Política Operária, um Nome Desactualizado?

Francisco Martins Rodrigues

Abril de 1994


Primeira Edição: Política Operária, nº 44, Mar/Abr 1994

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Já poucos acreditam que a renovação da sociedade possa sair da iniciativa do operariado, cada vez mais apoucado face ao saber tecnológico, aos novos meios de comunicação e à multidão das novas classes médias. Será que novas alternativas despontam?

“Política Operária”, porquê? Já não é o primeiro leitor que nos pergunta se não deveríamos rebaptizar a nossa revista. “O nome Política Operária – escreveu um desses nossos amigos – talvez esteja ultrapassado. Hoje os tempos são outros e a chamada classe operária não está em extinção mas está a desaparecer de uma forma relativamente acelerada”. Note-se que este leitor é operário: não tem, à partida, motivo para menosprezar a sua classe. Outros têm-nos observado que o marxismo interessa a todos os anticapitalistas, independentemente da sua situação social – e nesse caso porquê repelir possíveis apoiantes agitando a bandeira exclusiva do operariado? “A política do orgulhosamente sós, do sectarismo obreirista, só tem trazido derrotas aos operários”, censura um outro companheiro.

Quando começámos, há oito anos, já sabíamos que esta associação de palavras, “Política Operária”, soava estranha aos ouvidos de quase todos, mesmo na esquerda, e iria limitar seriamente a difusão da revista. Muitas pessoas, só de ler o cabeçalho nas bancas, perdem a vontade de lhe pegar. Parece uma fantasia obreirista do PREC, uma recaída nas “utopias ideológicas” de outros tempos, descabida, mesmo um bocado ridícula: quem acredita que a renovação da sociedade possa sair da iniciativa do operariado, cada vez mais apoucado face ao saber tecnológico, aos novos meios de comunicação e à multidão das novas classes médias? Aos próprios operários, nestes tempos de humilhação, já lhes chega o horário de trabalho para se encontrarem cara a cara com a sua condição de derrotados crónicos. Fora da fábrica, preferem pensar noutras coisas e ser como as pessoas “normais”. Nem acreditam que a melhoria da sua situação tenha algo a ver com doutrinações políticas.

Mesmo assim, não sentimos vontade de mudar este nome tão pouco vendável. É verdade, como todos dizem, que a classe operária está de rastos e que outros sectores se mostram bem mais activos e esclarecidos. Mas quando se tem como objectivo não apenas “conquistar um pouco mais de justiça social” e sim acumular forças para o derrube da burguesia, por muito distante que se apresente, é fácil ver que só os proletários, acorrentados ao trabalho assalariado e à produção de mais-valia, têm potencialidades para pôr em causa a organização capitalista da sociedade.

As outras classes e camadas podem ter muitas vantagens sobre eles, mas sofrem dum senão: tendem inelutavelmente a reproduzir o mesmo sistema de relações, baseadas na compra-venda da força de trabalho. Por isso, acreditamos que o ponto de partida da revolução está sempre em diferenciar o proletariado face ao resto do povo, para que ele possa olhar o mundo com os seus próprios olhos e não pelos olhos dos outros.

Não é uma tarefa fácil, porque o funcionamento normal do sistema tende a manter o proletariado como um apêndice, usado por um ou outro sector da burguesia ao serviço dos seus conflitos internos. Quantas vezes os alertas contra o “obreirismo” e o “isolamento da classe operária”, pela “necessidade de conquistar aliados”, ocultam apenas o temor a essa diferenciação e a esse corte!

Mas é por aí que tudo começa. Uma longa experiência ensinou-nos que o antagonismo operário à burguesia no poder, para ser eficaz, precisa de ser completado com uma oposição declarada à burguesia reformista, “amiga dos pobres”, tipo PCP, e, inclusive, com uma demarcação firme face aos operários que tentam salvar-se dentro do sistema. É claro que nada disto acarreta popularidade. Mas parece-nos um trabalho prévio indispensável.

