A Unidade em 1944-49. Uma Experiência Actual

Francisco Martins Rodrigues

5, Julho de 1965


Primeira publicação: in, Revolução Popular. Edição Completa 1964-65 (fac-simile), Edições Voz do Povo, pp. 122-133.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão. Seleção de João Madeira. Editora Ela por Ela e Abrente. Lisboa, março de 2015. Págs: 145-156.

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de reprodução:© Editora Ela por Ela. Transcrição gentilmente autorizada por Ana Barradas (Ela por Ela).


Capa do livro

A unidade de todas as forças anti-salazaristas continua a ser a pedra basilar de toda a actividade política dos dirigentes do PCP, o princípio e o fim da sua linha.

Aproveitando-se da grande importância que adquire o problema da aliança antifascista na actual etapa da revolução portuguesa, Álvaro Cunhal e os seus companheiros reformistas começaram desde há 20 anos a servir-se desta questão para abandonarem as tarefas revolucionárias do Partido e utilizarem a classe operária ao serviço duma recomposição do regime burguês.

Em vez de partirem do estudo das classes a da luta de classes em Portugal, da definição do carácter da revolução, da luta pela hegemonia do proletariado e pela conquista do poder político, para daí deduzir uma política revolucionária de alianças, os reformistas definem todas as suas posições teóricas e práticas a partir da exigência duma Unidade utópica e esterilizadora entre os trabalhadores e a burguesia anti-salazarista, e com isso enfraquecem seriamente o Partido e a luta antifascista.

Para melhor defender o seu oportunismo, Álvaro Cunhal procura fazer crer que não há outra alternativa senão a Unidade ou o sectarismo, e atribui à Unidade todos os êxitos da luta popular antifascista nos últimos 20 anos; é uma deformação grosseira dos factos que é preciso desmascarar.

Nos últimos tempos, a política da Unidade tem sofrido graves reveses. Dilacerado entre a deslocação para a direita dos grupos da burguesia liberal, que procuram a todo o preço entender-se com sectores da grande burguesia e do imperialismo para ajudar a modernizar o regime, e a deslocação das massas trabalhadoras para a esquerda, para posições revolucionárias, o oportunismo de Álvaro Cunhal atravessa uma crise de grandes proporções, que a cisão na FPLN veio tornar patente. As condições são cada vez menos favoráveis para a política de conciliação e de compromissos em que se apoia a Unidade e forçam cada agrupamento a definir-se num sentido revolucionário ou num sentido reformista.

Nos próximos meses, as lutas populares contra as burlas eleitorais de Junho e Outubro vão proporcionar uma boa oportunidade para levar mais longe a iniciativa revolucionária dos trabalhadores, anular as manobras dos políticos liberais e enterrar de vez a política conciliadora da Unidade. Os comunistas devem estar preparados para arrancarem o movimento popular à influência da burguesia e dos dirigentes oportunistas, explicando aos trabalhadores a necessidade duma linha independente, mostrando-lhes que a unidade a todo o preço só pode conduzir à derrota. O exemplo de 1944-49, que tratamos neste artigo, é bastante instrutivo.

A CRISE DE 1945

Em fins de 1943 começou a desenhar-se uma profunda viragem na situação política nacional. O proletariado, que desde 1941 vinha travando uma luta difícil, quase completamente isolado perante a ditadura, começou a encontrar-se secundado por um largo movimento democrático que lançou sucessivamente na batalha política a intelectualidade, a pequena burguesia radical, sectores da burguesia liberal, a juventude, certas camadas do campesinato vastas massas da população. Começou a tornar-se claro que terminara a difícil etapa de lutas defensivas que, de 1926 a 1937, marcaram a ascensão do fascismo, e que se entrava numa etapa de ofensiva popular, ligada à evolução da situação internacional.

O Partido Comunista, que era o único partido em luta contra a ditadura, encontrou-se rodeado de diversos agrupamentos políticos da pequena e média burguesia; em breve surgiu o poderoso movimento nacional antifascista, apoiado no MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista) e depois no MUD (Movimento de Unidade Democrática), levando largos sectores da população a levantarem-se unidos por reivindicações democráticas comuns e a arrancarem à ditadura uma série de concessões, criando uma plataforma de luta e de organização muito mais larga do que no passado.

Mas este amplo movimento era impulsionado por objectivos diversos, conjugava reivindicações de classe diferentes: ele resultava por um lado do poderoso impulso revolucionário que desde 1941 vinha tornando o proletariado uma força decisiva no país; as greves de Julho-Agosto de 1943 na região de Lisboa, envolvendo mais de 50.000 operários, e as manifestações e choques com a polícia que as acompanharam, impunham o proletariado como uma grande força com que todas as classes eram obrigadas a contar, e o Partido Comunista como um partido dirigente da luta antifascista; sujeitos a uma exploração e a uma opressão insuportáveis, exaltados pelos êxitos da União Soviética nos campos de batalha contra o fascismo, os operários, cujo número engrossara durante a guerra, voltavam-se para a perspectiva da revolução.

Ao mesmo tempo, o movimento democrático nascia das reivindicações que levantavam a pequena burguesia urbana, certos sectores da média burguesia e do campesinato, contra a ditadura dos monopólios, esforçando-se por arrancar-lhe concessões por afrouxar a pressão do aparelho corporativo, estatal e policial fascista. E ele atraía ainda vastas massas populares, lançadas na luta activa pela democracia e pela liberdade, arrastadas por uma onda de ilusões pequeno-burguesas numa vitória fácil e rápida sobre a ditadura, iludidas quanto ao verdadeiro carácter da vitória das “democracias ocidentais“ na guerra e esperando que a democracia lhes seria trazida do exterior.

