Observações “Impressionistas” a um Artigo “Científico”

Francisco Martins Rodrigues

Junho de 1997


Primeira Edição:  Política Operária nº 60, Mai-Jun 1997

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


Ângelo Novo zurziu-me forte e feio na última P.O. (“Polémicas em torno do imperialismo”); não vejo, porém, que o tom algo suficiente e desabrido do seu artigo consiga suprir fraquezas manifestas da argumentação.

Para não abusar da paciência dos leitores, vou directo ao ponto. Novo deduz do fracasso das revoluções deste século que as esperanças postas nos “elos fracos do imperialismo” eram ilusórias, pelo que defende um regresso à perspectiva marxista pura – a revolução proletária conduzida a partir dos países de capitalismo avançado. Eu digo que essa expectativa tenderia a aproximar-nos do reformismo. Para melhor se localizarem os pontos em divergência, subdividi esta resposta em tópicos.

Os Pobres de Joelhos

Ângelo Novo reage com enfado à hipótese posta no meu artigo “O erro de Lenine” (P.O. 58) de que podemos estar no limiar de um novo ciclo de revoluções anti-imperialistas e que, mesmo que estas repitam a incapacidade da passagem ao socialismo evidenciada pela Rússia, China, etc., “tornarão mais insustentável a sobrevivência dos centros do poder mundial e criarão condições para melhores tentativas futuras”. Passo a comentar as suas objecções.

Sintomas imaginários? – Pergunta Novo onde vejo eu os sintomas de convulsões revolucionárias no terceiro mundo, já que ele, pela sua parte, só divisa “fenómenos tribais, bandoleirismo e caos social”… além de guerrilhas corrompidas pelo tráfico de droga.

Eu desconfiaria de tais generalizações. Nos anos 30, a notícia que chegava ao Ocidente acerca do exército vermelho chinês era que se tratava de “bandos de salteadores”. Pode ser que as guerrilhas sob direcção revolucionária que persistem na Colômbia, Peru, México, Índia, Filipinas, Bangla Desh, Curdistão, etc. (nalguns casos com décadas de existência) sejam uma mera verruga na face do imperialismo; o seu futuro é problemático; mas nem por isso deixam de ser a expressão mais elevada de uma vaga de fundo operária e camponesa que fervilha ao longo dos continentes subjugados e que pode em qualquer momento atrair à sua órbita enormes massas socialmente desintegradas pela devastação imperialista.

Quando o ferrolho financeiro bloqueia as transformações nacional-democráticas do Terceiro Mundo e condena as suas populações a uma miséria esmagadora, nem tudo se fica pelas “revoluções” de opereta de burguesias cobardes e corruptas. As convulsões revolucionárias são inevitáveis. 358 multimilionários têm tanto como 2.300 milhões de pessoas – não é preciso ser bruxo para saber o que vai acontecer a seguir.

A fome leva à revolução? – Não, responde Novo. Só por influência da moral cristã se pode julgar que “uma dada quantidade limite de sofrimento conduz inevitavelmente à revolta”. E passa a explicar-me paternalmente que o mundo é bem mais cruel e sem sentido do que eu posso supor (!).

Ao longo de um parágrafo particularmente débil, Novo revela uma inadmissível ignorância de que foi a acumulação num grau insuportável do sofrimento das massas que fez deflagrar todas as revoluções e nomeadamente as grandes revoluções populares deste século. Decerto, o sofrimento e os anseios de justiça social não são condição suficiente para a revolução mas são sua parte integrante e seu detonador.

(E quanto ao cumprimento sobre a minha “moralidade retributiva de inspiração judaico-cristã” poderia observar-lhe que o seu cepticismo quanto à capacidade de revolta dos oprimidos tem um toque de insensibilidade primeiro-mundista que não fica bem num comunista).

O muro – Mesmo que as massas oprimidas do Terceiro Mundo se lancem em revolução, Novo não lhes vê nenhuma hipótese de triunfo, tanto por razões militares como económicas. “…revoluções socialistas e anti-imperialistas na periferia (ex-‘terceiro-mundo’) são cada vez mais uma impossibilidade. (…) Se os imperialistas norte-americanos estiverem mesmo dispostos a usar tudo o que têm (…) não há nada, ninguém, em parte alguma que lhes possa resistir. Será aniquilado, pura e simplesmente.”. Etc.