Não é aqui o lugar para discutir a famosa “extinção” da classe operária, tema que contamos abordar noutra altura com o desenvolvimento que merece. Mas gostaríamos de observar aos vulgarizadores apressados que a inegável tendência do capitalismo para substituir incessantemente o homem pela máquina, o trabalho vivo pelo trabalho morto, se choca com forças de sentido contrário. Foi assim que as inovações tecnológicas das últimas décadas, em vez de inundarem o mundo com robôs, como alguns previam, acarretaram a formação de novos contingentes de proletários miseráveis, aptos a manipular as novas máquinas. Aquilo a que, com miopia eurocêntrica, se chama tantas vezes de “extinção do proletariado” consiste na sua exportação para a Coreia, Filipinas, Taiwan, Bangladesh, e na absorção pelas multinacionais da mão-de-obra barata dos imigrantes e do Leste europeu.

À escala mundial, que é a verdadeira escala da revolução, a classe operária continua a crescer. A redução do seu peso nos centros imperialistas é fraco argumento para se deduzir que “o tempo do proletariado passou”. Na realidade, o que está a emergir da actual crise é um proletariado mais disseminado e menos homogéneo, mas também mais brutalmente explorado e mais internacionalizado. Aquilo que alguns tomam pelo fim da classe operária é a sua reorganização e a entrada numa etapa nova da sua história, cheia de incógnitas. Ainda é cedo para saber do que este novo proletariado será capaz, mas não vemos nenhum motivo para pôr em causa a perspectiva marxista da luta pela revolução internacional dos produtores assalariados e pela ditadura do proletariado — projecto desacreditado pelos falsos socialismos de Leste, mas que resume o programa dos comunistas. Pelo menos até ao dia em que alguém seja capaz de propor seriamente um outro modelo de organização social capaz de desmantelar a máquina capitalista. Até agora, o que temos visto como “alternativas” à ditadura do proletariado são fantasias poético-ecológicas, vulgares evasões à crueza da luta de classes, piruetas reformistas que ninguém toma a sério, nem os próprios proponentes.

Porquê esta pressa em dar por encerrado o papel do proletariado, se ele continua a ser, mesmo nos países centrais, a maior classe social? O que provoca esta ilusão de óptica de que as sociedades modernas seriam constituídas por “novos sectores” alheios ao velho conflito proletariado-burguesia?

A classe operária parece desaparecer porque se tornou politicamente transparente. Eles continuam lá, nas fábricas, nas obras, mas é como se ninguém os visse. Em lugar das velhas concentrações de operários especializados e organizados apareceram operários jovens, indiferenciados, precários, dispersos, mulheres sobretudo, imigrantes, sem experiência de organização e de luta, sem história, tão amesquinhados que se tornam transparentes aos seus próprios olhos; e como vivem de joelhos, ninguém dá pela sua existência. E como não fazem ouvir a sua voz e não impõem a sua passada, deixam aberto um espaço ilimitado a toda a espécie de alienaçöes da pequena burguesia.

No caso português, a descoberta da “extinção” do proletariado tem ainda uma outra raiz: ela exprime o ressentimento da esquerda pequeno-burguesa por se ter deixado embalar numa confiança ingénua na força da classe operária, para vir a descobrir em 75, depois de vários sustos, que esta não passava de um “tigre de papel”, impotente para impedir o triunfo da direita. Do endeusamento passou-se à desilusão.

De resto, se olharmos os últimos trinta anos, vemos que se passou de uma época em que as classes médias precisavam do impulso da rua para conseguir mudanças no regime político, para um período em que a consolidação da sua posição só se pode fazer à custa da submissão da rua. Por conseguinte, a pequena burguesia democrática trocou o romantismo operário dos anos 60-70 pela eliminação do operário. Assim continuará até ao dia em que as contradições acumuladas do regime lhe tornem a vida impossível e lhe façam descobrir de novo o “amor pelos pobres”.

O problema é, pois, em última análise, o mesmo de sempre: quem pretende obter reformas do sistema, vê os operários apenas como auxiliares, como “força de choque”, e mesmo isso só na medida em que não assustem e retraiam os aliados moderados; mas quem quer trabalhar pela revolução, tem que se voltar permanentemente para a classe operária, dar tudo por tudo pela sua independência ideológica e política, bater-se pela sua hegemonia.

Com o nome de “Política Operária” pretendemos exprimir o empenho que pomos na luta pelo desmantelamento do capitalismo, pela supressão do criminoso regime da propriedade privada e do trabalho assalariado. Contamos que mais e mais leitores e amigos nos apoiem nesta difícil caminhada.


Inclusão 13/09/2018