A amplitude e a profundeza deste movimento abria ao Partido e à classe operária uma situação extremamente favorável, como ainda não se proporcionara desde 1926. A revolução portuguesa entrava numa fase de convulsões e de grandes movimentos de massas.

NASCIMENTO DO OPORTUNISMO

A complexidade deste amplo movimento de classes requeria do Partido uma política aberta e maleável, mas sobretudo uma clareza absoluta de perspectivas e uma firmeza inabalável de princípios, de modo a poder conduzir simultaneamente o movimento proletário revolucionário e o movimento democrático nacional pelos seus objectivos próprios, conjugando-os acertadamente, inserindo as tarefas imediatas da luta democrática na perspectiva estratégica da revolução socialista, assegurando por todos os meios a independência e a hegemonia do proletariado.

A direcção do Partido, apenas reorganizada em 1941 após uma longa fase de dispersão ideológica, esforçou-se no 1 ° Congresso Ilegal de 1943 por definir uma linha revolucionária ao movimento e por assegurar a hegemonia do proletariado e construir a aliança operária-camponesa; se o informe de Álvaro Cunhal ao Congresso mostrou que para a direcção do partido não estavam ainda inteiramente claras as tarefas e o carácter da revolução antifascista, isto não podia ainda então ser considerado um erro grave, dado que a experiência do movimento não pusera ainda a maioria desses problemas na prática e eles se mantinham como meras indicações teóricas e abstractas.

Mas à medida que o movimento de massas se desenvolve a partir de 1943 e a situação se torna mais complexa, vê-se que a direcção do Partido vacila nas suas posições anteriores e em vez de as completar com uma interpretação marxista das novas experiências, é atraída para uma posição oportunista que tende a apagar as tarefas dirigentes do proletariado, a desinteressar-se da perspectiva da revolução e a subordinar toda a actividade ao objectivo da Unidade com a burguesia, na esperança ilusória de assim proteger o Partido e apressar a queda da ditadura.

A expressão mais completa desta corrente oportunista foi a “política de transição“, então defendida por um largo grupo de dirigentes do Partido, entre os quais Júlio Fogaça, Pedro Soares e João Rodrigues. A “política de transição“ propunha a dissolução política do Partido no movimento antifascista para “facilitar“ a unidade dos oposicionistas e apressar a desagregação do campo inimigo (as propostas eram: ajudar o golpe militar, atrair os fascistas descontentes, tirar a foice e o martelo do cabeçalho do Avante, etc.); numa posição típica pequeno-burguesa, pretendia-se pôr o esforço principal na atracção das forças intermédias e na desagregação das forças inimigas e apagava-se o papel motor das forças revolucionárias, do proletariado e do seu Partido, transformados em forças auxiliares da burguesia na recomposição do Estado burguês. A “política de transição“ foi, no âmbito do nosso movimento revolucionário, a expressão da grande vaga reformista que assaltou os partidos comunistas no fim da guerra mundial (Browder, Tito, etc.).

Esta linha ultra-oportunista e liquidacionista foi rejeitada pelo 2.º Congresso Ilegal (1946), que manteve a linha do levantamento nacional e a existência autónoma do Partido. Mas Isto não impediu que a pressão da corrente oportunista levasse a linha do 2.º Congresso a enfermar ela própria de graves cedências reformistas. Tirando conclusões erradas da experiência de 1943-45; não aprofundando a crítica à “política de transição“, não elaborando uma plataforma revolucionária coerente, a direcção do Partido introduziu o oportunismo na linha do Partido duma forma mais esbatida, menos descarada que a da “transição“, mas mesmo assim extremamente grave, como os anos posteriores revelaram.

A LINHA DA UNIDADE

Os informes políticos de Álvaro Cunhal ao 2.° Congresso Ilegal e às reuniões do CC de Outubro de 1946 e Junho de 1947 expuseram desenvolvidamente esta nova linha. Nesses informes, "a unidade de todos os portugueses honrados contra a ditadura", a "unidade de todas as forças antifascistas", passa a constituir a directiva táctica suprema do Partido a que se subordinam todas as outras e de onde se deduzem todas as outras. Sob as palavras de ordem obsessivas "Aquilo que nos separa nada é comparado com o que nos une", "A unidade é a garantia da vitória", "A divisão seria a derrota", a direcção do Partido refunde toda a linha traçada no 1.º Congresso Ilegal e eleva a linha da unidade nacional à posição da linha geral do Partido, abandonando as tarefas de determinar os objectivos da revolução e de unir em torno delas as forças revolucionárias.

A luta áspera para assegurar a hegemonia do proletariado no movimento antifascista, a defesa da independência ideológica e a política do Partido, do proletariado e das massas populares perante a burguesia, a crítica de classe às correntes liberais e radicais – são apagadas sob o argumento então invocado de que “a libertação do país não pode ser obra dum partido ou duma classe“ e que “nada se conseguirá sem a mais larga união“. É evidente que isto significa uma renúncia implícita à tese da hegemonia do proletariado.

Em que se baseia o princípio da hegemonia do proletariado senão no reconhecimento! de que este dispõe de interesses revolucionários que lhe permitem tomar a direcção da luta antifascista, traçar-lhe uma linha revolucionária, arrastar atrás de si as outras classes? Por isso a linha do movimento antifascista não tem que ser determinada através da negociação e do regateio com a burguesia liberal, mas através do mais largo desenvolvimento da luta de massas numa perspectiva dirigida para a conquista do poder, utilizando a negociação e o regateio com a burguesia como formas auxiliares desse movimento de massas e não como cúpula dentro da qual ele deva ser metido.

