Democracia Eterna

Francisco Martins Rodrigues

7 de Julho de 1982


Primeira Edição: Em Marcha, 7 de Julho de 1982

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Edificante de verdade a última palestra autárquica do nosso Presidente Eanes: para a Democracia ser mais bela, a maioria não deve abusar da sua força, deve exercer o poder com tolerância, em consenso com a minoria, etc.

Quer dizer: enquanto por esse mundo fora há lutas e guerras por causa das minorias que oprimem as maiorias, nós aqui já estamos tão avançados que andamos a estudar a maneira de a maioria não magoar nem vexar a minoria. Vejam que exemplo!

O caso é que a Democracia cá no Portugalório está com uma pujança que faz favor. Debate a Assembleia, reunem os partidos, informam os jornais, falam os cidadãos. E tudo em boa harmonia. Não é exaltante?

Há só talvez um ligeiro senão a apontar. É que esta Democracia foi toda arrematada pelas pessoas do capital, proprietários, empreiteiros, advogados e ocupações similares. Manda a verdade que se diga: a nossa Democracia é modelar mas não está lá muito bem repartida.

Dá-se até uma coincidência curiosa: é que os nove milhões de economicamente débeis deste pais são também os politicamente mais débeis. Ninguém vê pessoal do trabalho dirigir partidos, governar, nem que seja freguesias, propor, orientar, falar na televisão. Da Democracia, à arraia miúda calharam só as migalhas, as espinhas, os ossos. Votam e é um pau.

De qualquer forma, essa ligeira mancha não pode empanar o fulgor da Democracia. Fiquei com essa certeza reforçada ao ler no “Expresso” um suculento empadão ideológico do sr. João Carlos Espada.

Com encantadora modéstia, este jovem e talentoso “ex-bolchevique” fala-nos do seu deslumbramento ao descobrir que o velho Kautsky, a quem se habituara a chamar desprezivelmente de renegado, fora afinal um sagaz teórico, que já em 1930 percebera que o regime instaurado por Lénine na Rússia não passava de um “poder despótico de tipo oriental”. Mais: o lúcido Kautsky aconselhava já nesse tempo os operários europeus a não trocarem o civilizado “quadro parlamentar moderno” pelo bárbaro poder dos sovietes. Ele sabia o valor da Democracia eterna.

Pena ter demorado tanto tempo a descobri-lo, não é verdade, amigo Espada? Mas nada está perdido, você está ainda muito a tempo. Poderá até, quem sabe, vir um dia a servir a Democracia dentro do nosso “quadro parlamentar moderno”. Como deputado do PSD, claro.


Observação: Tiro ao Alvo - Coluna de FMR no jornal Em Marcha e no jornal Política Operária.

Inclusão 06/02/2019