Foram os Erros que Perderam a Revolução Russa?

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 1992


Primeira Edição: Política Operária nº  33, Jan-Fev 1992

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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 Nem só revisões e renegações produz o eclipse do movimento comunista. Surgem também, ainda que raramente, tentativas de interpretação e superação da crise, na linha do marxismo. Tom Thomas, militante da corrente M-L francesa, editou há alguns meses em volume as suas reflexões, a que deu o título: “A propósito das revoluções do século XX, ou o desvio irlandês”.(1)

O “desvio irlandês” é uma ideia sugestiva que o autor foi buscar a uma carta de Marx, de 1869:

“Pensei durante muito tempo que o regime irlandês seria derrubado pelo ascenso da classe operária da Inglaterra. Hoje estou convencido do contrário: os operários ingleses não farão nada enquanto não se desembaraçarem da Irlanda. É na Irlanda que se deve fazer alavanca”.

Regresso ao ponto de partida

Marx intuía pois a tendência que veio a manifestar-se: a revolução, bloqueada nos países onde as condições económico-sociais estão maduras para o socialismo, abriu caminho onde as condições não estão maduras, nos países atrasados. O nosso século — conclui Thomas — foi preenchido justamente com o “desvio irlandês” do processo revolucionário mundial: as grandes revoluções na Rússia e na China, arrastando uma catadupa de revoluções nacionais anti-imperialistas, em Cuba, Vietname, Argélia, etc.

É verdade que, entretanto, aconteceu o imprevisível: as revoluções, depois de ter degenerado em miseráveis caricaturas sob a égide do capitalismo nacional de bandeira socialista, são reabsorvidas pelo mercado imperialista mundial. Seja como for, conclui Thomas, “o caminho está agora livre porque o capitalismo realizou a sua obra de estabelecer sobre toda a superfície do globo as mesmas relações sociais, pôr as mesmas classes nas mesmas situações e perante os mesmos inimigos. O ‘desvio irlandês’ cumpriu a sua tarefa. Chega a época das revoluções proletárias, embora com algum atraso sobre as previsões. É para ela que nos devemos preparar, voltando-nos para o futuro e deixando que os mortos enterrem os seus mortos”.

É estimulante esta capacidade para encarar o processo histórico no seu movimento global, sem cair nas habituais dúvidas existenciais sobre se a revolução é mesmo inevitável e a ditadura do proletariado é mesmo legítima. Resta, contudo, a questão: porque é que esse gigantesco ciclo revolucionário nos países atrasados fracassou de maneira tão generalizada e foi incapaz de detonar revoluções proletárias socialistas nas metrópoles do capital, como seria a suposição de Marx e, mais tarde, de Lenine, Mao, etc.? Porque terminou nesta obscura agonia e não num salto para uma etapa mais avançada da revolução?

Aqui está a nossa discordância com o autor e o motivo destas notas.

A teoria dos erros

Thomas conhece bem o marxismo. Não tem dúvida de que as relações económico-sociais na Rússia, na China, etc., não estavam de modo algum maduras para a transição para o socialismo. Critica o voluntarismo moralista de Mao e a imprecisão com que este usava os conceitos marxistas.

Mas nem por isso desiste da ideia de que, se as direcções comunistas tivessem sabido conduzir melhor a luta de classes em vez de pôr toda a prioridade na produção, o fracasso dessas revoluções poderia ter sido evitado.

“Ninguém pode dizer — escreve ele — que a revolução (russa) estava condenada em absoluto a ficar nos limites do capitalismo de Estado” (p. 95). “O exemplo chinês provou que o fraco desenvolvimento das forças produtivas não era um obstáculo inteiramente insuperável à transformação das relações sociais num sentido socialista” (p. 9).

O volume consiste assim em grande medida num levantamento dos “erros teóricos” de Staline, de Mao, do próprio Lenine, que teriam originado o desastre. Staline deixou-se dominar pela “teoria das forças produtivas” e pelo fetichismo da propriedade estatal; Lenine herdara da social-democracia alemã a crença nas virtudes do capitalismo de Estado; Mao, apesar de ter avançado com a perspectiva inovadora da revolução cultural, ainda ficou agarrado ao “produtivismo”…

Parece-nos que é necessário escolher: ou o atraso económico dessas sociedades constituía de facto uma barreira intransponível à transição para o socialismo, e nesse caso as políticas dos líderes devem ser examinadas no quadro dessa impossibilidade; ou se acredita que uma linha política “mais correcta” poderia ter evitado a reprodução da burguesia e aberto a passagem ao socialismo, mas neste caso atribuímos à ideologia a capacidade de superar os limites duma formação social. É para esta posição que Thomas se inclina.