As resoluções do 2.° Congresso Ilegal manifestam claramente o abandono das posições revolucionárias. Assim, essas resoluções:

  1. não caracterizam a ditadura de Salazar como ditadura da grande burguesia, não estudam as tarefas da revolução, não falam sequer em revolução nem na conquista do poder, limitam-se à perspectiva do derrubamento da ditadura;
  2. não indicam os aspectos essenciais da luta de classes no campo antifascista, não indicam explicitamente o papel dirigente do proletariado nem quais os aliados do proletariado na presente etapa, nem referem a disputa da hegemonia no campo antifascista entre o proletariado e a burguesia liberal;
  3. colocam a linha da unidade antifascista como linha táctica suprema a que deve ser subordinada toda a actividade do Partido.

O carácter oportunista e reformista destas resoluções é bem claro. Comparadas com a “Saudação e apelo ao Povo“ saída do 1.° Congresso Ilegal, elas tornam ainda mais claro o recuo efectuado; naquele documento, o 1.° Congresso dirigia-se às massas trabalhadoras, destacava audaciosamente o papel revolucionário do proletariado e do campesinato como “o seu mais poderoso aliado“, apelava para a iniciativa revolucionária das massas; nas resoluções do 2.° Congresso, pelo contrário, a tarefa política mais importante que se aponta ao Partido é “atrair ao MUNAF todos os anti-salazaristas, católicos, monárquicos, militares, os que se separam do fascismo“.

No informe político de A. Cunhal à reunião do CC de Outubro de 1946 está confirmado este desvio, ao assinalar-se que a unidade é “a tarefa fundamental do Partido“ e que será conseguida pelos seguintes meios: (citamos pela ordem em que vêm no informe)

  1. “esclarecer os democratas com habilidade e inteligência“;
  2. “fortalecer o MUNAF, a autoridade do Conselho Nacional (organismo dirigente onde estavam representados os agrupamentos antifascistas), a constituição de comités de unidade nacional e a modificação da sua composição social (isto é, transformá-los em organismos de enlace das várias forças políticas; adiante tratamos deste ponto);
  3. fortalecer o MUD;
  4. formar mais organismos de unidade, comissões sindicais, etc.
  5. alargar a unidade, sobretudo aos católicos;
  6. agir e levar as forças democráticas e as massas a agirem.

Por sua vez, o Informe de A. Cunhal “Unidade, garantia da vitória“, aprovado na reunião do Comité Central de Junho de 1947, é uma longa enumeração dos grupos políticos antifascistas existentes e da forma de o Partido chegar ao entendimento com eles. Repetindo obsessivamente que “a divisão seria a derrota“ e que “a quebra da unidade é o primeiro passo que o fascismo quer dar para o violento aniquilamento de toda a oposição“, o informe esbate o papel das lutas de massas, continua a desinteressar-se de qualquer perspectiva revolucionária para a conquista do poder e concentra os esforços do Partido na defesa da Unidade: “Unir é chamar à unidade portugueses honrados que nela não participam ainda. E porque assim é, devemos seguir uma política maleável e aberta, atraindo todos os que – republicanos ou monárquicos, religiosos ou não – desejem sinceramente que o povo português escolha o seu destino, não hostilizando nem amontoando dúvidas e suspeições sobre os que, ainda que tendo apoiado o fascismo ou participado na organização fascista, hoje desejem alinhar“, etc.

Como era inevitável, este descuramento da tarefa da coesão política e ideológica das forças revolucionárias, suplantada pela atracção das forças intermédias, paralisou a breve prazo a iniciativa revolucionária dos operários e do Partido e comprometeu irremediavelmente as perspectivas favoráveis que se haviam formado em 1943.

Indicamos a seguir alguns aspectos mais significativos na linha de abandonos e compromissos posta em prática nesse período pela direcção do Partido, e que estão patentes na imprensa do Partido.

A DECADÊNCIA DO MUNAF

A criação, em fins de 1943, do Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista, ilegal, foi o fruto da audaciosa iniciativa do Partido e abria perspectivas para servir de alicerce orgânico ao amplo movimento democrático nacional. O MUNAF comportava por um lado um Conselho Nacional, onde o Partido negociava acordos políticos com os grupos burgueses anti-salazariatas e, por outro lado, um conjunto de comités de unidade nacional (CUN), destinados a mobilizar unitariamente as massas populares pela base. O MUNAF oferecia grandes perspectivas; mas como a direcção do Partido não soube definir as relações entre o trabalho pelo topo e o trabalho pela base, de modo a libertar a iniciativa das massas e a anular a instabilidade da burguesia, ele tornou-se um travão à luta e entrou em rápida decadência, mesmo no período de maior actividade política de 1946-49.

O Partido defendeu erradamente que “o povo espera do Conselho Nacional uma acção verdadeiramente dirigente da luta nacional libertadora“ (Fevereiro de 1944), insistiu por todos os modos em chamar o Conselho a uma direcção que ele não podia assumir, delegou no Conselho uma tarefa que só ao Partido podia caber. Desta concepção resultou a viragem de Setembro de 1944 quanto aos CUN, viragem que teve as mais graves consequências: estes Comités, que inicialmente eram organismos políticos de base para a condução das lutas de massas numa base não-partidária, tornam-se a partir desta data comités de enlace entre as várias correntes antifascistas (um em cada localidade), submetidos directamente à autoridade do Conselho Nacional; operários e patrões passam assim a encontrar-se reunidos no mesmo comité, do que resulta a inevitável subordinação do proletariado à burguesia.