E se mesmo assim, por milagre, chegasse a triunfar uma revolução anti-imperialista e se, na melhor das hipóteses, se tratasse dum país de grande extensão territorial e abundantes recursos, a esperança seria apenas de resistir por algum tempo até ser assimilada pela economia globalizada.

Embora não seja costume os revolucionários advertirem-se uns aos outros sobre a impossibilidade da revolução, aceito de bom grado a pertinência dos avisos de Novo sobre o esmagador poderio americano. Mas tiro uma conclusão ligeiramente diferente: sendo as revoluções tão inevitáveis como os terramotos, a acumulação do poderio reaccionário atrasa-as, obriga-as a procurar fendas na muralha e com isso apenas multiplica o seu poder destruidor. Aliás, foi o que vimos neste século: a revolução russa furou pelo meio do ajuste de contas imperialista da I guerra mundial; a revolução chinesa ganhou impulso irresistível na II guerra; a revolução cubana tirou partido da momentânea paridade nuclear americano-soviética… O mais provável é que, também no futuro, outros condicionalismos excepcionais e imprevisíveis permitam à revolução abrir passagem, apesar da firme decisão imperialista de não o consentir.

Quanto à dúvida sobre se serão ou não viáveis novas experiências de economias “desconexadas” do mercado mundial: sabemos que o fracasso do Leste se deveu sobretudo a insuficiências de acumulação internas (e mesmo assim aguentaram-se durante decénios); nada nos diz que futuras experiências, partindo de uma base material mais evoluída, e com uma muito maior proletarização, não possuam maior capacidade de resistência e de contágio.

De resto, não adianta especularmos acerca da viabilidade ou inviabilidade de novas revoluções nos “elos fracos”. A questão que evoquei no meu artigo é muito mais simples: se rebentarem, que faremos para as ajudar?

Revolução por Catálogo

Plano de batalha – Considerando visivelmente esta perspectiva demasiado tacanha, Novo opõe-lhe outra muito mais audaciosa. Transcrevo porque vale a pena.

“Revolução, sim, mas mundial”. “Tem de haver uma crise insurreccional e tomada do poder pelo proletariado nas nações imperialistas. Sem isto, continuaremos na mesma”. É preciso pensar na “organização [do proletariado] à escala mundial para resistir e contra-atacar. Esta é a tarefa do próximo século”. “O objectivo estratégico [do partido internacional do proletariado] será a tomada do poder, o derrube do sistema capitalista e a instauração da ditadura do proletariado à escala mundial. Isto só poderá conseguir-se através da greve de massas, seguida de um movimento insurreccional generalizado”.

“A revolução poderá ter início no centro ou na periferia, mas deverá ser dirigida pelo partido do proletariado tendo por base um movimento coordenado e envolvente. Em certo ponto (toda esta ofensiva não deverá demorar mais do que uma ou duas décadas a concluir-se) ele deverá necessariamente atacar o próprio coração do sistema capitalista mundial. Os centros de poder das grandes metrópoles imperialistas têm de ser efectivamente neutralizados.”

Eficácia – Assim, Novo reclama uma insurreição generalizada, um “movimento coordenado e envolvente” que dê conta da burguesia “em uma ou duas décadas”! E sou eu, segundo parece, que tenho uma “visão mecanicista da revolução”!

O infantilismo desta perspectiva, tenho que dizê-lo, é impróprio de Novo. Depois de um século inteiro em que vimos como funciona a revolução, este tipo de ingenuidades já não tem desculpa. Parece não lhe ter ocorrido a pergunta: como irá organizar-se esse “movimento coordenado e envolvente” (e fulminante!) se as explosões que compõem a revolução mundial não são nem podem ser simultâneas, já que dependem do imprevisível amadurecimento das crises revolucionárias em cada país? Ou será que a globalização e o neoliberalismo nos vão brindar com uma oportuna uniformização planetária da luta de classes?

