O Que Aprendi com o Estudo do Que Fazer?
(Análise à Minha Actuação)

Francisco Martins Rodrigues

195?


Observação: In IANTT, TCL, 30º JC, Processo 15888/57, 11.º vol., fls 553.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão. Seleção de João Madeira. Editora Ela por Ela e Abrente. Lisboa, março de 2015. Págs: 35-37

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de reprodução:© Editora Ela por Ela. Transcrição gentilmente autorizada por Ana Barradas (Ela por Ela).


Capa do livro

— Na actividade legal, tanto eu como outros elementos manifestávamos a nossa subestimação da classe operária, não encontrando nunca quadros operários “preparados“ para serem promovidos. Por fim, forçados a admitir que isto era errado, passámos a afirmar (sem estarmos bem convencidos que esses quadros existiam), e passámos a chamá-los a tarefas de responsabilidade, mas sem fazer a menor ideia de como deviam ser ajudados. Umas vezes, impúnhamos a esses quadros os métodos de trabalho errados que predominavam entre nós (métodos burocráticos), falta de crítica, muita conversa e poucas obras, outras vezes reverenciávamos esses quadros e víamos grandes qualidades até nos seus próprios defeitos. O resultado era matemático: ao fim de pouco tempo, os quadros operários promovidos, que tinham dado boas provas no passado, começavam ou a inchar e a envaidecer-se, ou a cair no desespero e a considerar-se incapazes; todos eles estagnavam devido à mentalidade pequeno-burguesa “protectora“ com que eram rodeados.

— A falta de acções concretas nos sectores que eu então controlava era um resultado directo da minha descrença nos quadros que controlava. A falta de energia e a desorientação de muitos quadros sob meu controle eram os sintomas por que se manifestava a minha própria falta de energia e desorientação. Considerando em cada momento como “desejável“ aquilo que era “possível“ e como “possível“ aquilo que não exigia um esforço aos quadros, eu lançava-os na confusão, fazia estagnar o movimento.

— A posição contemplativa é o que caracterizou até à data a minha atitude perante os quadros. Agarrando-me aos princípios justos de que “os quadros se desenvolvem a pouco e pouco“, que “é preciso ser paciente“, etc., eu arranjava na prática justificações para “não lutar“ contra as deficiências dos quadros. Esta “linha do menor esforço“ conduzia à inércia e à estagnação.

— É verdade que critiquei muitas vezes deficiências reais na direcção da luta pela paz e da luta política. Mas por detrás de tudo isso estava a minha descrença na possibilidade de mobilizar as massas para estas lutas, estava a minha tendência para recuar para as lutas meramente económicas, e, sendo possível, recuar ainda para as actividades culturais, desportivas, etc. Na prática, a minha actividade de “direcção“ consistia em fazer-me eco dos elementos mais atrasados, mais receosos.

— Cheguei mesmo a cair numa concepção de “oposição de interesses“ entre os dirigentes e as massas. Raciocínios meus dessa altura: “É tudo muito bonito, falar em lutas a torto e a direito, mas as massas é que sofrem os golpes do inimigo, as massas é que se expõem.“

— Isto nascia de um verdadeiro espírito adulador em relação às camadas mais atrasadas da classe operária. Inconscientemente, era guiado por uma preocupação demagógica de “cair nas boas graças“ da massa e daí que erigisse em qualidades todos os defeitos, todos os aspectos mais atrasados dos elementos operários. Esta atitude mostra bem o retrato que elementos como eu, de origem intelectual pequeno-burguesa, fazemos da classe operária: porque no fundo a consideramos inconsciente e atrasada, porque descremos da sua capacidade dirigente, nós tomamos como elementos “típicos“ os seus elementos mais atrasados.

— Ao falar em “ir às massas“, “ouvir as massas“, “aprender com as massas“, eu deformava estas noções ao meu jeito e traduzia-as assim: ir a reboque das massas.

— Como Lenine cita, nós também coleccionávamos cuidadosamente os inquéritos às fábricas, fazíamos listas de salários, das categorias e das secções. Pode dizer-se que o essencial do nosso esforço era arrancar aos operários um relatório. Agarrávamo-nos a este relatório como uma fórmula mágica e tínhamos a crença que daqui nasceria a luta de massas. Não compreendíamos que tínhamos uma acção dirigente a desempenhar, que o nosso papel não podia ser rebaixado ao ponto de aguardarmos passivamente que as massas tirassem conclusões e se lançassem na luta.

— Como se liga este oportunismo seguidista com as soluções sectárias que invariavelmente dávamos ao nosso trabalho? Ao sermos empurrados para a acção, como não confiávamos nas massas, nós só víamos como solução as tarefas fechadas que um grupo de “elite“ se dispunha a fazer. A minha actuação caracteriza-se assim pelo célebre movimento do pêndulo: ou ir junto das massas e ficar inerte, admirando os seus elementos mais atrasados, pedindo-lhes “o menor esforço possível“; ou lançar-me na acção prática e então confiar quase exclusivamente em mim próprio e num pequeno grupo, agir desligado das massas. Balançava assim da agitação sectária à inércia oportunista.