Esta grave concessão, feita possivelmente para comprar a continuação dos grupos burgueses no Conselho Nacional, liquidou toda a possibilidade de mobilização dos trabalhadores através do MUNAF, que passou a ser totalmente dominado pelo jogo tortuoso da burguesia.

Essa grave concessão, feita possivelmente para comprar a continuação dos grupos burgueses no Conselho Nacional, liquidou toda a possibilidade de mobilização dos trabalhadores através do MUNAF, que passou a ser totalmente dominado pelo jogo tortuoso da burguesia. E, apesar de se tornar evidente a gravidade da falta cometida, a direcção do Partido persistiu nela; em Janeiro de 1945, defendendo a linha “unitária“ quanto ao MUNAF, o Militante repele a sugestão de certos militantes para fazer novamente dos CUN organismos políticos dos trabalhadores, sob a alegação de que para isso já existem as comissões de unidade; ora, as comissões de unidade, criadas para conduzir a luta económica, nunca podiam, nem puderam assumir o papel de comités políticos clandestinos da classe operária, como é evidente.

Assim, enquanto a direcção do Partido defende obstinadamente a linha dos comités de enlace entre a burguesia e o proletariado, os CUN vão decaindo rapidamente, abandonados pelos políticos burgueses, que resolvem entrincheirar-se nas comissões legais do MUD, e abandonados pelos militantes do Partido, que se apercebem da sua ineficácia e a quem repugna a linha de colaboração de classe. Em Agosto de 1948, o Militante constatava o resultado que era de esperar: o trabalho de unidade com as outras correntes antifascistas está a ser assegurado só pela direcção do Partido, as células desinteressam-se completamente dos CUN. A concepção oportunista da direcção do Partido tirou ao MUNAF as possibilidades de se transformar numa larga organização clandestina unitária de massas.

O MUDPARTIDO POLÍTICO DA BURGUESIA

As concepções erradas sobre a colaboração de classes contra a ditadura, sobre a aliança fraternal de “patrões e operários a lutar unidos na mesma trincheira“ (A. Cunhal, 1946), levou também a que o MUD, movimento legal democrático que o Partido ajudou a criar e apoiou com todas as suas forças, se tenha vindo a tornar um movimento controlado pela burguesia liberal.

Em 1944, as correntes liberais e radicais da burguesia tendiam irresistivelmente a criar os seus próprios partidos políticos, aproveitando as condições de afrouxamento da repressão conquistado pelo largo movimento de massas e pela conjuntura do fim da guerra; sucediam -se as tentativas de formação ou reconstituição de partidos republicanos, socialistas, católicos. Mas, partindo duma análise errada da luta de classes, a direcção do Partido, ao mesmo tempo que combatia e denunciava toda a tentativa de formação de partidos burgueses como uma “traição à unidade“, esforçava-se por integrar todas as forças anti-salazaristas numa ampla organização legal.

O MUD tomou assim a forma, não de uma vasta frente de diversos partidos e agrupamentos independentes, não de uma larga organização unitária de massas, dotada de suficiente autonomia e flexibilidade interna, mas dum verdadeiro partido, com uma estrutura acabada de organismos superiores e inferiores; na luta que se travou para dominar e orientar o MUD, os políticos burgueses conseguiram a breve prazo ocupar quase todas as posições na comissão central e nas comissões distritais, passando através delas a controlar o movimento de massas que se apoiava no MUD.

Durante três anos, assistiu-se assim a uma luta árdua e muitas vezes infrutífera dos trabalhadores, procurando desenvolver as acções democráticas apoiados nas comissões legais do MUD, enquanto os políticos burgueses, entrincheirados nas comissões dirigentes do movimento, o sujeitavam aos seus interesses tácticos, levavam os trabalhadores a sair “ordeiramente“ das sessões democráticas, impediam manifestações e comícios, desfaziam arbitrariamente as comissões operárias de base, combinavam golpes militares, entregavam as listas de assinaturas ao governo (1945), facilitando com o seu legalismo um largo trabalho de repressão – isto é, desorganizando objectivamente o movimento popular democrático cuja independência o Partido não soubera defender como devia.

A experiência mostrava de forma gritante que era preciso encontrar formas de organização política unitária de massas que escapassem ao controle da burguesia; mas a direcção do Partido, amarrada à sua linha da Unidade com a burguesia, persistiu até 1949 em empurrar os comunistas e os trabalhadores de vanguarda para as comissões de base do MUD. Mais: a direcção do Partido criticou severamente como manifestação de “sectarismo“ a resistência crescente dos comunistas e operários de vanguarda a uma orientação que os amarrava à tutela da burguesia; assim, em Abril de 1948, o Militante critica a “grave posição“ dos militantes operários que “dizem que os documentos do MUD não interessam“, que o que interessa não é o MUD e a unidade nacional mas “outra coisa“ e afirma veementemente que os camaradas e organizações que assim procedem “estão afogando o que é de mais sagrado para o nosso Partido e para o nosso povo, que é a unidade de todas as forças antifascistas contra a ditadura fascista de Salazar“.