Não resisto a devolver a Novo, sem ironia, a citação de Lenine que me oferece no seu artigo: imaginar uma revolução social “sem revoltas de pequenas nações nas colónias e na Europa (…) contra a opressão nacional, etc. é repudiar a revolução social”. Só pedantes, diz Lenine, imaginam a revolução social como um combate global entre dois exércitos, um que é pelo socialismo e outro que é pelo imperialismo. Mas não é isto que Novo imagina?

A revolução mundial segundo Novo parece-se muito com uma utopia para escapar à perplexidade que lhe causa a marcha real da revolução: aos arrancos e ziguezagues, com recuos e desastres… e sobretudo insistindo em rebentar por onde não devia.

A hora dos aptos – Novo acredita que as desilusões do passado poderão ser evitadas se a tarefa for abordada de forma racional.

“A minha esperança – escreve – é que uma nova classe social tome o poder e mude radicalmente o sistema… Fá-lo-á não por considerações morais, não movida por puras e irreprimíveis necessidades físicas, mas porque se sente finalmente apta a fazê-lo e chegou a sua hora”. Ou, como escrevera em artigo anterior, trata-se de “transportar a luta de classes para o campo da ciência e da técnica”(1).

Estamos entendidos: em lugar das caóticas revoluções dos miseráveis, movidos pela fome e sede de justiça, cujo destino é o fracasso certo, Novo propõe a Revolução unificada, consciente e racional, conduzida direito à meta socialista por “uma nova classe social” que se guia pela ciência e não por impulsos primários; o proletariado instruído de Silicon Valley vai mostrar como se faz aos proletários de Calcutá.

Como não recordar a polémica dos anos 60 entre Moscovo e Pequim, quando às “bárbaras” revoluções terceiro-mundistas se opunham as revoluções “civilizadas” que estariam iminentes nos centros do capitalismo avançado? Como não relacionar esta ideia de uma revolução racional com a falta de consistência que assume nos escritos de Novo o momento brutal da tomada do poder pela força?

E já agora: sendo, na opinião de Novo, a revolução impossível nas retaguardas devido ao poderio militar do imperialismo, o que o leva a considerá-la mais viável nos centros? As armas sofisticadíssimas e os satélites que tudo detectam já não funcionam aí?

Dificuldades – Escusava Novo de me explicar que a revolução proletária é mundial e que o que está em jogo é “o derrube do sistema capitalista mundialmente” pela solidariedade internacional do proletariado. Isso já se sabe. O difícil é saber em que etapas se desdobra a revolução mundial, a partir de que focos, como interagem os diversos destacamentos uns sobre os outros… Ora, o belo plano delineado por Novo não tem nada disto em conta. Imagina o proletariado mundial marchando a compasso, o que não é verdade.

Porque, gostemos ou não, ao longo deste século de gigantescos cataclismos sociais, o papel do proletariado europeu e norte-americano foi extremamente modesto: lutou no quadro da ordem burguesa pelas condições de venda da sua força de trabalho, quando não foi usado em matanças interimperialistas ou em empresas de pilhagem e massacre colonial da sua burguesia (os levantamentos proletários de 1918-20 na Europa central foram réplicas do sismo soviético e a malograda revolução espanhola dos anos 30 foi ainda “periférica”). Isto enquanto o centro das tempestades revolucionárias se fixava na Rússia, se deslocava depois para a China, descia ao Vietname, aflorava a Índia, passava à América Latina…

Resultou isto de uma conjunção fortuita de circunstâncias ou foram razões estruturais que permitiram ao diminuto proletariado dos “elos fracos” assumir um protagonismo que o proletariado “central” não conseguiu ter? A pergunta conduz-nos a Lenine.

Feitichismo Leninista

O livrinho de Lenine – Confessando a sua entusiástica admiração por Lenine, Novo vê contudo no Imperialismo, “uma obra de circunstância escassamente original”, escrita apenas para “fornecer a base teórica para a cisão de Zimmerwald” (!), pelo que me aconselha a não o erigir em “fetiche intemporal” e não me “enfronhar cegamente” na sua leitura.

