Aritmética

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 1993


Primeira Edição: Política Operária nº 42, Nov-Dez 1993

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


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Que tal comparar as desigualdades sociais neste rude outono do cavaquismo com as do salazarismo? Por mim, não tenho dúvida de que é maior agora o abismo entre pobres e ricos, mais brutal e descarado o espezinhamento dos de baixo. Se nos anos sessenta se mandassem para casa fornadas de assalariados como agora, se as exibições de riqueza e os roubos fossem tão insolentes como as dos actuais cavalheiros de sucesso, estou em crer que nem o medo da Pide conseguiria conter a indignação.

Mas, dir-me-ão, é um facto que os protestos do povo mal se ouvem, e agora já não é por medo ao fascismo.

Será porque os cidadios confiam na capacidade da democracia corrigir as injustiças? Histórias! Perguntem a qualquer pobre diabo se espera mais igualdade pelas eleições e ele rir-vos-á na cara. Com razão, aliás. A democracia é para favorecer a rotação dos tachos e a agilidade dos negócios, não tem nada a ver com beneficência. A lei da vida é alguns viverem à custa de muitos. Os direitos democráticos não se destinam a evitá-lo mas a legitimar e regulamentar o canibalismo. Se a imprensa livre e as eleições permitissem mudar a sociedade, há muito que tinham sido abolidas.

★★★

Então que é feito das aspirações de justiça social que há trinta anos levantavam tantas vontades contra o fascismo? Por onde se sumiu a ousadia dos jovens que arriscavam a liberdade, por vezes a vida, para desafiar um regime odioso?

A pequena burguesia faz a diferença. Antes, uma boa parte das chamadas “classes médias” sufocava sob a estreiteza do mercado, a organização corporativa, a placa de chumbo da censura, os regulamentos absurdos, a estagnação do regime salazarista e, como se não fosse bastante, os medos da guerra. Daí que se voltassem compassivos para os sofrimentos dos jornaleiros alentejanos e rodeassem duma aura romântica os proletas da Lisnave. Mesmo sem o saber, procuravam o apoio da rua para a luta contra um regime que não lhes prometia nenhum futuro.

Agora, porém, tudo está em movimento, tudo é livre, as oportunidades de ascensão não param. Esperneiam aflitos os independentes que tiveram o azar de ser apanhados pela máquina trituradora da modernização - agricultores, artesãos - mas quem os ouve, no meio da eufórica agitação das novas classes médias lançadas à conquista dos seus próprios “níveis europeus”?

Como há-de esta gente feliz emocionar-se com o coro de lamentos dos despedidos, com os recibos verdes de trinta contos, com os grevistas enxotados pela polícia? Ainda há dias vi no Chiado um desfile de macilentos desempregados e operárias mães de família gritando contra o “Cavaco ladrão” passar no meio da indiferença glacial do publico das esplanadas. O pequeno burguês tornou-se maduro: “Por favor, não nos venham outra vez com folhetins sociais!”

O cavaquismo tem a sua base social. Por isso, só por isso, ouve-se hoje menos a voz da miséria do que há trinta anos. Meio milhão de “novos europeus” contentes da vida, sentados em cima de três milhões de pobres, são mais do que suficientes para lhes abafar os protestos. Pode haver quem estranhe esta inversão de valores numéricos — mas quem disse que as contas da Democracia respeitam a artimética?


Observação: Tiro ao Alvo - Coluna de FMR no jornal Em Marcha e no jornal Política Operária

Inclusão 03/02/2019