É inegável que o legalismo e as ilusões nos políticos burgueses estavam largamente implantadas nas massas populares em 1944; mas isso era mais uma razão a impor um firme trabalho de esclarecimento e de independência por parte do Partido. A cegueira oportunista dos dirigentes do Partido levou ao enfraquecimento gradual do MUD e ao seu desaparecimento em 1949, quando os políticos burgueses se desinteressaram dele, uma vez esgotadas as possibilidades legais de actuação. A classe operária e o povo viram-se privados de tirar um verdadeiro proveito das possibilidades legais que se tinham aberto com o MUD.

O FRACASSO DOS GACS

Em Dezembro de 1944, o Partido lançava o apelo para a formação de “milhares de Grupos Anti-Fascistas de Combate (GACs)“. Esta directiva surgia na continuidade das greves e manifestações de 1942-44, correspondia ao sentimento que se formara em largas camadas de massas populares de que era preciso passar a formas de luta mais elevadas contra a ditadura. Tratava-se de uma palavra de ordem inteiramente justa que tendia a abrir o caminho à insurreição nacional.

Mas aqui também os dirigentes reformistas conseguiram anular as possibilidades revolucionárias das novas formas de organização e de luta criadas pelas massas; o Militante, onde é lançada esta palavra de ordem, faz ao mesmo tempo exigências que reduzem desde logo todo o alcance que ela podia ter:

  1. os comunistas não devem entrar para os GACs, que se destinam apenas a agrupar antifascistas até agora desorganizados (!);
  2. as organizações do Partido não devem pretender dirigir os GACs, pois é ao Conselho Nacional que cabe dar as directivas políticas.

Seria difícil encontrar uma expressão mais clara das contradições em que se debatia a direcção do Partido.

É de supor que esta posição absurda quanto aos GACs tenha provocado um vivo protesto no Partido, porque dois meses depois o Militante a rectifica em parte, admitindo a participação dos comunistas, mas insistindo sempre que é ao Conselho Nacional que cabe a sua direcção. De todas as formas, a reserva com que a direcção do Partido continua a encarar esta palavra de ordem não permite que ela seja verdadeiramente levada a prática, dado que se reprimem severamente todas as tendências “terroristas“ surgidas nessa época nas fileiras do Partido e se autorizam só as formas pacíficas.

Quando, no 2.° Congresso Ilegal, em 1946, Álvaro Cunhal constatou com acento triunfante “o fracasso completo“ dos GACs, não disse que, escorada no argumento da luta contra o putchismo, a direcção do Partido se opôs às formas violentas para que tendia o movimento Popular em 1944-45 e procurou enterrar a palavra de ordem dos Grupos Antifascistas de Combate que fora forçada pela pressão da base. O “fracasso completo“ foi obra, primeiro tudo, da própria direcção do Partido.

Só se o Partido tivesse encabeçado audaciosamente e contra todas as dificuldades os GACs, enquadrando-os numa perspectiva revolucionária e libertando a iniciativa das massas, só se a direcção do Partido estivesse livre das deformações legalistas e unitárias – só nessas condições teria sido possível fazer uma apreciação objectiva dos GACs e da sua necessidade no período de 1944-45.

A DOUTRINAÇÃO POLÍTICA DOS LIBERAIS

Levada pela sua linha de entregar a direcção da luta política nas mãos dos políticos burgueses, limitando gravemente a iniciativa independente do Partido e das massas trabalhadoras, a direcção do Partido vem a cair na tendência estéril para esclarecer e doutrinar a burguesia antifascista.

Em muitos documentos do período 1945-49 (de que um dos mais característicos é o folheto “O PC ante algumas tendências prejudiciais dentro do MUD“) está patente o esforço por explicar e demonstrar aos políticos liberais e radicais que a vitória da luta antifascista só pode ser conseguida pela luta de massas, que o seu receio do povo é injustificado, que a linha de compromisso e das concepções perante o inimigo só pode conduzir à derrota, que as ilusões num recuo espontâneo do fascismo são ilusórias, que a colaboração com o Partido Comunista é uma condição essencial para o triunfo das forças antifascistas, etc.

Tendo chegado ao ponto de ignorar que o movimento antifascista é composto por classes com interesses diferentes e divergentes, que a linha aplicada pelos políticos burgueses não resulta de tais ou tais ideias abstractas sobre o fascismo e a democracia, mas resulta sim da defesa coerente de interesses de classe bem determinados – a direcção do Partido lança-se na tarefa inglória de doutrinar os políticos burgueses e de lhes demonstrar (do ponto de vista do proletariado!) o erro da sua linha.

A doutrinação da burguesia é uma contrapartida simbólica e estéril aos abandonos políticos e ideológicos consentidos pelo Partido na Unidade. Em vez de desenvolver o movimento independente das massas populares numa perspectiva revolucionária, dando-lhe formas orgânicas independentes e fazendo a crítica aberta de classe à burguesia, de modo a emancipar os trabalhadores da sua influência – explica-se aos políticos burgueses que é errado impediras manifestações populares e dissolver as comissões operárias do MUD... Este é um dos aspectos mais eloquentes da grosseira incompreensão oportunista que está na base da linha da Unidade.

É evidente que esta concepção oportunista da colaboração de classes tende a evoluir para o sectarismo quando a desilusão sucede aos sonhos numa aliança idílica entre proletários e burgueses; à medida que o desenvolvimento da luta mostra com mais clareza que este esforço de doutrinação está condenado ao fracasso e que os políticos burgueses persistem, apesar de todas as explicações e exortações, em conduzir o movimento para o compromisso, a direcção do Partido, desiludida e indignada pela “má fé“ dos seus aliados, cai na hostilidade sectária, descrê da fraternidade de luta com que sonhava, censura e insulta os políticos burgueses.

