Radiografia

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 12, Nov/Dez 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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A revolução de Outubro de 1917 saudada por Álvaro Cunhal no Avante e demolida por João Carlos Espada no Expresso – aí está uma guerra menos banal do que pode parecer à primeira vista.

Como seria de esperar, os dois colocam-se em posições antagónicas. Para o velho secretário-geral do PCP, a URSS é o farol do socialismo, da paz, do bem-estar e da liberdade dos povos, e deve tudo isso a Outubro. Para o jovem conselheiro de Mário Soares e admirador de Jonas Savimbi, é justamente por causa do “corte conservador” de Outubro que o regime da URSS é autocrático, opressor, reaccionário.

Trincheiras opostas, portanto. Mas com esta particularidade: Cunhal evoca o fulgor revolucionário de Outubro para embelezar a baça URSS actual; Espada procura, através da condenação da URSS de hoje, atingir a revolução de Outubro. Cunhal defende a URSS; Espada ataca a revolução russa. Os dois falam de coisas diferentes. E é aqui que está o sal deste jogo.

Quando Cunhal proclama fidelidade inabalável às ideias de Outubro, ele quer exprimir a sua fidelidade inabalável à URSS de hoje. É um facto bem conhecido.

O PCP (como qualquer outro partido pró-soviético) só em palavras segue as pisadas dos bolcheviques. Cunhal pratica uma política e cultiva uma ideologia que mereceriam os sacarmos corrosivos de Lenine.

Comparem só a “revolução democrática nacional” com as teses de Abril, a luta pelo desarmamento com o programa da revolução proletária mundial, a “unidade das forças democráticas e patrióticas” com o implacável combate de Lenine aos mencheviques. Não dá para tomar a sério.

É claro que esta mudança total de política é justificada com as “novas condições objectivas”. Mas que equivale isso senão a dizer, por outras palavras, que se considera a via da revolução proletária como uma bandeira de museu, imprestável ao mundo de hoje?

Em contrapartida, há uma realidade que lhe desperta entusiasmo, confiança, amor sem limites: é a URSS actual, apesar de ela não ter nada a ver com a Rússia vermelha. E compreende-se bem porquê. Para os pequeno-burgueses progressistas, que não se conformam com o pesadelo da ditadura do capital monopolista mas receiam o fantasma da ditadura do proletariado, o “socialismo” burguês de modelo soviético é a esperança radiosa de poderem sobreviver como classe: nacionalização da economia e, portanto, superação do conflito explosivo entre patrões e operários; “Estado de todo o povo”, e portanto, um domínio mais racional e eficaz das classes ilustradas sobre toda a sociedade; “socialismo real”, e portanto, a legalização dos privilégios dos administradores, gestores, quadros, intelectuais.

O respeito filial com que Cunhal e os membros do PCP falam da URSS não engana: retrata o drama de uma pequena burguesia que enche a boca com Lenine, a revolução e a força da classe operária mas sabe que nunca chegará ao poder se não for pela mão da União Soviética. É esse, em resumo, o significado dos hinos de Cunhal ao “grande Outubro”.

As motivações de Espada são ainda mais transparentes. Ele é a voz autêntica da burguesia (social-democrata, liberal, antiliberal, tanto faz) que está instalada, aposta na continuidade do que existe e repudia as concessões.

Espada encara com aversão e desprezo o namoro de Cunhal ao movimento operário. Para quê promover uma sociedade melhor? A sociedade melhor é esta, os operários não terão outro remédio senão aceitá-la como ela é. Em vez de brincarmos com o fogo das miragens socialistas, é preciso dizer que o bem supremo da humanidade é a liberdade de iniciativa; que a igualdade de opressores e oprimidos perante a lei produz a democracia possível; que o colectivismo gera a barbárie; que o marxismo é reaccionário,“o maior cinismo do século XX”, é “uma fraude”, etc.

Há qualquer coisa de tocante na febre com que J. C. Espada investe contra as ideias maléficas do marxismo e da revolução. Por vezes o excesso juvenil do seu reaccionarismo deve parecer embaraçante aos homens do poder, longamente treinados em disfarçar a ditadura de ferro sob as grinaldas da solidariedade social. Mas não podem deixar de sentir, decerto, ternura por este arauto ardente dos direitos do capital, da propriedade privada e do Estado.

Porque, se na URSS, hoje as pessoas de bem já podem viver tranquilas, não se pode esquecer o que foram os horrores da revolução. É preciso que nunca mais se repitam.

É aqui que está o ponto comum dos dois adversários. Cunhal identifica a Rússia de 17 como a de 87 para se acolher à sombra de Gorbatchov. Espada confunde a Rússia vermelha coma a URSS burguesa para defender o direito do capital à livre iniciativa.

Falando da revolução de Outubro, é o futuro da sua classe que discutem. Com perspectivas divergentes, é certo. Mas com uma grande preocupação comum: evitar a apropriação colectiva dos meios de produção pelos produtores, evitar a fusão do trabalho manual com o trabalho intelectual, do trabalho de direcção com o trabalho de execução; evitar a extinção do Estado, das hierarquias, dos privilégios – evitar o comunismo, que Outubro anunciou.


Inclusão 10/06/2018