Carta Aberta aos Ex-presos Políticos

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 1988


Primeira Edição: Política Operária nº 13, Jan/Fev 1988

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


capa

As condenações já somam 800 anos e o tribunal produz acórdãos dignos dos tempos do fascismo. O que será preciso mais para descobrir que a solidariedade aos presos políticos faz parte da luta contra a direita?

Não consta que a URAP – União dos Resistentes Antifascistas Portugueses – tenha tomado posição sobre a sentença do caso FUP/FP-25, em que dezenas de militantes de esquerda foram condenados a penas de 12, 16 e 18 anos de cadeia. Não consta que qualquer agrupamento de antigos presos políticos se tenha sobressaltado com a condenação destes homens e mulheres, que agiram — é o tribunal que o reconhece — “movidos por profundas convicções políticas”.

Não é estranho? Presos políticos em greve da fome: mais de cem processos a correr; mulheres “terroristas” com crianças pequenas na cela – e nem sequer os antigos presos políticos se comovem?

Durante muito tempo, disse-se que o caso era “obscuro”, que podia haver provocação, que podia tratar-se de uma armadilha para comprometer a esquerda…

Mas o silêncio tornou-se escabroso a partir do momento em que o Tribunal da Relação de Lisboa não só confirma como agrava as penas dos réus e, de passagem, aproveita para dissertar sobre as “tácticas leninistas de subversão”, insulta o movimento revolucionário de 75 como “o bando então ao assalto do poder”, toma a defesa dos fascistas da “maioria silenciosa”, arruma as acções anticoloniais da ARA e o assalto ao paquete “Santa Maria” como crimes comuns, e até apresenta o rei D. Carlos como mártir do terrorismo!

Ainda há dúvidas sobre o campo em que se situam os presos e aquele em que se encontram os juízes? Os argumentos agora invocados pelo tribunal são assim tão diferentes dos que fundamentavam as sentenças fascistas dos tribunais plenários? As campanhas odientas da escumalha do Semanário, do Crime e do Diabo contra os “bandoleiros” são assim tão diferentes das do extinto Diário da Manhã contra o bolchevismo subversivo”?

É muito bonito fazer associações de ex-presos políticos e recordar em procissão o Tarrafal e a PIDE. Só que isto pode tornar-se um ritual hipócrita se ao mesmo tempo se fecham os olhos sobre as perseguições políticas actuais. Até porque nesta repressão legal de hoje se pode estar a jogar justamente o começo de novas Pides e novos Tarrafais. E, nesse caso, a responsabilidade dos antigos presos políticos será pesada; porque eles não poderão dizer que não sabiam…

É claro que há argumentos excelentes para lavar as mãos do assunto. Não se pode comparar o actual Estado de direito democrático com o regime terrorista de Salazar; hoje ninguém é preso por delito de opinião ou de associação; portanto, não há presos políticos; portanto, não se deve ceder a chantagens sentimentais de indivíduos que, pelas suas acções irresponsáveis e aventureiras, deram lugar à sua própria prisão; portanto, não vamos considerar como vítimas elementos marginais que só têm facilitado a propaganda da direita…

Estes argumentos tranquilizadores têm um defeito: falsificam tudo.

Em primeiro lugar, os presos do caso FUP/FP-25 não são bandoleiros nem marginais. São militantes de esquerda, sindicalistas, activistas de cooperativas, de comissões de trabalhadores e de moradores, defensores do socialismo. Estão presos porque tentaram, à sua maneira, opor-se à desforra dos capitalistas e reaccionários que começou em 25 de Novembro de 1975. Julgaram que a sua decisão de luta bastaria para incendiar a indignação dos trabalhadores contra os abusos de que vêm sendo vítimas. Arriscaram e perderam a liberdade para ser coerentes com as suas convicções.

Cometeram erros políticos grosseiros? Por mim, não tenho dúvida de que os cometeram. Mas isso já não tem nenhuma importância, agora que o seu projecto se afundou. Antes, tinha interesse discutir as suas ideias políticas. Hoje, o que está em discussão é se como presos políticos de esquerda merecem ou não o nosso apoio, se é ou não obrigatório prestar-lhes solidariedade.

Em segundo lugar, dizer que as acções da FUP e das FP-25 “deram argumentos à reacção” é uma mentira gritante. Foi por acaso a partir dessas acções que começou a arrogância da direita, os salários em atraso, os contratos a prazo, a exploração infernal do trabalho? Foram elas que atiraram a Reforma Agrária para a agonia em que se afunda? A morna indiferença do povo, que acabou por levar o PSD ao poder, foi obra das FP-25 e da FUP?

Todos sabem que não. O que aconteceu foi precisamente o oposto. As acções das FP-25 foram uma resposta, decerto desesperada e impotente, mas uma resposta ao avanço impune da direita. O grande, o único estímulo à ofensiva da reacção veio da frouxidão da resistência operária e popular de há 12 anos para cá.

Se é preciso pedir responsabilidades pela situação actual, não as peçam aos militantes presos. Peçam-nas aos estrategas do recuo permanente, aos “resistentes” que se esqueceram de resistir, às comadres de “esquerda” que passam o tempo a cacarejar contra o “perigo da radicalização prematura das lutas”.

Em terceiro lugar. Dizer que a defesa da trincheira da legalidade democrática, essa grande conquista do 25 de Abril, nos obriga a condenar todos os actos ilegais, venham donde vierem, é pelo menos cómico.

Porque a legalidade democrática, que não suporta assaltos a bancos ou atentados contra gestores, dá-se às mil maravilhas com o espancamento de operários que reclamam o seu salário, com os tectos salariais de 6% para os operários e de 60% para os gestores, com os patrões que embolsam os descontos da Previdência, com os vampiros que alugam crianças à hora, com a máfia militar que contrata pistoleiros para os GAL, com a impunidade da Renamo e da Unita para recrutar mercenários…

E nesta selva de crimes cobertos de verniz democrático e abençoada por uma justiça zarolha, eis que se levantam os honestos democratas, a cobrir pelo silêncio a condenação dos presos políticos, para não perturbar a legalidade e a ordem!

Vamos dizer tudo até ao fim. Vocês orgulham-se por ter sido vítimas da burguesia fascista mas não querem saber das vítimas da burguesia “democrática”. O vosso programa político cumpriu-se. A vossa luta acabou. Chegaram aonde queriam. O vosso ideal era esta pocilga.

Felizmente, nem todos pensam assim. Por mim, como antigo preso político do fascismo, não tenho dúvida em defender os presos da FUP e das FP-25. Não apenas pedir misericórdia para Otelo mas lutar pela libertação dos presos políticos, de todos os que pagam nas cadeias a sua oposição ao Capital. Não tenho medo de que se me pegue nenhuma doença “terrorista”. Não invoco divergências políticas para fugir ao dever de solidariedade.

Outros ex-presos políticos fazem o mesmo. Sabem que o apoio a estes homens e mulheres faz parte da luta contra a direita e que é urgente chamar o povo a reconhecer e defender os seus presos políticos, para ser capaz de travar outras batalhas. Não é uma questão de humanitarismo: é uma questão de política.

Continuem, pois, as vossas procissões em memória dos mártires do fascismo, como se nada tivesse acontecido depois disso. Outros tomarão a defesa das vítimas da Democracia. Porque, para além do fascismo e da democracia dos ricos, há outra sociedade por que lutar.


Inclusão 10/06/2018