Têm já sido assinalados os extremos sectários em que caiu a direcção do Partido no período 1950-54, denunciando como “agentes do fascismo e do imperialismo americano“ todos os políticos burgueses liberais que criticavam a linha do Partido ou se lhe opunham; mas o que é menos conhecido é que esses extremos começaram precisamente em 1947, quando a política da Unidade estava no auge; nessa altura, já a ansiedade quanto à direcção que a burguesia dava aos acontecimentos levava a reclamar “guerra aberta aos derrotistas, agentes do fascismo no campo antifascista“, já se apelidava os liberais de direita de “agentes de Salazar e do imperialismo“, “traidores à Unidade“, “pseudodemocratas“, “oportunistas incorrigíveis“, etc. (ver sobretudo o “Avante nos anos 1947 e 1948).

Normalmente, estes insultos são apresentados como uma prova de “vigilância de classe“ por parte da direcção do Partido; na realidade, eles mostram que a direcção do Partido não se atrevia a imprimir uma direcção revolucionária aos acontecimentos, não se atrevia a desamarrar-se da tutela burguesa e tentava compensar a sua impotência com injúrias que nada resolviam e que não impediram que, passados poucos anos, se renovassem com o mesmo ardor as ilusões oportunistas na colaboração “fraterna“ de classes.

UM GRANDE PARTIDO NACIONAL“

Esta linha esbateu, como não podia deixar de ser, a noção do papel dirigente do Partido Comunista. Isso manifestou-se no período de 1944-49 pelo abandono sucessivo das posições revolucionárias de classe, criticadas como “obreirismo“ e substituídas pela linha comum “oposicionista“, pelo desprezo para com a teoria e o estudo da luta de classes e do carácter da revolução, pela tendência pura transformar o partido do proletariado num partido de “todo o povo“, sob a palavra de ordem: “Um grande Partido nacional“.

Esta última incompreensão manifesta-se claramente na imprensa do Partido dessa época: os comités locais não devem reduzir-se às empresas, mas sim “ocupar-se com todo o interesse de todos os aspectos da vida de localidade“ (Militante, Fevereiro de 1947); os comités locais são criticados por não se preocuparem “como é preciso com a vida do comércio e da indústria da sua localidade, não dedicarem suficiente atenção às restantes camadas da população não operária e camponesa“ (Militante, Abril de 1945); critica-se a “linguagem demasiado de classe“, adoptada em 1944 pela imprensa do Partido; critica-se a “falta de atenção às classes médias“; alerta-se contra o perigo de o Partido “não ser capaz de satisfazer as esperanças“ da pequena burguesia, de esta descrer do Partido e se voltar para outro agrupamento político; insiste-se em que os militantes operários do Partido não se devem restringir ao trabalho operário e se devem voltar também para o trabalho entre a pequena burguesia (Militante, Junho de 1947).

É evidente que, na luta pelo derrubamento da ditadura fascista do grande capital e pela realização da revolução democrática, o Partido do proletariado deve saber exprimir e encabeçar as reivindicações não só da classe operária, mas também da grande massa dos oprimidos da cidade e do campo, e ainda de largos sectores da pequena burguesia urbana e rural; o Partido não afirma o seu carácter revolucionário de classe pelo facto de se fechar nos interesses e nos problemas da classe operária, mas pelo facto de saber tomar a direcção das grandes massas da população que têm reivindicações revolucionárias na presente etapa, impulsionando o processo revolucionário na via do socialismo. Mas essa tarefa tem que ser realizada sem atenuar no mínimo que seja a independência ideológica e política do proletariado, concentrando sempre o esforço principal do Partido sobre a mobilização, educação e organização do proletariado, não permitindo que o impulso revolucionário de classe que atrai os operários ao Partido seja sufocado pelas exigências da Unidade, sem ocultar uma só das contradições de classe existentes. A linha para “Um grande Partido nacional“ representou, no campo da organização partidária, uma manifestação mais da política oportunista da Unidade; alargando perigosamente as fileiras do Partido nas condições da ditadura fascista, ela descurou ao mesmo tempo a exigência principal para um grande partido nacional do proletariado: a coesão revolucionária das suas fileiras, a sua educação como um destacamento avançado de combate do proletariado e das massas oprimidas, a firmeza irreconciliável na luta de classes, guiada pelo objectivo da ditadura do proletariado e do socialismo.

O desmantelamento de grande parte das organizações partidárias em 1949-50 sob a ofensiva policial, a traição ou deserção de dirigentes, funcionários e militantes responsáveis nesse período (que estão documentados no relatório do camarada Melo à 4.ª Reunião ampliada do Comité Central, de Dezembro de 1952), mostraram que a linha para “um grande Partido nacional“ contribuíra para o enfraquecimento interno do Partido e do movimento operário e desarmara mais ainda o Partido para as pesadas tarefas que se lhe colocavam.

