Não Confundir a Agonia com um Parto

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 1992


Primeira Edição: Política Operária nº 33 Jan-Fev 1992

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Álvaro Cunhal condena a “democratização” da ex-URSS como golpismo de direita, não vacila perante a ofensiva dos perestroicos nacionais, diz que o comunismo não morre, proclama fidelidade ao marxismo-leninismo — será que ainda permanecem no interior do PCP potencialidades de esquerda que ignorávamos? Afinal, não é aí que se agrupa o que resta do movimento operário organizado e duma corrente de ideias nascida com a revolução de 1917? E se no PCP se manifestam forças de resistência de esquerda, não seria cegueira recusar, em nome de purismos ideológicos, a nossa solidariedade a essa última trincheira anti- imperialista, no momento em que a contra-revolução triunfa em toda a linha?

Ideias deste tipo, que surgem hoje por vezes em membros do PCP e mesmo em antigos “esquerdistas”, revelam que neles o desejo de resistir à direita já chegou à beira do desespero.

Milagre impossível

Efectivamente, só por desespero se pode acreditar que reformistas profissionais, convictos, pudessem tornar-se na última trincheira contra a avalancha direitista, cuja marcha eles próprios libertaram. Durante dezenas de anos, os dirigentes do PCP subordinaram o movimento operário aos interesses da burguesia democrática, propagandearam o regime opressivo e corrupto da URSS como “socialismo avançado”, combateram o “perigo esquerdista”, promoveram as tendências mais oportunistas, namoraram a social-democracia — lutaram contra a revolução, por eles vista como um perigo.

Só por grande milagre, ao fim de tão longa carreira recuperariam as convicções comunistas. E se fosse esse o caso, qual seria a sua primeira reacção? Logicamente, seria repudiar perante os trabalhadores a sua trajectória passada. Ora, em vez disso, eles glorificam-se pela “fidelidade ao passado” — que é justamente a fidelidade a decénios de oportunismo!

Saudades do bom tempo

Mas não é certo que os “ortodoxos” condenam a escalada capitalista na URSS e a corrupção social-democrata dos seus “renovadores”? É verdade. Só que isso não tem o sinal de esquerda que alguns lhe querem encontrar.

A súbita descoberta de que a URSS “já não é socialista” não convence. Até ao último minuto, Álvaro Cunhal rejeitou como “provocação” os factos incontestáveis que se acumulavam sobre o carácter burguês da classe dirigente soviética e solidarizou-se com todos os actos reaccionários desta. Só agora que a URSS se desagrega e o PCUS desaparece, se lhe “abrem os olhos”. Temos que perguntar: antes não via, ou não lhe interessava ver, porque a URSS ainda parecia poderosa?

Na verdade, a actual “luta de princípios” de Cunhal, Marchais, etc., nada mais é do que a resistência convulsiva dos revisionistas “ortodoxos” que ainda julgam possível prolongar os “bons anos 70”. Não defendem princípios, têm saudades do tempo em que eram uma força temida à escala mundial.

Por um reflexo semelhante, uns tantos saudosistas reconstituíram solenemente em Moscovo, há semanas, o partido “leninista-bolchevique”. Claro, não se esqueceram de proclamar fidelidade ao marxismo-leninismo; mas também disseram que o seu projecto é voltar aos bons tempos da estabilidade brejneviana. Belo ideal, a esperança num retorno ao sistema dos aparatchiks…

A lógica dos “ortodoxos” é uma lógica de verdadeiros “dinossauros”, incapazes de compreender que o capitalismo de Estado de fachada socialista cumpriu a sua missão histórica: preparou as condições económicas e sociais para a privatização e agora já não há milagre que o possa reanimar.

Os restauradores

Dizem alguns incondicionais do PCP que a presente campanha contra os liberais veio reavivar o debate no movimento operário, revitalizar a assimilação do marxismo… Pura conversa.

Se fosse assim, porque é que a expulsão do grupo de Barros Moura/Judas — como antes a de Zita, Vital Moreira, do “grupo dos seis”, etc. —, não deu lugar a uma luta política clara, que mostrasse tendências em confronto — nas questões de política interna ou internacional, na frente sindical ou parlamentar, como no terreno ideológico?

A polémica das cisões do PCP gira sempre à volta do “centralismo democrático”, ou seja, do descontentamento dos liberais face às restrições férreas impostas ao debate interno. Os grupos não são expulsos como consequência duma luta política interna que tome clara a sua tendência social-democrata e a sua oposição ao comunismo. São expulsos porque desafiam a autoridade da direcção do partido.

Na verdade, a grande opção não mencionada, mas que está subjacente aos conflitos surgidos no último decénio, é só uma: o partido ainda é necessário para promover a política reformista junto do movimento operário, ou já se tomou um estorvo à estratégia da colaboração de classes? Os “ortodoxos” continuam a achar-se indispensáveis porque não confiam no PS; os liberais pensam que o PCP já cumpriu a sua função histórica, que está velho e que deve agora fazer um último sacrifício, dissolvendo-se a bem da “unidade das forças de esquerda”, a grande meta que aprenderam com Cunhal… A isto se reduz a “luta de princípios”.

Para militantes crédulos de base, isto pode parecer uma linha de demarcação vital. Mas para os interesses da classe operária, é uma luta sem interesse. Depois de ter traído repetidamente o movimento operário e de ter matado nas suas fileiras todos os germes de independência política anticapitalista, o PCP entrou em decomposição. As lutas que aí se travam são apenas entre a vanguarda revisionista, que considera chegado o momento da liquidação, e a ala conservadora que julga poder prolongar o jogo reformista nas velhas formas. Mas isto significa simplesmente que Cunhal não está à esquerda, está atrasado.

Última barreira?

Os militantes que receiam que a dissolução dos “ortodoxos” faça desaparecer a última barreira de resistência à direita no nosso país revelam sem dúvida boas intenções políticas, mas também uma séria intoxicação ideológica.

Trinta anos de combate internacional ao revisionismo demonstraram, fossem quais fossem as suas limitações ou distorções, que este é um movimento parasitário, regressivo, especializado em usar o movimento operário como servo do capitalismo de Estado e força de choque da democracia pequeno-burguesa. O crescimento do revisionismo traduz-se na desorganização, na paralisia e na destruição metódica das forças do movimento operário, e, ao mesmo tempo, no apodrecimento do próprio aparelho revisionista.

Veja-se o PCUS: irrompe do cadáver do velho partido fundado por Lenine um leque variadíssimo de tendências — social-democratas, liberais, nacionalistas, brejnevianos, fascistas —, mas não surge uma corrente comunista. Porque, pura e simplesmente, há muito tinha deixado de ter lugar lá dentro. No PCP, a corrupção não é tão avançada, por não ser um partido de governo, mas o processo é basicamente o mesmo.

Se os factos são estes, o que significa tomar partido pelos “ortodoxos” como última barreira à social-democracia, à direita e ao imperialismo? Significa que se procura salvar uma pseudotrincheira reformista porque se vacila perante a tarefa de criar um comunista, revolucionária, real.

Defendemos completa independência face aos dois campos em luta no PCP e uma acção sem compromissos! Contra ambos. Não nos rebaixamos a apoiar “os melhores entre os piores”. Só dum combate anti-revisionista sem concessões poderá sair clareza marxista, um impulse revolucionário renovado e espaço para uma nova corrente comunista, em bases totalmente novas. E essa é a única esperança no futuro, real e não ilusória.


Inclusão 02/10/2018