Daquilo que no livro é propriamente original, pouco se aproveitaria. Novo discorda, nomeadamente, do seu “catastrofismo” económico e de noções como “capitalismo em decomposição” ou “em putrefacção”; acha mal que se classifique o imperialismo como “estádio supremo do capitalismo”(2); acha “muito problemático falar de preeminência do capital financeiro como uma das características definidoras do imperialismo” — o que me causa verdadeiro assombro —; considera impossível dizer se e em que medida o proletariado dos países imperialistas beneficia da exploração dos povos coloniais e dependentes… No que toca à influência do imperialismo no movimento operário, Lenine simplesmente teria retomado o que já Engels escrevera, juntando-lhe algumas observações de Hobson, “sem lhes acrescentar nada de substancialmente novo”. Enfim, no Imperialismo, o que é bom não é novo, e o que é novo não é bom…

Mas isto significa que o problema quanto ao Imperialismo não é saber se eu faço dele um fetiche, é saber se Novo lhe reconhece alguma validade. Ao aconselhar-me a “não endeusar” Lenine, Novo está a dizer-nos indirectamente que a visão leninista do imperialismo não lhe serve.

A idade do imperialismo – Para amparar a opinião de que Lenine não tinha grandes novidades a dar sobre o imperialismo, Novo socorre-se da insólita tese de que  “o imperialismo nasceu no século XV e sempre acompanhou o capitalismo. Nunca houve um sem o outro”. Aliás, “Marx e Engels conheceram e estudaram muito bem o fenómeno imperialista”.

Já agora, até podia dizer que também houve imperialismo no tempo dos Gregos e dos Romanos, que não mentia… O imperialismo dos séculos XV-XVII correspondeu ao apogeu do capitalismo mercantil, descrito por Marx no Capital. Lenine, pela sua parte, caracterizou o imperialismo capitalista, um sistema que não tem paralelo com nenhum outro do passado pois que só surge quando o capital industrial se começa a fundir com o capital bancário, para dar origem ao capital financeiro; quando se começam a afirmar os grupos monopolistas lançados à partilha e repartilha dos mercados e fontes de matérias-primas, quando a divisão do mundo entre as grandes potências determina a entrada numa era de guerras mundiais e de revoluções proletárias… É embaraçoso estar a enumerar aqui as características originais do imperialismo moderno mas a insistência de Novo em afectar que não sabe do que se fala a isso me obriga.

É pois deste imperialismo que falamos: uma época em que “o capitalismo se transformou num sistema universal de opressão colonial e de asfixia financeira da imensa maioria da população do globo por um punhado de países ‘avançados’”(3). Que pensa Novo sobre o assunto?

Ciência popular – Novo tem estudado afincadamente o fenómeno do imperialismo. (Já agora: como ninguém pôs em dúvida a seriedade desse estudo, podia ter-nos poupado à enumeração das suas credenciais). Decidido a beneficiar-me com umas luzes da “ciência económica marxista”, explica pacientemente que até hoje não há provas concretas, apenas conjecturas, de que o proletariado dos países centrais beneficie da exploração das periferias. É o aumento exponencial da produtividade do trabalho nos países desenvolvidos que explica o decréscimo dos trabalhadores produtivos e o crescimento dos sectores improdutivos. Há que relativizar a noção de parasitagem imperialista sobre os países dependentes, já que não há maneira de medir a exploração que é feita através da troca desigual. De resto, esses países “periféricos” “seriam mais vítimas de abandono e marginalização do que propriamente de exploração.” (Deve ser por isso que as potências lhes atiram com pára-quedistas de cada vez que tentam mexer uma palha).

Enfim, falando bem e depressa: se o primeiro mundo se especializou em tecnologias de ponta e o terceiro em mão-de-obra barata; se um tem multinacionais e o outro tem dívidas; se o preço das matérias-primas desce e as taxas de juro sobem; — não há motivo para desatarmos a falar romanticamente em “predação”; são efeitos da diferença de produtividade do trabalho. — E essa diferença de produtividade sustenta-se em quê?

