As Três “Sensibilidades” do PCP

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 1991


Primeira Edição: Política Operária  nº 30, Maio-Junho 1991

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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 As declarações de José Luís Judas mostram que os oposicionistas do aparelho sindical do partido, até agora na expectativa, consideram a situação madura para uma ofensiva contra a direcção. E o caos político e ideológico dentro do partido é tão grande que no dia em que se romper o dique disciplinar, a celebrada “unidade partidária” vai desfazer-se como um baralho de cartas.

Quanto a saber se o PCP ficará nas ‘ mãos dos “ortodoxos” ou dos “renovadores” ou será partilhado entre ambos, é assunto que pode apaixonar os militantes e decerto contará para os futuros jogos partidários mas não tem nada a ver com os interesses dos comunistas e da classe operária. Esses há muito passam longe do PCP.

Intelectuais Recuperados

Mais uma revoada de dissidentes (na verdade, bem menor do que esperava a opinião burguesa…) levantou voo depois dos acontecimentos de Moscovo, piando com indignação tardia contra a falta de espírito democrático do PCP.

Estas crises de consciência dos intelectuais e quadros que de há uns a esta parte têm abandonado o partido podem ser muito sinceras mas politicamente não valem nada. Enquanto durou a tendência de radicalização do movimento (nas décadas de 60 e 70), o PCP atraía-os porque lhes oferecia a possibilidade de praticar um progressismo não “extremista”, um “comunismo” que não os obrigava a cortar com a sua ideologia democrática burguesa e até a justificava com argumentos “marxistas”. Tudo isto assente sobre uma base operária compacta e tendo em fundo o colosso da URSS, o que dava um reconfortante sentimento de segurança e proporcionava vias de realização profissional.

Eram vantagens tão impressionantes que bem se podia fechar os olhos ao monolitismo, à esterilidade intelectual, ao sectarismo, às cambalhotas na esteira da União Soviética… Mas quando a onda começou a esvaziar-se, veio o tempo da reflexão e estes intelectuais descobriram que não podiam contemporizar mais com o “stalinismo”; tornou-se-lhes claro que a realização gradual duma maior justiça social só podia vir da social-democracia. Uns entram para o PS, outros ficam-lhe na orla, outros ainda avançam com audácia até ao PSD.

O corte com o “stalinismo” em nome dos valores da democracia burguesa sempre foi um corte pela direita; hoje, feito no momento em que se desvanece o poderio da “grande pátria do socialismo”, é duma hipocrisia transparente. Independentemente das motivações de cada um, trata-se da passagem em tumulto do barco que se afunda, donde já não há nada a esperar, para o barco vizinho da social-democracia.

É caso para os felicitar; ao libertarem-se do rótulo de “comunistas” descobrem finalmente a sua identidade política que lhes estava oculta e desembaraçam o movimento operário da sua presença.

Cunhal, O "Ferrenho"

Numa coisa a opinião burguesa corrente, tanto como o homem da rua, está de acordo com Cunhal: é em considerar o próprio Álvaro Cunhal um comunista ferrenho que “não vira a casaca”. Mesmo desamparado por Moscovo, ele continua a reverenciar o marxismo-leninismo.

“Comunistas ferrenhos” desta estirpe estão a manifestar-se agora um pouco por todo o mundo, como minorias dissidentes dos ex-partidos comunistas, na Grécia, na Itália, em Espanha, ou mesmo mantendo o controlo do aparelho partidário, como é o caso de Portugal e da França.

Isto provoca alguma perplexidade. Afinal Cunhal, tão criticado pela sua fidelidade incondicional à URSS, foi capaz de romper com ela! Será que a seguia apenas por razões de princípio e que, hoje, para manter esses princípios, tem a coragem de se afastar dela?

Esta é pelo menos a opinião que agora se pode ouvir a alguns dirigentes do PS, cheios de “respeito” pela “coerência” de Cunhal. A causa deste respeito não é difícil de entender. Não lhes convém nada que se forme um novo partido (sob a direcção de Judas, por exemplo), que poderia consolidar-se como um pólo socialista à esquerda do PS. Convém-lhes mais que o PCP definhe e se desagregue sob a direcção de Cunhal, afugentando os militantes por pequenos contingentes, que possam ser digeridos gradualmente.

