Expulsão dum membro do Comité Central do Partido Comunista Português

Francisco Martins Rodrigues (Campos)

1964


Transcrição e HTML: Fernando Araújo.

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Só para os militantes do Partido

Em fins de Fevereiro de 1964 foi comunicada a algumas organizações do Partido a expulsão do Comité Central dum seu membro, o camarada Campos. Transcrevemos alguns documentos relativos a esta expulsão.

Carta do camarada Campos ao Comité Central, de 16-12-63

Camaradas:

folha de rosto
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Durante a reunião de Agosto e através da discussão anterior que teve lugar, pudemos verificar como são profundas as divergências que nos separam quanto à linha do nosso Partido e quanto à interpretação do Marxismo-Leninismo; o decorrer da reunião de Agosto levou-me a compreender melhor a natureza dessas divergências nalguns aspectos que para mim ainda não estavam claros.

Ao tomar a decisão dr romper a disciplina do Partido e passar a agir com independência junto dos militantes levando as divergências ao seu conhecimento, não fui impulsionado por qualquer desejo de dividir o Partido, como podereis pensar, mas pelo desejo de atalhar a efectiva dispersão e enfraquecimento que se estão verificando nas fileiras do Partido. Ver na minha atitude o fruto de despeitos ou ambições pessoais seria completamente errado; considerá-la apenas como um reflexo da situação existente no movimento comunista internacional, seria ignorar os graves problemas que hoje defrontam o nosso Partido.

Eu penso que, apesar as profundas divergências que nos separam continuamos ter de comum o desejo de ser fiéis ao Marxismo-Leninismo e de conduzirmos o nosso proletariado e o nosso povo ao socialismo e ao comunismo. Por isso, será possível vencer as actuais divergências sem que daí venham consequências irreparáveis para o Partido. Para que isso se consiga proponho:

Desde que a Direcção do Partido admitisse a vantagem deste debate, poderia estabelecer a forma de o conduzir, de modo a que não trouxesse prejuízos à actividade partidária; se na reunião mencionada se chegasse à conclusão que havia rectificações a fazer, poderia encontrar-se também a forma adequada de corrigir os erros, causando o mínimo de abalo nas fileiras do Partido. Creio que o debate e a reunião que proponho dariam num curto prazo um vigoroso impulso ao nosso Partido, restabelecendo a unidade ideológica na sua direcção e nas suas fileiras, e conduzindo assim o nosso movimento a novas vitórias, como todos desejamos.

Fraternais saudações comunistas

Campos

(Esta carta não teve resposta).

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Carta do Camarada Campos ao Comité Central, em 13-1-64

Camaradas:

Acerca do vosso pedido para que devolva os haveres do Partido em meu poder, tenho a comunicar-vos que isso não me é possível neste momento, mas que o farei logo que possível. Esses haveres sãos uma máquina de escrever; materiais do Partido; um saco de viagem; o meu salário de Dezembro; um documento; algumas estatísticas.

Saudações

Campos

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Resolução do Comité Central, distribuida em Fevereiro de 1964, com data de Dezembro de 1963

O Comité Central do Partido Comunista Português resolve expulsar do Comité Central o camarada X pelos seguintes factos;

  1. deserção das tarefas que lhe haviam sido confiadas e recusa a cumprir quaisquer tarefas que lhe sejam atribuídas;
  2. abandono da instalação clandestina em que se encontrava e sua mudança para local que oculta ao Comité Central, com graves prejuízos para a defesa do Partido no sector respectivo;
  3. apropriação indevida de dinheiro do Partido;
  4. apropriação indevida de documentos do Partido.

Esta resolução deve ser comunicada aos membros do Partido com os quais o camarada X tinha nos últimos tempos contacto regular e a todos os funcionários do Partido. Todos esses camaradas devem ser esclarecidos que esta sanção é determinada apenas pelos factos referidos e não por discordâncias de carácter político, que qualquer membro do Partido pode manifestar dentro dos princípios do Centralismo democrático.

O comité Central do P.C.P.