Tentando combinar o materialismo com a crença no “primado da consciência operária”, ele não nota que na, própria citação que foi buscar a Engels, em apoio da sua perspectiva, este diz que na acção recíproca entre a super-estrutura e a base económica, “esta leva sempre a melhor em última instância”. E não é isso, afinal, o que acaba de provar o afundamento do chamado “socialismo real”? Se há uma lição a tirar do naufrágio das revoluções deste século, ela é precisamente a da implacável necessidade com que as criações “socialistas” imaginárias foram desmentidas pelos limites da base económico-social.

Determinismo, uma falsa pista

Seguindo a escola maoísta, Thomas explica a actuação de Staline pelo facto de ele estar “dominado pela teoria revisionista das forças produtivas, convicto da existência dum laço mecânico entre forças produtivas e relações de produção”. E como exemplifica o “determinismo primário” de Staline? Com a muito citada fórmula: “Primeiro modificam-se e desenvolvem-se as forças produtivas da sociedade; em seguida, em função e em conformidade com essas modificações, alteram-se as relações de produção entre os homens”. Ora, se há muita coisa a rejeitar em Staline, não vemos como esta possa ser contestada em termos marxistas. Staline limitou-se aqui a enunciar uma das teses fundamentais do materialismo histórico.

Claro, o uso que a direcção stalinista fez dessa tese foi desastroso; mas porque a situação era, em si mesma, desastrosa. Na charada insolúvel em que se encontrava a URSS no final dos anos 20, perdida a esperança numa revolução europeia a curto prazo, era de elementar bom senso reconhecer que a construção do socialismo na URSS era impensável a partir do nível das relações económico-sociais existentes.

Metendo-se a criar a “base técnico-económica” para o socialismo pelos seus métodos de “engenharia social” (industrialização a todo o vapor, planificação ultra- centralizada, colectivização forçada, terror massivo), os stalinistas produziram uma catástrofe de enormes proporções. Mas é preciso reconhecer que na URSS da época não havia alternativa revolucionária a esta opção desesperada. O caminho da revolução proletária estava bloqueado porque o nível das relações económico-sociais só abria passagem ao capitalismo, fosse ele estatal ou privado. A escolha era só essa.

Acreditar que foi a política de Staline que “impediu todo o avanço da luta de classes na URSS após os anos 20” (p. 12) é, quanto a nós, ver o fenómeno de pernas para o ar. A política de Staline exprimiu as novas relações de classes provocadas pelo bloqueamento da revolução. O problema com Staline não foi de erros; foi ele ter sido o executor fiel das exigências do capitalismo de Estado.

Se isto não for admitido, se nos convencermos de que existia um meio para transportar centenas de milhões de camponeses para o socialismo, iremos cair nos aprofundamentos maoístas — superar o atraso das relações de produção através da “consciencialização das massas” e da doutrinação dos quadros; o que pôde parecer à jovem geração marxista dos anos 60 um grande salto em frente ideológico mas foi uma forma idealizada de iludir contradições de classe reais.

Nacionalizações – um fetiche?

Thomas critica Staline porque via na propriedade estatal “a base do nosso regime, tal como a propriedade privada é a base do capitalismo”; isto seria reduzir o capitalismo à propriedade privada e esta à sua expressão jurídica. Também Lenine “ficou prisioneiro de certas concepções gravemente erradas da social-democracia alemã quanto à teoria do capitalismo de Estado” (p. 45). Contrária seria a posição de Marx, para quem “a propriedade estatal era vista apenas como um meio transitório para atingir o objectivo da apropriação social”.

Isto é esquecer que Marx, olhando o movimento numa perspectiva histórica a largo prazo, mencionava naturalmente as nacionalizações como uma simples etapa na transição para o comunismo. Diferente teve que ser a perspectiva dos que se encontraram envolvidos no processo de derrubamento da burguesia. Nesse momento, passar ou não os bens dos capitalistas para a propriedade do Estado marcava a linha divisória entre revolução e contra-revolução.

Sem dúvida, Staline, como edificador fanático do capitalismo de Estado, via na propriedade estatal uma espécie de talismã para “socializar” as relações sociais e como um álibi para negar a formação de uma nova burguesia. Mas aqui, mais uma vez, o que está mal não é a fórmula marxista que Staline invoca mas a realidade que se esconde por detrás dessa fórmula. Pretendendo encontrar na política de nacionalizações a pista dum desvio, Thomas introduziu, mesmo que não o desejasse, uma atitude ambígua quanto à expropriação da propriedade burguesa, com o que se mantêm, aliás, na linha da “democracia popular” chinesa.