— O que houve de mais positivo na minha actuação desse período (a imprensa), reflecte ao mesmo tempo os meus aspectos negativos: colocado à frente de organizações, quase só encontrava como acção prática a desenvolver aquela que dependia exclusivamente de mim próprio, e assim cheguei ao ponto de redigir a imprensa, de a imprimir e de a distribuir. (Isto é um bocado caricatura mas chegou a dar-se).

— O que havia por detrás dos meus entusiasmos em “ir junto da base“, “compreender as massas“, “não termos a presunção de querer dirigir tudo“, etc.? Havia a tendência anárquica do pequeno-burguês que repele a responsabilidade, a disciplina, a organização do Partido, para impor mais facilmente a sua “superioridade“.

— Em resumo, em vez de me ver como membro de uma vanguarda saída da classe operária e actuando junto dela, eu tendia para me ver como membro de uma elite superior que “desce“ até à classe operária e se mistura no seu seio, não para a elevar, não para a conduzir, mas para “reinar“, para ser reverenciada pela sua capacidade “superior“.

— Como se explica que estes defeitos se agravassem nos últimos anos? É que tive uma compreensão errada do que significa vir ao P.: em vez de ver as responsabilidades a dobrar, vi a “promoção“, passei a considerar-me “mais importante“. Comecei a abandonar a intransigência para com os meus defeitos e fui descaindo gradualmente para a satisfação e a auto-suficiência, fui encontrando justificações para todas as falhas, para todas as cedências, para todos os erros.

— Habituado às dificuldades da vida legal, encarei inconscientemente a resolução dos meus problemas que o P. me proporcionou (casamento, saúde, instalação) mais como “benefícios“ do que como meios que eu devia pôr ao serviço da luta. Este foi outro factor do meu amolecimento.

— No embate com as tendências oportunistas de vários camaradas intelectuais, a minha posição fraquejou e acabou por esboroar-se. As minhas raízes pequeno-burguesas levaram- -me a submeter-me à “superioridade dos intelectuais“ e foi essa a razão de eu encontrar desculpas para todas as suas deficiências. Até em discussões com políticos burgueses intelectuais eu manifestei esse espírito de submissão que me levou a não defender da melhor maneira os interesses do P.

— Outro resultado desta situação era o agarrar-me cada vez mais aos pormenores burocráticos, ao trabalho miudinho. Sentindo-me incapaz de dominar o trabalho vivo junto das massas, eu deslizava para um critério burocrático, não analisava a minha actuação baseando- me em resultados práticos mas baseando-me em resultados formais, em especulações gerais. Refugiava-me das dificuldades da prática na discussão “teórica“.

— A partir de certa altura, sentindo a contradição entre os fracos resultados práticos do meu trabalho e a elevada conta em que me tinha no campo “teórico“, e recusando-me a fazer uma revisão autocrítica a toda a minha actuação, passei a encontrar na crítica às deficiências do P. a justificação para as minhas deficiências. E se houve muito de objectivo nas críticas levantadas, é certo que todas elas iam imbuídas desse espírito de rebeldia e de justificação dos meus próprios erros.

— Assim, a tendência recente da minha parte para tornear a discussão e os choques de ideias era menos resultado de críticas por parte dos controleiros (embora isso também tenha influído), do que o sintoma de um sentimento de insegurança e de dúvida quanto à justeza das minhas ideias.

— No problema das relações com a minha companheira, embora estivesse precavido contra os desvios pequeno-burgueses, foram os que vieram ao de cima: a falta de crítica, as concessões, o medo de magoar, o esforço para a rodear de cuidados que a isolassem da dureza da luta, foram procedimentos com que amarrei Cc aos meus defeitos e não lhe permiti que progredisse, amparando-a na dureza da nossa luta, como ela precisava.

— Tenho procedido com Cc como com a maioria dos quadros: subestimando as suas possibilidades, temendo que não se aguentem com as dificuldades, acabo por me acamar com os defeitos, acabo por renunciar à luta. Quer dizer: em vez de puxar Cc para a frente, fui assimilado para trás por muitos dos seus aspectos retardatários.

— Porque vacilava já quanto à necessidade dos sacrifícios de Cc eu comecei também a sentir-me inseguro para realizar as tarefas do P., começaram a faltar-me as forças e comecei a desorientar-me. Isto mostra como eu estava a ser assimilado pelas vacilações e fraquezas de Cc.

— Por não querer confessar a mim próprio que sofria de tendências oportunistas, por me recusar a admitir sequer que pendia para a direita, eu tornava-me mais difícil o combate a essas tendências; foi só a partir do momento em que essas tendências me foram postas diante dos olhos que eu tive de reconhecê-las abertamente, foi só a partir daí que pude começar a rever todo o meu trabalho.

— A convivência colectiva diária que tive [nos] últimos dois meses com outros camaradas foi o factor fundamental que me permitiu fazer esta revisão. A vida colectiva profunda que aí fizemos obrigou cada um de nós a pôr a nu todos os seus defeitos, obrigou-nos a reconhecê-los e a lutar contra eles.

— Finalmente, penso que esta revisão é muito importante se me servir como ponto de partida para uma revisão na prática de toda a minha actuação. É nisso que me vou empenhar, certo do auxílio de todo o P.

Saudações fraternais