A LINHA DA UNIDADE FOI CONDENADA PELA EXPERIÊNCIA

Quando os reformistas nos acusam de querermos pôr em causa a necessidade duma larga política de alianças na luta pelo derrubamento da ditadura fascista, eles tentam delicadamente falsear os factos para evitar ter que discutir as críticas concretas que lhes são feitas; é preciso, pois, tornar claro que os marxistas-leninistas não negam a necessidade duma larga política de alianças para o derrubamento da ditadura fascista: eles simplesmente rejeitam uma concepção oportunista e reformista de aliança que tem sido oposta em prática sob a cobertura da Unidade. Os exemplos apresentados atrás mostram que a política da Unidade de Álvaro Cunhal deu lugar a que a linha do Partido Comunista fosse marcada em 1944-49 por um grave desvio oportunista de direita, cujas manifestações principais foram as seguintes:

  1. subestimação do papel revolucionário do proletariado e do seu partido; afrouxamento do carácter de classe do partido; abandono dos objectivos revolucionários na presente etapa e da luta pela conquista do poder em troca de compromissos e acordos com a burguesia por objectivos imediatos;
  2. desprezo pela actividade teórica, pelo estudo da luta de classes na nossa sociedade e das tarefas da revolução, pela luta ideológica contra as correntes burguesas liberais e radicais;
  3. abandono do trabalho de aliança com o campesinato em troca duma estreita aliança com a burguesia liberal;
  4. subordinação das acções de massas a organismos unitários dirigentes, comprometendo a iniciativa e independência populares em face da burguesia liberal;
  5. oposição às formas violentas de luta por receio de se separar da burguesia liberal e de comprometer a acção legal.

Estes erros oportunistas, que giram todos em volta da tendência para entregar a direcção do movimento antifascista nas mãos da burguesia liberal, deram lugar a que afrouxasse gradualmente a energia do movimento popular e que se acumulassem as dificuldades para o Partido; o período de 1944-49, longe de ser uma sucessão ascendente de vitórias, como pretende Cunhal e os seus adeptos, limitou seriamente as possibilidades abertas pela luta da classe operária e de todo o povo, que, em 1944, sob a direcção dos comunistas, procuravam a via da insurreição armada contra a ditadura.

Esta incapacidade da linha da Unidade para conduzir as massas populares à vitória, e as consequências desastrosas que resultavam da direcção burguesa sobre o movimento antifascista, começaram a tornar-se patentes desde 1948, não só para muitos militantes comunistas e trabalhadores de vanguarda, como também para dirigentes não contaminados pelo oportunismo e pelo reformismo de Cunhal, Fogaça, Pedro Soares e outros; mesmo dentro do Comité Central do Partido começaram a elevar-se vozes defendendo a necessidade de procurar uma linha revolucionária: é isso que mostra o informe do camarada Militão Ribeiro, membro do Secretariado, à reunião do Comité Central de Janeiro de 1949.

Nesse informe (hoje completamente ignorado do Partido), Militão Ribeiro dá um balanço à situação difícil do movimento popular ao aproximarem-se as “eleições“ presidenciais (candidatura do general Norton de Matos) e defende a urgência duma iniciativa audaciosa dos comunistas em todas as frentes para anularem a instabilidade da burguesia liberal e elevarem o movimento de massas a formas superiores; ele insiste longamente sobre a necessidade de encontrar as formas de dar voz activa aos trabalhadores na luta política, de voltar toda a actividade do Partido para a agitação e mobilização do povo, para a constituição de comissões eleitorais pela base e não a partir de convites a personalidades, condenando vivamente a tendência de os comunistas irem às comissões democráticas, receberem directivas dos democratas burgueses e de se “prosternarem perante eles“, julgando-os os mais capazes.

E o informe acrescenta:

“Onde devemos ir buscar a origem destas incompreensões? Ao facto de, para a grande maioria dos nossos camaradas, não estar verdadeiramente claro qual deve ser o papel que o nosso Partido e o proletariado devem desempenhar no actual momento histórico do povo português, no seu papel de força política dirigente. Fazer compreender a todos os elementos do Partido e ao grosso do proletariado português esta sua missão histórica, insuflar-lhes confiança na sua força, eis a tarefa primordial do momento.“ (...) “No momento actual, o nosso Partido deve esforçar-se por levar o proletariado a compreender o seu papel para que este saiba impor a sua orientação na luta contra o salazarismo. Não deve permitir que este posto de vanguarda, que por direito lhe pertence, passe para as mãos de outra classe ou partido, porque então o movimento antifascista deixaria de ter uma orientação proletária revolucionária em benefício de todo o povo (...) para passar a um movimento apenas em defesa dos interesses estreitos dos partidos representando a burguesia e a pequena-burguesia“ (itálico nosso, RP).

Estas tomadas de posição são significativas. Embora sem fazer uma crítica explícita à linha da Unidade de Cunhal, elas põem toda essa linha em causa, ao apontarem a dualidade de orientações e de interesses de classe no movimento antifascista e ao afirmarem a necessidade de os comunistas lutarem pela hegemonia do proletariado sobre a burguesia liberal; elas constituem uma crítica indirecta de grande valor ao oportunismo de Cunhal.

Porém, a prisão um mês depois, de Cunhal, Militão e outros dirigentes do Partido, o desfecho desmoralizador das “eleições“ e o rompimento da Unidade por parte dos liberais, vieram pôr termo precipitadamente à linha da Unidade sem que a direcção do Partido tivesse chegado a fazer dela uma crítica séria de princípios que revelasse as concepções reformistas e oportunistas que lhe deram nascença.

A LINHA ACTUAL DO PARTIDO: UMA REEDIÇÃO ACTUALIZADA DA UNIDADE

Em 1959, dez anos depois da crítica de Militão Ribeiro e tendo feito sucessivos ziguezagues sectários e direitistas, o Partido vinha a encontrar-se numa situação ainda mais difícil do que a de 1949.

