UDP: Novas Desgraças

Francisco Martins Rodrigues

Fevereiro de 1995


Primeira Edição: Política Operária nº 48, Jan-Fev 1995

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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A transformação da UDP em “partido socialista’’ esteve no centro do congresso que se reuniu em 4-5 de Fevereiro. Manobra arriscada que lhe pode fazer perder, não a estratégia revolucionária, de que há muito abdicou, mas a escassa base popular que ainda conserva.

A baixíssima votação obtida pela UDP nas eleições europeias do ano passado causou, como não podia deixar de ser, forte abalo interno, depois de tantas esperanças terem sido postas na linguagem “solidária” moderada e nos acordos com o PC e o PS.

Primeira consequência: a passagem a uma posição mais apagada de Eduardo Pires, criticado por demasiada dependência face ao PCP, e a adopção de algumas atitudes mais radicais nas acções populares em curso. Isto contudo não evitou que um núcleo de militantes tomasse a iniciativa de reclamar um congresso de “refundação” da organização como única via para impedir a sua “morte política”. Não tendo sido atendidos, abandonaram as fileiras, divulgando um texto (assinado por António Queirós, Maria Fernanda Costa, Manuel Rodrigues, Eduardo Costa e alguns outros), no qual se afirma que os “desastrosos resultados eleitorais” e a “perda de identidade própria” terão levado a UDP ao “descalabro”.

Num outro documento, este assinado apenas por António Queirós, o quadro traçado é ainda mais sombrio: a UDP “perdeu a sua base popular”, está “em estado comatoso” e “reduzida a um grupo sem expressão social”, é um “grupo residual”. “Estes seis anos de acordos, principalmente com o PCP e em menor escala com o PS, nos sindicatos, nas autarquias e no parlamento, não deram os resultados políticos esperados”. Donde conclui que os males da UDP não eram fruto do seu “tutor”, entretanto dissolvido, o Partido Comunista Reconstruído. “Exorcizado o fantasma do PCR como causa de todos os males da UDP, verificou-se afinal que sem o PCR a UDP continua a cair a pique”. A origem da crise estaria, em sua opinião, na perda de autonomia, na diluição política e no abandono da acção revolucionária de massas.

Troca por Troca

Diga-se entretanto que os elementos demissionários não põem em causa a política “ampla” mas a forma como tem sido aplicada, que consideram pouco hábil. A ideia de que o “realismo político” consiste em parasitar o PC e o PS, indo buscar ao primeiro o deputado e ao segundo diversas posições institucionais, é hoje aceite com naturalidade pelo conjunto da organização.

Num resumo eloquente, os autores da carta que vimos comentando escrevem: “Desde o princípio dos anos 80 o PCP alterou a sua táctica face à UDP, oferecendo-nos o lugar de deputado em troca do símbolo e da sigla. Dez anos depois aceitou-se a proposta. Mas não só. Para além de ter abdicado da sigla e do símbolo, abdicou-se dum programa próprio (“e isso o PCP nem sequer o exigiu”, observa Queirós, com tocante franqueza).

O que se critica à direcção é não saber regatear, como no caso do apoio dado a J. Luís Judas durante o congresso da CGTP, quando, afinal, “logo a seguir os nossos “aliados” “democráticos e independentes” viravam-nos as costas, fechavam acordo com o PCP, e a UDP ficava isolada, sem força para levar o seu representante à comissão executiva da CGTP”.

Acrescentemos que, talvez para demonstrar como se pode fazer render uma política de acordos, o mesmo António Queirós participou recentemente nos Estados Gerais do PS, em Coimbra, onde foi recebido de braços abertos e, segundo alguns, tratado como “estrela”.

Voz Discordante

Rejeitada a proposta da “refundação” e afastados os dissidentes, o congresso vai, de certa forma, recuperar a sugestão destes, fazendo da UDP um “partido socialista”, talvez para lhe dar maior peso nas negociações com os dois grandes partidos da “esquerda”.

É uma mudança de que discorda, por exemplo, Licínio Sousa, membro do conselho nacional, antigo operário vidreiro, com quem falámos na Marinha Grande: “A UDP proclamar-se socialista é atirar fora uma data de gente válida que ainda lá está”. Em sua opinião a UDP devia manter o carácter de frente e a abertura a activistas de diversas sensibilidades como no início, e mesmo consagrar o direito de tendência.

— Haverá uma tendência de diluição da UDP no PC? — perguntámos. “Não creio. Houve, nas relações com o PC, uma espécie de amnistia mútua: todos têm que reconhecer que erraram, ninguém tem autoridade para atirar pedras aos outros, etc. Entretanto, vai- -se aproveitando a colaboração para ir roubando militantes uns aos outros”.

Para Licínio Sousa, a pretensão de que nos sindicatos e comissões unitárias os activistas da UDP assumam o objectivo socialista só irá dificultar o seu trabalho.

“O socialismo não se defende com atitudes dessas. Havia que fazer um balanço exigente a tudo o que aconteceu, às causas da queda das sociedades do Leste, confirmar o que é e o que não é socialismo, demarcar águas com o oportunismo, tudo sem pressas, com ponderação”.

“Para mim, o principal era que os dirigentes parassem, reconhecessem os erros, o mal que fizeram. Os operários já pagaram a sua parte, com as conquistas que perderam, a defesa das liberdades que falhou, etc. Mas os dirigentes, em vez de prestar contas, vão de jogada em jogada”.

Apagar as Pegadas

Para nós, que abandonámos o PCR e a UDP há dez anos, o sentido da evolução parece claro. O núcleo central da organização (e não falamos apenas dos dirigentes), apavorado com a perspectiva do isolamento em fase de refluxo, cedeu à pressão avassaladora para a liquidação do partido comunista mas tentou cobrir-se com uma pequena batota: primeiro, o PCR passou a “associação de comunistas”; depois, estes “comunistas” passaram-se em massa para a UDP; e agora esta passa de frente democrático-popular a “partido socialista”. Assim se fez a passagem po» etapas e sem dor da plataforma comunista, considerada insustentável e “desactualizada”, à social-democracia.

Se esta manobra dará ou não dividendos eleitorais, é questão ainda para ver. Uma coisa é porém certa: a UDP corta os últimos laços que poderiam ligá-la ao seu passado popular revolucionário.


Inclusão 06/09/2018