O Triunfo dos Padres

Francisco Martins Rodrigues

Março/Abril de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 9, Mar-Abr 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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A Cena dos Bispos em torno da lei da Rádio foi de uma arrogância tão descarada que a UDP achou necessário recorrer aos grandes meios e pagou uma página de publicidade num jornal para criticar… a falta de qualidade apostólica dos programas da Rádio Renascença!

Que a UDP, que apesar de tudo ainda faz o papel de extrema esquerda no leque partidário, se sinta na obrigação de invocar os princípios do catolicismo para poder criticar os padres, eis o que dá a medida da miséria a que chegámos neste problema.

Porque a UDP não faz mais do que aplicar, de maneira particularmente tola e oportunista, a táctica herdada do velho PCP para a questão religiosa. No PCP ensinavam-nos como uma verdade evidente que a propaganda anti-religiosa e anticlerical não passava de infantilismo anarco-republicano, de manifestação gratuita de irreverência pequeno-burguesa radical. Os comunistas não se metiam nessa falsa guerra, que só servia para cavar divisões entre crentes e não-crentes, desviar o golpe do verdadeiro inimigo, o aparelho de Estado burguês.

Convenceram-nos que a propaganda anti-religiosa era oposta à táctica leninista de frente única contra o capital. E o que ensinava a táctica de frente única, na opinião destes novos “leninistas”? Os crentes podiam ser ganhos para a luta de classe desde que nos abstivéssemos de ataques “sectários” à religião; os padres podiam ser sensibilizados para a denúncia das injustiças sociais, dada a sua origem humilde; os bispos só deviam ser criticados na medida em que apoiassem a ditadura, e tendo sempre o cuidado de mostrar a contradição entre o seu alinhamento político e os princípios evangélicos; o problema da crença religiosa, enquanto questão filosófica, devia ser deixado à margem da política, adiado, esquecido.

Assim, por uma escadaria de castrações sucessivas, estreitou-se a crítica à religião na crítica à Igreja, a crítica à Igreja na crítica à hierarquia, e esta na crítica aos bispos “maus”, que não serviam devidamente os princípios religiosos.

Esta “hábil” táctica de mão estendida estava toda errada. Tanto que permitiu à Igreja preservar intacta a sua influência depois do abalo provocado pela queda da ditadura e retomar a ofensiva em toda a linha nestes últimos anos.

A sua rede de pressões é tão vasta que consegue fazer esquecer o papel tenebroso desempenhado durante meio século como pilar do fascismo. Todos os dias nos vendem historinhas sobre a luta titânica do bispo do Porto contra Salazar, a oposição de Salazar ao Patriarcado, os bispos anticolonialistas que desafiavam o regime… e não há uma palavra para lembrar os milhares de padres que diariamente, ao serviço do aparelho, pregavam o respeito pela “autoridade legitima” e esbravejavam contra o “comunismo ateu”, completando o trabalho dos pides.

Mas não só isto. Ao deixar o campo livre às crendices religiosas, às superstições mais aberrantes e embrutecedoras, como é o espectáculo degradante de Fátima, tudo para “não ofender os sentimentos dos crentes”, só o que se conseguiu foi estreitar cada vez mais o campo do materialismo, facilitar a desfiguração da luta de classes em chochas pregações de moral cristã, matar o espírito de revolta, reduzir o campo da revolução, alargar o espaço ao reformismo.

Passar a propaganda do materialismo à clandestinidade não foi uma mera manobra táctica nem sequer um erro. Foi um dos aspectos da grande capitulação que levou os comunistas a abandonar os seus objectivos revolucionários, um a um, na ilusão oportunista de tornar a revolução mais fácil. Ganhar aliados à custa de desistir da revolução — que grande esperteza!

Mal sabem os militantes do PCP o triste papel de parvos que andam a fazer quando comentam, com um sorriso entendido, que a propaganda anti-religiosa “era o que eles queriam”, “se não falarmos na religião, ela desaparece por si”. Vê-se…

O ataque ao aparelho de estado burguês, para ser eficaz, não impede mas exige o desdobramento diário da propaganda e da agitação numa grande variedade de frentes. O ataque à Igreja, enquanto aparelho especializado de acorrentamento ideológico das massas, não dispersa forças no combate à burguesia; pelo contrário, enriquece o leque da acção revolucionária.

Que fazer então? Vamos lançar-nos em “guerras religiosas”, atacar as procissões, rejeitar a acção comum com os trabalhadores crentes? Argumentos absurdos, tudo isto.

Queremos a frente única, que significa a cooperação em pé de igualdade entre correntes políticas e ideológicas diferentes para um objectivo imediato comum. Queremos uma aliança de luta livremente consentida e não uma capitulação disfarçada com frases melosas.

Ou seja, reconhecemos aos católicos o direito de praticarem e propagandearem a religião, mas na exacta medida em que não nos privemos do nosso direito de praticar propagandear o ateísmo, o materialismo militante.

E não nos venham com a história do “respeito”: se ao dizermos que a religião é um ópio paralisante do povo ferimos os sentimentos dos crentes — acaso não ferem eles diariamente os nossos sentimentos ao praticar toda a espécie de superstições?


Inclusão 10/06/2018