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Carta do camarada Campos ao Comité Central, em 10-3-64

Camaradas:

Foi-me entregue em 28 de Fevereiro a resolução datada de Dezembro que me expulsa do Comité Central. O Partido vai ser informado de que sou expulso do C.C. por indisciplina, deserção e roubo, “e não por discordâncias de carácter político”. Quanto a mim, a vossa resolução, apoiando-se aparentemente nos factos, não passa de uma tentativa para desnaturar os factos e ocultar ao Partido os motivos reais da minha expulsão do Comité Central.

É verdade que eu rompi a disciplina do Partido e abandonei as tarefas que me estavam confiadas. Vós expulsais-me por isso do C.C.; mas deveis ter a coragem de dizer ao Partido por que motivo um membro do C.C., militante do Partido desde 1952, funcionário do Partido na clandestinidade desde 1954, que sempre foi disciplinado, que sempre cumpriu os seus deveres de revolucionário perante o inimigo, se transforma subitamente num indisciplinado e num desertor.

Eu vou explicar-vos porquê. Até à reunião de Agosto de 1963 do Comité Central, eu acreditei na possibilidade de se combaterem e corrigirem, mantendo o respeito pela disciplina, as tendências e desvios oportunistas cada vez mais graves de que me ia apercebendo na direcção do Partido. Depois da reunião de Agosto, eu cheguei à conclusão de que era impossível, nas condições actuais, esperar uma correcção dos erros oportunistas por parte do Comité Central. Punham-se-me assim duas alternativas: ou submeter-me à disciplina e continuar a luta no âmbito do C.C. (o que depois da reunião de Agosto, era uma posição platónica, sem qualquer valor prático) ou romper efectivamente com a disciplina para tentar por todos os meios opor-me ao avanço do oportunismo que domina a direcção do nosso Partido. É evidente que eu não tinha outra escolha senão a que fiz.

Continuar a acatar a disciplina e a desempenhar as minhas tarefas de membro do C.C. seria, quanto a mim, colaborar numa empresa revisionista que prejudica os interesses superiores do Partido. Eu não estou disposto a fazê-lo; quero afirmá-lo claramente para que tomeis todas as resoluções que vos pareçam necessárias. Foram precisamente as minhas convicções de comunista que me levaram a desrespeitar a disciplina; esta foi a única posição coerente e de princípios que eu podia tomar, porque a disciplina e a unidade do Partido devem ser uma arma ao serviço do triunfo das ideias marxistas-leninistas e não uma arma para facilitar o triunfo das ideias revisionistas no seio do partido do proletariado. Vós expulsais do Comité Central um militante que foi indisciplinado; seria bom que começásseis por expulsar todos aqueles que abandonam o marxismo-leninismo e conduzem o Partido numa via errada.

É falso que eu tenha roubado o Partido, Quando em princípio de Dezembro resolvi mudar de instalação e levar ao conhecimento dos militantes as divergências existentes no Comité Central, trouxe comigo alguns haveres do Partido que me estavam distribuídos; em 13 de Janeiro escrevi-vos uma carta afirmando a minha disposição de devolver todos esses haveres logo que me fosse possível (esta carta foi recebida por um membro do Comité Central entre 15 e 20 de Janeiro) Vós preferis “ignorar” tudo isto (e nesse sentido datais de Dezembro uma resolução que é posterior) para poder melhor desnaturar os factos e apresentar-me ao Partido como um ladrão.

Só posso concluir que a dificuldade em enfrentardes a luta de princípios que se está travando no seio do Partido vos leva a recorrer a deturpações e calunias para tentar desviar a discussão dos verdadeiros problemas. E é só isso que pode explicar que, em reuniões do Partido, se esteja a procurar denegrir-me junto dos militantes, chegando ao ponto de aludir aos meus “desvios oportunistas” do passado. Que desvios foram esses? A que vos referis? Se estais tão interessados em discutir com o Partido a minha actividade de militante, em vez de discutir as divergências de princípios existentes, então só tendes um procedimento honesto a seguir, que é apresentar a minha biografia de militante e as cartas e documentos que venho dirigindo há anos ao Comité Central. Por mim, não temo o julgamento do Partido.