E, de facto, em que consistiria, segundo Thomas, a via da “consciencialização das massas” na URSS de 1929? Justamente na continuação da NEP, que ele defende como “instrumento da aliança operário-camponesa” que não deveria ser confundido com um mero recuo (p. 45). Ou seja, na prática, a alternativa ao stalinismo seria a continuação das concessões à pequena burguesia proposta por Bukarine. Thomas não o diz explicitamente, mas é o que se deduz das suas opiniões. Assim, quando descemos da estratosfera do “primado da consciência” ao mundo da política real, encontramos, como via de “transição para o socialismo”, uma maior contemporização com a burguesia.

Lenine emparedado

Embora com muito maior reserva, T. Thomas procura os erros de Lenine que teriam contribuído para a perda da revolução. E aqui, mais uma vez, tenta combinar posições que se excluem. Ele reconhece que, logo após a revolução, tudo teve que ser subordinado à guerra e à luta contra o caos económico e a fome e isto implicava o “terror vermelho”, o empolamento do aparelho administrativo, concessões aos quadros. “Só palradores podem imaginar que o Estado do proletariado possa edificar-se idealmente a partir do nada”. Mas… Lenine não teria descoberto a forma de fazer intervir as massas em todas as frentes, por não ter compreendido que “o fraco desenvolvimento das forças produtivas não era um obstáculo inteiramente insuperável à transformação das relações sociais no sentido do socialismo”.

Isto equivale na prática a anular o que se disse antes sobre a catástrofe que se abateu sobre a Rússia após a revolução, sobre a incapacidade dum proletariado diminuto e dizimado exercer a direcção num oceano camponês, sobre a ausência da revolução socialista na Europa, que se tinha como certa. Os comunistas russos, emparedados, recorreram às medidas de excepção. A adopção do capitalismo de Estado, com todas as taras que Lenine lhe aponta, foi o último recurso para o regime se entrincheirar e ganhar tempo.

Uma vez mais, estamos perante erros ou perante uma impossibilidade histórica? Vem a propósito citar Engels:

“O pior que pode acontecer ao chefe dum partido extremista é ver-se obrigado a ocupar o poder numa altura em que o movimento ainda não está maduro para estabelecer o domínio da classe que representa e para a aplicação das medidas que este domínio requer. (…) Depara então, inevitavelmente, com um dilema insolúvel: o que pode fazer contradiz toda a sua acção anterior, os seus princípios e os interesses imediatos do seu partido; mas o que deve fazer é irrealizável” (A guerra dos camponeses na Alemanha).

A “aproximação chinesa”

Reparo semelhante poderíamos fazer às críticas de Thomas ao comportamento de Mao durante a revolução cultural chinesa: lendo chegado mais longe do que os seus antecessores na compreensão de que era preciso combater a nova burguesia dentro do regime e na valorização da consciência das massas, Mao teria contudo vacilado em levar até ao fim a luta de classes durante a revolução cultural. Mais uma vez, um erro… Mas isto é escamotear o facto de que a revolução cultural só abria como opções, ou a desagregação do poder central de Estado ou o seu reforço por meios ditatoriais, e em ambos os casos a repressão das massas pelo exército. Só por puro idealismo se pode acreditar que a China dos anos 60-70 tenha estado à beira de uma revolução socialista.

A ideia de que Mao se tenha aproximado mais do que Staline e mesmo Lenine (!) da solução do problema é um mito criado pela escola maoísta e ao qual Thomas parece dar crédito, numa linha de pensamento que podemos chamar de neomaoísta. Pela nossa parte, diríamos que, se Lenine personifica o momento mais alto da revolução do século XX, a consciência lúcida de que é preciso salvar o que for possível do poder proletário, cedendo no terreno do capitalismo de Estado, da NEP, da burocracia, na expectativa de que chegue a esperada revolução proletária nos centros imperialistas; se, com Staline, perdida essa esperança, perdidos todos os vestígios de democracia proletária, já só resta o “avanço a todo o vapor para o socialismo”, ou seja, a edificação implacável do capitalismo de Estado, em que toda a inteligência marxista já está excluída; com Mao encontramos a tentativa de fugir ao destino da URSS através dos “correctivos” da “democracia nova”, que consistem em concessões, justificadas pelo carácter nacional-camponês da revolução chinesa mas que, ao ser embelezadas como “uma nova etapa do marxismo”, se tornam uma fonte de oportunismo.