Enquanto o movimento popular conhecia um forte impulso e se lançava em acções audaciosas contra a ditadura, a direcção do Partido, privada duma perspectiva revolucionária e empenhada num esforço frenético para ganhar a confiança da burguesia liberal e dos fascistas descontentes, seguia à rectaguarda das massas, puxando-as para trás:(1) convocava uma “grande jornada nacional pacífica para afastar Salazar do poder“ e apelava para “a reconciliação dos portugueses“. A “linha doce“ de Júlio Fogaça e Pedro Soares, que fora repelida pelo 2.° Congresso Ilegal de 1946, acabara por triunfar desde 1956, ao impulso das “teses criadoras“ do 20.° Congresso do PCUS.

Foi nesta situação difícil, em que a direção do Partido, de concessão em concessão, perdia todo o crédito junto dos operários e das massas revolucionárias, que a reintegração de Álvaro Cunhal e de outros dirigentes evadidos da cadeia, somando-se à viva reacção do Partido contra o direitismo, deu lugar a uma aguda luta de tendências na direcção do Partido e acabou por levar à derrota da linha da “solução pacífica“ e à proclamação da via da luta armada para derrubar a ditadura.

O Partido, a classe operária, os elementos sinceramente revolucionários, regozijarem-se com aquilo que julgaram ser o triunfo das ideias marxistas-leninistas na direcção do Partido. Mas em breve a experiência veio mostrar que Álvaro Cunhal, entrando na luta contra os ultra-direitistas, tinha em vista apenas repor a sua linha tradicional da Unidade, já condenada pela experiência dos anos 1944-49.

Isso tornou-se patente desde Março de 1961 com a publicação da Declaração “A via para o derrubamento da ditadura fascista e para a conquista da liberdade política“, apresentada como a nova plataforma política do Partido, em substituição da linha da “solução pacífica“; esse documento, em vez de fazer uma crítica de princípios ao reformismo e ao pacifismo dos anos anteriores, limita-se a certos ajustamentos tácticos muito limitados e marca de facto uma nova intensificação dos esforços “unitários“ por parte da direcção do Partido.

O desvio de 1956-59 comprometera a própria sobrevivência do Partido como partido marxista-leninista do proletariado português ao abandonar totalmente as posições revolucionárias de classe e reduzir as perspectivas políticas do Partido à aspiração comum de “todos os portugueses honrados“, o afastamento de Salazar do poder; mas a Declaração nada faz para pôr fim a esta degradação e elevar o proletariado e o Partido a um lugar dirigente; ela não põe em relevo os interesses revolucionários do proletariado por oposição às classes exploradoras, não revela o carácter da luta de classes em curso no país, não aponta o caminho da conquista do poder político, não estuda as etapas da revolução portuguesa nem as suas tarefas. A Declaração mantém o Partido encerrado na perspectiva da luta pelo derrubamento da ditadura fascista.

O desvio de 1956-59, sob a preocupação de atrair as forças hesitantes e desagregar o campo inimigo, pregara a solução pacífica, fechara às acções de massas o caminho da violência e da insurreição; mas a Declaração, falando abstractamente no “levantamento em massa da Nação, em que a greve geral política pode desempenhar importante papel“, não critica as concepções pacifistas até ai apregoadas, nada diz sobre a necessidade dum processo de luta armada popular e ataca mesmo as tendências para procurar formas violentas de luta, classificando-as como “tendências anarquistas e terroristas“ que podem levar amplas camadas populares a tomar posições conservadoras e de reserva para com o movimento democrático“. A Declaração mantém o Partido reduzido ao emprego das formas pacíficas de luta.

O desvio de 1956-59, desprezando os objectivos revolucionários, desprezara os aliados revolucionários do proletariado e pusera os trabalhadores a reboque da burguesia liberal e radical; mas a Declaração, falando formalmente na “decisiva importância“ das alianças da classe operária com o campesinato e com os povos das colónias, é dirigida na prática para estreitar mais ainda os laços de dependência para com a burguesia liberal, ao proclamar que “a unidade das forças democráticas é base fundamental para o desenvolvimento vitorioso da revolução popular e nacional“, ao lançar a palavra de ordem para a formação “dentro de curto prazo“ dum “movimento único da Oposição“ e da “constituição duma direcção nacional do movimento democrático“. A Declaração mantém o Partido amarrado à unidade com a burguesia liberal.

Assim, aquilo que era a lição essencial de 15 anos de luta antifascista, ou seja, a divergência fundamental de interesses entre o proletariado e a burguesia liberal e a disputa permanente que os opõe no esforço para ganharem a direcção do movimento popular, foi ignorado por Cunhal na crítica ao desvio de 1956-59. A actividade da direcção do Partido nos últimos anos é guiada uma vez mais para pôr de pé a mesma política de Unidade que a experiência condenou: centra-se toda a atividade pela política das massas em torno da criação dum superpartido unitário, desta vez a Frente Patriótica; combatem-se as tendências para as formas violentas de luta sob a acusação de “terrorismo“; relança-se a partir de 1962 a palavra de ordem para “Um grande Partido nacional“; apaga-se a noção de hegemonia do proletariado e das suas tarefas revolucionárias.

Mas, como dizíamos no princípio deste artigo, Cunhal já não consegue voltar a aplicar a sua política de há 20 anos; as condições da luta de classes no nosso país transformaram-se radicalmente e abrem novas possibilidades à derrota da linha conciliadora de Cunhal e para o triunfo duma linha marxista-leninista que garante a iniciativa e a independência do proletariado português na luta pelos seus interesses de classe, que nada têm de comum com os interesses da burguesia liberal. É nesse sentido que é necessário unir todos os esforços dos marxistas-leninistas portugueses, se quisermos obter verdadeiros êxitos na luta pelo derrubamento da ditadura fascista, pela democracia popular e pelo socialismo.