já não sei se aguardo, se caminho.
Caminho já!
III
Eu a pensar que estava a construir um pequeno mundo de mentiras nesta espera obrigatória do dia verdadeiro de amanhã e afinal apenas acabei de entrar e integrar-me numa mansão onde a mentira impera...
A dona da casa disse-me ser casada. Que o marido se deixara enlouquecer por uma rapariga nova e terminara por sair de casa. Ela esperou-o uns tempos, foi pondo o que melhor tinha no “prego“ e, finalmente, para poder subsistir, vira-se forçada a alugar dois quartos com pensão.
A verdade é que nunca foi casada. E os hóspedes não são mais que as hipóteses de novos “matrimónios“, as cartas em que joga na mira da sorte grande, tão grande como a primeira, que lhe saiu – tinha ela dezoito anos, os seios como duas metades de apetitosa laranja, uns olhos negros e fundos como o mar, um abraço capaz de endoidecer o Mundo...
Essa “sorte grande“ chamava-se gerente de uma fábrica e dera-lhe vestidos, casacos de peles, jóias, viagens por Madrid, Paris e Londres, criadas, maquilhagens... agora com quarenta anos é uma mulher bela ainda, mas os olhos já não afogam – são antes o espelho que reflecte a imagem duma jovem de singular beleza que se afogou, ela sim, na vida cor-de-rosa que um artificialismo sexual lhe oferecera.
E eu sou para ela uma carta mal jogada, uma aposta perdida, um contratempo que só tem a vantagem de ter entregue 750 escudos pelo quarto e pela comida. De resto... contingências de anúncios — vem quem calha e não quem se deseja...!
Já a outra é diferente... até apostava que ia sair premiada!
Este valete diz ser solteiro. Que alugou este quarto porque os donos da casa onde está ainda até ao fim do mês vão mudar-se para mais longe do seu emprego. Então, este, mesmo ao pé dele, veio a calhar...
Tem automóvel, terras na terra, colheitas fartas e vai nos quarenta e tal. É guarda-livros de uma série de lojecas, e muito boa pessoa, muito sério, muito bem-educado....
No fundo é outra máscara do gerente da fábrica que trouxe a virgem até hospedeira. Só não se alarga tanto na carteira, quer tudo barato. Até porque é como aqueles fiéis de Baco, incorrigíveis que dizem querer emendar-se e passam a provar apenas os vinhos: de prova em prova... é certa a borracheira.
Também este deita as suas vistas para vários lados ao mesmo tempo, de “prova em prova“, quando dá por isso tem três quartos alugados onde mete diferentes amantes que é preciso sustentar até esquecer.
Agora tem duas, que já sabem uma da outra e se uniram contra ele, vindo informar aqui a dona desta casa que ele já não lhes entrega dinheiro há 2 meses e que, portanto, se acautele. Era o que ela queria saber! Cansado das outras, era a altura de lançar a rede àquele solteirão!
Desde aí apenas tenho as cortesias mais cerimoniosas e para ele vão indo em crescendo umas certas liberdades e mimos que ele retribui, como pessoa bem-educada que é, com favores de automóvel e convites para o cinema...
Finalmente, numa hora de mais intimidade, confessou-me que a hospedeira é uma “grande“ mulher, uma “boa“ mulher, uma mulher que apetece!... Mas deve custar muito caro e que não é para ele. Aliás a casa tem falta de comodidades e não lhe serve; no fim do mês sai daqui. Mas nada lhe diz porque... entretanto, se puder aproveitar alguma coisa... e para não ser só ele, foi acrescentando que a criada andava louquinha por mim e que, embora não fosse “grande coisa“, o melhor era eu perder certa fria respeitabilidade habitual e amenizar assim as minhas noites de homem solteiro...
De facto, a criada tudo tem feito para me atrair: olhinhos, café na cama com muito carinhos, certos cuidados, certos trejeitos, algumas meias-frases e muitos sorrisos. E não sendo uma sombra da patroa é uma jovem! Depois, para não ferir susceptibilidades de classe, a Patroa vai dizendo que ela não é uma criada, mas sim uma “velha“ amiga que lhe veio fazer companhia ao saber da sua infelicidade com o marido...
Mas há dias entrei, à noite, inesperadamente em casa, e verifiquei que dama de companhia era aqui sinónimo de prostituta, dama que necessita da companhia de homens pagantes... A porta do seu quarto estava aberta e pude ver na sua cama um rapagão de bigode e cabelos negros, mas de cara dura e pouco simpático, e, ao caminhar pelo corredor, cruzei-me com ela, toda vaporosa, em camisa de noite, vinda do quarto de banho...
Afinal é outro género de caça ao homem, de chamariz à própria dona da casa, o complemento do papel do anúncio de quartos com pensão...
Enfim, a mentira domina tudo e todos nesta casa. E só eu afinal minto com boas intenções, com sacrifício, só eu fecho olhos e ouvidos, domino instintos e sentidos com todo o meu ser virado à certa execução da minha tarefa de aguardar, vigilante, as tarefas que me estão dedicadas e visam combater a mentira, onde quer que surja e sob qualquer que seja a forma.
IV
Caminho, de facto! Até porque já tenho outras tarefas a cumprir. Terminou assim o meu isolamento. Agora encontro-me regularmente com alguns camaradas e falo e distribuo abertamente as verdades que os mestres e a vida me ensinaram. Assim afogo as mentiras que as mesmas horas de todos os dias “sirvo“ à mesa, a acompanhar uma refeição sempre igual... e entretanto procuro novo lar.
Sim, porque caminhar é, agora, também, fazer uso intenso de todos os meus sentidos – olhos e ouvidos destacando-se como atentos e vigilantes divisadores do que me cerca: dos bons e dos maus encontros, das boas e das más companhias, das boas e das más conversas, do simples, natural e sadio e do complicado, estranho e doentio, do útil e do inútil, do que me apraz mesmo difícil e correspondendo a sacrifício do que me desagrada mesmo sendo agradável e fácil.
Sendo assim, era inevitável – eu tinha que me mudar!
O tempo livre — e ainda é muito — passo-o agora, numa parte, subindo e descendo escadas, abrindo portas e janelas, vendo quartos de casas em zonas previamente delimitadas e, noutra parte, ainda no campo, lendo e estudando, tirando notas, apontando observações, esquematizando encontros, pensando nos meus e versejando...