“Revolução Política” Atropela Trotskismo

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 1991


Primeira Edição:  Política Operária  nº 30, Maio-Junho 1991

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Vai uma agitação febril nas hostes trotskistas. O grande dia da “revolução política” na URSS, tão longamente esperado, chegou enfim. Diga-se em abono da verdade que, depois dos primeiros lirismos, a queda da “casta burocrática stalinista” não se parece nada com a explosão de esquerda prevista nos compêndios. Pelo contrário, toma uns tons mais que suspeitos.

Na Polónia, o ídolo de ontem Walesa, convertido em presidente clerical de direita, reina sobre milhões de desempregados (não falemos no ex-trotskista Kuron que já reprimiu greves!). Os alemães da RDA, mal acabadas de chorar as lágrimas de alegria pela inolvidável queda do Muro, descobrem que foram ludibriados, anexados e espoliados pela Alemanha imperialista. No Báltico e no Cáucaso, os movimentos nacionalistas projectam a primeiro plano líderes verdadeiramente pouco apresentáveis, de cambulhada com grupos neo-nazis. E na URSS em desintegração, enquanto os “heróicos” dissidentes de ontem se convertem em negociantes de hamburgers, a saudada “autogestão operária” exprime-se na reivindicação do direito de… as empresas negociarem directamente com os monopólios estrangeiros!

Seria caso para uma reflexão melancólica sobre o dogma da “revolução política”. Mas o fervor dos trotskistas não esmorece com tão pouco. Se se dividem, é apenas quanto à táctica mais adequada para levar a “revolução” a bom termo.

A casamenteira desfeiteada

No 13.° congresso mundial da IV Internacional (tendência Mandel), que teve lugar em Fevereiro, travou-se uma curiosa polémica entre radicais e moderados: os primeiros a exigir, em nome da “coerência”, o apoio incondicional a todas as manifestações da “revolução política” (mesmo a anexação da RDA, mesmo as privatizações ao desbarato, mesmo as “democratizações” de sabor fascistóide), enquanto os segundos (a maioria mandelista) tentam ainda encontrar um meio termo.

É duvidoso que o encontrem. Até hoje, a táctica do Secretariado Unificado assentava na infiltração junto da ala “esquerda” dos regimes de Leste, tendo como certo que estes tinham uma vida longa à sua frente e que, uma vez perdida a virulência stalinista de outros tempos, poderiam ser gradualmente amolecidos até se tornarem um instrumento da acção unificadora da IV Internacional; um dia, stalinistas e social-democratas, uns e outros arrependidos dos seus pecados, seriam levados pelo trotskismo ao altar da “reunificação das forças do movimento operário e socialista”.

Por um momento, pareceu que tudo batia certo e que os trotskistas iam colher os louros duma longa perseverança. Ainda em Janeiro, ao apresentar em Moscovo a edição russa da revista Socialismo do Futuro, cujo comité de redacção reúne (ou reunia?) Gorbatchov e Willy Brandt, Ernest Mandel defendeu explicitamente a “superação das divergências que separam os partidos comunistas e ex-comunistas dos partidos social-democratas”.

O Prof. Mandel, académico de mérito, é um político oportunista em extremo. O seu plano de regenerar revisionistas e social-democratas através da unificação tem tanto de utópico como de reaccionário. Bastaram oito meses para o PCUS se desvanecer na atmosfera, deixando-o perplexo à cata de interlocutores. As coisas evoluem a tal ritmo que se corre o risco de não haver nenhum “socialismo”, mesmo degenerado ou deformado, que lhe sirva de alavanca para as suas manobras unificadoras.

Viveiro de social-democratas

Já muitos o assinalaram antes de nós: a tese trotskista dos “Estados operários burocraticamente degenerados ou deformados”, suspensos não se sabe como entre capitalismo e socialismo, tinha que conduzir a uma incapacidade total para entender a luta de classes e o sentido de evolução económica da União Soviética.

Bramando contra a “casta burocrática parasitária que usurpou o poder”, o trotskismo ignorou sempre o quadro essencial da questão — a restauração das relações capitalistas em curso na URSS desde o tempo de Staline. Restauração que veio avançando através de conjunturas mais “liberais” ou mais “conservadoras”, nas quais os trotskistas queriam ver grandes batalhas entre a “esquerda” e os “burocratas stalinistas”. Não admira que a IV Internacional acabe nesta inépcia de confundir a transição do capitalismo estatal ao capitalismo adulto com uma revolução, de atribuir méritos de esquerda a políticos de direita, de dourar com as cores heróicas dum levantamento proletário aquilo que não passa duma agitação democrática pequeno-burguesa, a cavalo dos trabalhadores.

E assim, apesar da sua retórica ultra-marxista, o trotskismo volta a confluir com a social-democracia pró-imperialista nos aplausos à “revolução popular” da URSS. No final, claro, é a social-democracia que capitaliza o esforço dos trotskistas: que o diga Mandel, cujo congresso registou a quebra de 25% nos efectivos por toda a Europa, com a passagem de dirigentes da LCR francesa para o partido de Mitterrand. Não é difícil prever que o culminar de decénios de esforços da IV Internacional pela “revolução política” vai conduzir mais uns tantos “desiludidos do totalitarismo” até à porta dos PS.

A paixão pelas “vanguardas”

A paixão dos trotskistas pelos “democratas” da Rússia é a mais recente mas não decerto a última numa longa lista. Desde que se convenceu de que a construção do “partido trotskista de vanguarda” não era fácil, a IV Internacional optou por pôr-se ao serviço das “vanguardas potenciais” que iam surgindo em cada país. E se elas têm existido no último meio século! Desde a inesquecível nomeação do marechal Tito da Jugoslávia como membro honorário da IV Internacional pela sua brilhante aplicação do “socialismo autogestionário”, passando pelo “socialismo argelino”, pelo governo de frente ampla no Ceilão, pelos dissidentes checos, até ao Solidarnosc polaco, à “ditadura do proletariado” sandinista e ao “socialismo islâmico” do Irão — poucos escaparam à honra de ser nomeados “vanguardas potenciais do proletariado”. Será agora a vez de leltsin?


Inclusão 10/06/2018