Poderes Paralelos

Francisco Martins Rodrigues

Março/Abril de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 9, Mar-Abr 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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A REVELAÇÃO de que estão em bom andamento os trabalhos preparatórios de uma nova Pide, com a organização dos respectivos ficheiros, causou nos meios políticos mais embaraço do que alarme. Coisas destas são inevitáveis, mas ainda é cedo para as fazer aceitar pela opinião pública.

"A delicada questão da fichagem", como é educadamente referida no parlamento, não tinha que existir oficialmente, ao menos por agora. Foi partindo desse principio que o ministro Leonardo Ribeiro de Almeida negou tudo a pés junto, acabando por ficar numa situação desconfortável: ou já sabia que era verdade, e então não passa dum mentiroso; ou não sabia, e nesse caso é um parvo.

Mais esperto foi o primeiro-ministro, que arranjou maneira de confirmar, desmentindo. Espionagem aos partidos? Ficheiros? Pura invenção comunista para enfraquecer o Estado, declara ele ao "Expresso". A realidade é muito diferente: "A DINFO preocupa-se, como é seu dever, com todos os indivíduos, sejam eles do partido A ou do partido B, que, directa ou indirectamente, possam exercer actividades que ponham em causa a segurança interna e a independência nacional".

Todos os indivíduos que, directa ou indirectamente, possam exercer actividades... Cavaco confirma que somos todos, afinal, a estar cobertos pela vigilância da DINFO! Mas fá-lo dcscontraidamcntc, desdramatizando a questão. Nisto consiste a arte do governante democrata: levar as pessoas a aceitar com naturalidade todas as violações da legalidade, convencendo-as de que assim se fortalece o Estado de direito.

Ou veja-se o folhetim da Estónia, no qual o papel de parvos coube ao presidente da Assembleia. Fernando Amaral, e ao ministro dos Estrangeiros, Pires de Miranda. A história resulta transparente, dos próprios relatos dos jornais: graças aos esforços denodados do PCP, das associações dc amizade e da diplomacia soviética, organiza-se uma visita de parlamentares à URSS. Vai triunfar enfim o espírito do desanuviamento! À última hora, porém, a embaixada americana, que não dorme, sugere que talvez não seja aconselhável permitir que deputados portugueses visitem a Estónia, o que equivaleria a reconhecer as anexações soviéticas...

E aí salta o governo por cima dos sagrados poderes soberanos da Assembleia, fazendo regressar a delegação a toque de caixa. Protestos, celeuma, acusações e contra-acusações: quem quis desfeitear a quem? Mas toda a gente concorda em que “os parceirosda CEE e da NATOnão viriam de facto com bons olhos a visita à Estónia”. E ninguém pergunta com que direito nos vêm falar da Estónia aqueles que atacam a Nicarágua, invadem Granada, ocupam a Irlanda do Norte, fazem a guerra no Chade...

E eram estes que todos se indignavam com os “poderes paralelos” e as “assembleias selvagens” de 75! Agora felizmente já não há “bagunça” popular a empenar a máquina do Estado. Os poderes paralelos funcionam à porta fechada, completando as tarefas sujas que não podem ser feitas à luz do dia.


Observação: Tiro ao Alvo - Coluna de FMR no jornal Em Marcha e no jornal Política Operária.

Inclusão 06/02/2018