É evidente que o conteúdo da vossa resolução e das discussões que estão a ser feitas iludirá momentaneamente muitos militantes do Partido sobre as causas reais da minha expulsão do Comité Central; é natural também que consigais intimidar aqueles outros militantes que, conhecendo a situação, vêm insistindo por um largo debate político nas fileiras do Partido. O Comité Central conseguirá assim o seu objectivo de fazer aceitar a minha expulsão do C.C. Mas qual pode ser o resultado final destes procedimento? Ele só pode ser o desprestígio do C.C. perante o Partido, o agravamento das dificuldades existentes no Partido, o enfraquecimento da luta antifascista, São esses os vossos objectivos?

Pela minha parte, consciente do que o que está em jogo não é “o meu caso” mas os próprios princípios do Partido, tenciono manter-me fora do terreno dos insultos e calúnias contra camaradas e continuar a lutar por todos os meios para que sejam esclarecidos as graves questões de princípios que nos separam e que estão na base da minha expulsão do Comité Central. Quais são essas questões? Relembro-as uma vez mais, para vos fazer sentir, se possível, a gravidade dos problemas que defrontam hoje o nosso Partido.

Primeira. Deve o Partido continuar a fazer da unidade ideológica e política antifascista a base da sua actividade, desprezar o estudo da luta de classes e do carácter da revolução, comprometer a independência ideológica dos comunistas, depositar as suas esperanças nos acordos com a burguesia antifascista; ou deve antes o Partido estudar e definir as tarefas da revolução democrática-popular como base científica de toda a sua actividade, proclamar o objectivo da instauração dum poder popular, fazer a crítica de princípios ao, movimento burguês antifascista e concentrar o seu esforço na iniciativa revolucionária das massas trabalhadoras como base da unidade nacional antifascista?

Segunda. Deve o Partido continuar a furtar-se às tarefas da preparação prática da insurreição popular antifascista, continuar a enfraquecer a sua ligação com a vanguarda operária e camponesa acusada de “aventureirismo”, tender para o imobilismo político e para a dependência do movimento burguês; ou deve antes o Partido estudar e levar à prática as medidas de preparação da insurreição como principal tarefa política actual, conduzir os trabalhadores e patriotas ao desencadeamento da acção armada contra a ditadura, arrancar a iniciativa ao movimento burguês antifascista?

Terceira. Deve o Partido continuar na via dos ataques caluniosos ao Partido Comunista da China e outros partidos que se mantêm fieis ao marxismo-leninismo, da ocultação e deturpação dos reais problemas em debate no movimento comunista, da reabilitação do grupo revisionista de Tito, da colaboração na campanha revisionista internacional; ou deve antes o Partido abster-se dos ataques a partidos irmãos, respeitar as declarações comuns de 1937 e 1960 que subscreveu, defender o marxismo-leninismo como base da unidade do campo socialista, do movimento comunista internacional e do nosso próprio partido?

Porque não defendeis a vossa linha contra estas criticas que vêm sendo feitas, não só por mim, mas por centenas de militantes? Porque não demonstrais, com base em argumentos sérios, em que consiste o “dogmatismo”, o “sectarismo" e o “desespero” daqueles que vos criticam? Porque não organizais, como vos foi proposto, um profundo debate no Partido sobre estas questões vitais que afligem hoje os comunistas portugueses?

Mais tarde ou mais cedo, o Comité Central será forçado a enfrentar as divergências, será forçado a rever as suas posições e a criticar as concepções oportunistas, o Partido e o povo só terão a ganhar se o C.C. tiver a coragem e firmeza de princípios de o fazer desde já. Essa é actualmente a tarefa mais decisiva para o êxito da luta antifascista e para a marcha da revolução portuguesa.

Se o Comité Central fugir às suas obrigações perante o Partido, se continuar a pretender resolver com expulsões, insultos e calúnias uma questão de princípios, podereis estar certos de que surgirão comunistas que tomarão sobre si a tarefa da defesa do marxismo-leninismo, da defesa do internacionalismo proletário e da condução do movimento revolucionário português, sejam quais forem as dificuldades que surjam nesse caminho.

Comunico-vos que resolvi dar conhecimento desta carta, assim como das minhas cartas anteriores e da vossa resolução aos militantes do Partido, para não permitir que se deturpem os factos.

Saudações comunistas

Campos


Inclusão: 22/08/2022