A culpa da Europa

A crença piedosa de que a revolução proletária poderia ter tido êxito se a política dos comunistas tivesse sido mais correcta manifesta-se também com frequência na ideia de que “se os partidos comunistas europeus tivessem cumprido o seu dever poderia ter rebentado a revolução na Europa”. Embora Thomas não discuta o tema, ele evoca-o quando escreve que “a revolução russa teria podido, e quase o conseguiu, levar a revolução à Europa e com a Europa avançar para o comunismo, como Lenine pensou” (p. 98). Mas este véu idealista também deve ser rejeitado, por muito tradicional que seja nas nossas fileiras.

É hoje claro que Lenine errou ao acreditar, em 1917, que a guerra imperialista tinha “amadurecido manifestamente” a revolução proletária internacional e ia desencadear “revoluções proletárias socialistas em cadeia” “num futuro muito próximo” (O Estado e a Revolução). O amadurecimento revolucionário que ele julgava observar na Europa não existia. Tratava-se dum erro de perspectiva, compreensível face ao caos provocado pelo primeiro massacre mundial.

Consequentemente, a revolução europeia não podia acudir em socorro da República dos sovietes. A social-democracia pôde fazer a sua obra e os partidos comunistas, perdida a ilusão de situações revolucionárias iminentes, descambaram no oportunismo, coberto com um parasitário apoio à URSS.

Também aqui, o carácter generalizado do fenómeno não deixa dúvida de que estamos, não perante “erros” mas perante uma situação insuficientemente amadurecida para a revolução. A pressão dos regimes de capitalismo de Estado, mesmo no seu ponto mais alto, na década 50, foi insuficiente para provocar uma ruptura na economia imperialista e esta pôde passar ao contra-ataque, com o desenlace que agora observamos.

Que responder aos social-democratas?

 Thomas parece pensar que se não explicarmos o fracasso das revoluções por erros cometidos pelos seus dirigentes, então seremos levados a proibir ao proletariado que se lance na revolução enquanto as condições não estiverem maduras, encontraremos desculpas objectivas para todos os desvios e traições e acabaremos por dar razão aos social-democratas quando alegam que não se devia ter tomado o poder porque as condições não estavam maduras”, “quis-se saltar etapas”, “foi blanquismo”, etc.

  Mas não há razão para este embaraço. Diremos, com Thomas, que as revoluções não se decretam simplesmente surgem; que o marxista não tem outra alternativa senão apoiar a revolução que surge e levá-la o mais longe possível; que não se pode ficar à espera que as condições para o socialismo estejam maduras, visto que as massas entram em movimento sem perguntar se as forças produtivas já estão desenvolvidas para o socialismo… Mas diremos também que, apesar de tudo isto, não existe nenhuma garantia de que a revolução não esteja condenada à partida; ou porque surgiu num país não maduro para o socialismo, ou porque fica isolada e degenera, ou porque é esmagada pela força…

Isto não põe nada em causa. Significa apenas cada revolução depende dum conjunto de imponderáveis que nenhuma direcção comunista, por mais apta, pode prever ou controlar. Significa também que o processo da revolução socialista é muito mais vasto, demorado, diversificado, do que podia parecer aos teóricos que perspectivavam à distância, situados no início da era revolucionária.

Esse processo, que poderá abarcar ainda mais um século (ou dois?), inclui revoluções prematuras, parcelares, defeituosas, e por isso condenadas à derrota. Situações semelhantes aquela a que assistimos de certa forma impotentes durante este século poderão repetir-se sob outras formas no futuro.

Acaso a consciência disto tomará menos imperioso o empenhamento dos comunistas nessas revoluções? De maneira nenhuma. A social-democracia continuará sempre a dizer que “não se devia ter pegado em armas”, “foi uma aventura com custos humanos terríveis”, “devia-se explorar as possibilidades de reformas parciais do sistema”; é o seu papel. Os comunistas continuarão a tomar a cabeça dos movimentos revolucionários proletários, procurando, por mais adversas que sejam as condições, levá-los o mais longe possível, para “passar o testemunho” à próxima revolução.


Notas de rodapé:

(1) Tom Thomas, Du capitalisme au communisme, tome II: A propos des révolutions du XXème siècle ou le détour irlandais, Paris, 1991. Deste autor, publicámos já na nossa revista “Os robots e a classe operária” (PO nº 18, Janeiro/Fevereiro 1989). (retornar ao texto)

Inclusão 10/06/2018