Para nós, que não fazemos cálculos desses, a “coerência” de Álvaro Cunhal é de explicação óbvia. Durante cinquenta anos, ele edificou o PCP como um partido popular democrático de reformas, que recebia da União Soviética a imagem de marca dum anticapitalismo radical que não praticava. Usando o alibi da sua amizade e fidelidade à “pátria do socialismo”, o PCP ficava com as mãos livres para justificar perante os trabalhadores uma política “realista” cada vez mais moderada.

Esta dependência da URSS (não financeira como diziam inimigos venenosos mas política e ideológica) era tão absoluta que Cunhal teve que ir encaixando todas as guinadas cada vez mais alarmantes vindas nos últimos anos de Moscovo. Mas no dia em que um terramoto levou a URSS a renegar explicitamente os sovietes, o socialismo, o anti-imperialismo, e que o seu valor de te e modelo se apagou. Cunhal não vê outra hipótese de sobrevivência senão resistir nas suas trincheiras.

Resistência puramente verbal que já não tem nada por detrás.

Ele, que em 1974 riscou do programa a “ditadura do proletariado” para não causar má impressão ao MFA, torna-se agora arauto do marxismo-leninismo; ele, que conduziu a luta em defesa da reforma agrária por meio de recursos aos tribunais, proclama agora o direito à revolução; ele, que transformou centenas de militantes combativos em múmias, condena os que viram costas ao comunismo.

Coerência? Diríamos antes que é a tacanhez do revisionista incapaz de compreender o destino da marcha em que estava metido.

Os "Refundadores"

Entre a obstinação suicida de Cunhal e a debandada dos convertidos ao PS, parece tomar forma um núcleo de militantes dispostos a encontrar uma saída “positiva” para a crise. Durante anos não quiseram precipitar-se para não se arriscar a cortar-se da base operária, o capital mais precioso do partido que muitos gostariam de receber em herança. Agora acham que chegou a hora de avançar sem se isolar.

Falam na “exaltante renovação da esquerda” e na “refundação” do partido. Na prática, encaram uma operação de rejuvenescimento do PCP (ou da parte que puderem guardar), abandonando o nome de “comunista”, os símbolos, a referência à ex-URSS, grande parte da linguagem classista. E asseguram que não há perigo de perder o seu espaço próprio, dada a incurável reaccionarice do PS que o coloca sempre bastante para a direita do eleitorado tradicional da CDU (nisso têm razão).

Se será viável ou não este projecto de criação dum partido “socialista democrático” à esquerda do PS é questão que falta ver. É muito duvidoso que, em confronto com Cunhal, dirigentes sem tradições da clandestinidade consigam aglutinar uma massa apreciável de militantes. Uma coisa é porém certa: o pretenso novo partido não terá nada a ver com os interesses da esquerda e da classe operária.

Os “refundadores” só poderiam confluir numa nova corrente de esquerda se rompessem com o reformismo “comunista” que têm praticado no PCP. Ora, nenhum deles está disposto a isso. Condenam o chamado “stalinismo” do PCP, o seu unanimismo asfixiante, a sua incapacidade para responder às novas situações, o seu seguidismo cego durante decénios atrás da URSS. E contra essas aberrações, o que propõem? Respostas mais próximas do partido socialista!

Pela nossa parte, como comunistas revolucionários, acompanharemos com atenção o processo de desagregação que o PCP vai sofrer nos próximos anos mas não acreditamos na utilidade de campanhas de aliciamento junto de militantes em crise e em queda para a direita. Acreditamos nas potencialidades do nosso trabalho de propaganda comunista independente, sem concessões ao revisionismo nem à social-democracia. Só sobre essa base poderão reagrupar-se militantes convictos e poderá no futuro vir a surgir em Portugal um partido comunista digno desse nome.


Inclusão 02/10/2018