Novo ficará indignado se lhe propuserem que aceite como normal a “retribuição” do capital pela exploração do trabalho assalariado. Mas não nota as regiões periféricas a ser devoradas pelo capital financeiro — para dizer a verdade, ele até tem muitas dúvidas que exista essa tal oligarquia financeira a reinar sobre o mundo.

Ainda há seis meses Novo observava a Bitot que “a troca mercantil de equivalentes… é a forma contemporânea da pilhagem imperialista”(4). Não o felicito pela evolução.

Enormidades – Achando que não está provado o carácter parasitário das metrópoles do imperialismo, como há-de Novo considerar seriamente o fenómeno da corrupção reformista do seu movimento operário?

Aos factos da vida, conhecidos de qualquer um, que mencionei no meu artigo (“bloqueamento da revolução” nos países imperialistas, “apodrecimento do regime parlamentar, alienação de massa, repressão selectiva”, “decomposição política, ideológica e moral do movimento sindical, socialista e comunista”, etc.) reage Novo com indignação, como se eu estivesse a difamar o proletariado.

Fico curioso de saber como descreveria ele esse panorama. E sugiro que pondere esta hipótese: apurar as deformações causadas pelo imperialismo no movimento operário conduz ao “abandono de toda a perspectiva revolucionária” ou, pelo contrário, é o ponto de partida para vermos finalmente o proletariado “civilizado” declarar guerra sem quartel à sua burguesia?

Cobertura – Afiança Novo que em Lenine não se encontra “absolutamente nada que se pareça remotamente com isto ou lhe dê qualquer espécie de cobertura”. Vejamos o que se pode arranjar só no Imperialismo, já que é esse que está na berlinda(5):

Retomando de Hobson a perspectiva de uma “federação europeia das grandes potências” vivendo parasitariamente dos tributos cobrados da Ásia e da África, “por meio dos quais sustentariam grandes massas domesticadas de empregados e criados”, escreve Lenine:

“A exportação de capitais (…) imprime um selo de parasitismo ao conjunto do país que vive da exploração do trabalho de alguns países e colónias ultramarinos ” (298). Mais adiante: “O Estado-rentista é um Estado do capitalismo parasitário e em decomposição; e esta circunstância não pode deixar de influir nas condições sociais e políticas do país em geral” (300). Entre as múltiplas e bem conhecidas referências à “corrupção” de camadas do proletariado, destaco: “A obtenção de elevados lucros monopolistas pelos capitalistas de um sector industrial, de um país, etc., dá-lhes a possibilidade económica de corromper certas camadas de operários e mesmo, momentaneamente, uma minoria bastante considerável destes, atraindo-os para o lado da burguesia…” (324).

Lenine detectou o fenómeno do parasitismo, decomposição, putrefacção, agonia das metrópoles imperialistas e as suas consequências sobre o movimento operário. Isto foi há 80 anos. Parece pouco crível que, em quase um século de avanço ininterrupto deste processo de decomposição, os sintomas se tenham atenuado. Ou ter-se-ão agravado tanto que causa temor encará-los de frente?

Lenine errou? – Claro que errou. Julgava que este processo de decomposição chegaria ao seu termo em meia dúzia de anos e já lá vai quase um século… Daí a censura de Novo de que se teria deixado arrastar por palpites “catastrofistas”, daí as suas objecções ao “estádio supremo”, à “agonia”, etc.

Mas há aqui um equívoco. O que faz do imperialismo um capitalismo agonizante não é nenhum cálculo sobre o número de anos que tem pela frente mas o facto de a sua marcha agravar inelutavelmente a contradição entre produção cada vez mais socializada e apropriação cada vez mais concentrada – fenómeno inteiramente novo na história da humanidade. É isto que o torna um capitalismo de transição para uma ordem social superior.

A importância do Imperialismo vem de ter detectado esta contradição numa fase ainda incipiente e ter tirado dela consequências políticas novas. De facto, quando se lançou a escrevê-lo, Lenine procurava descobrir a “relação do imperialismo com o oportunismo no movimento operário”. Como pudera a burguesia imperialista afundar o movimento socialista europeu no pântano do chauvinismo quando os marxistas o julgavam à beira de conquistas históricas? Como pudera a II Internacional apodrecer até aos alicerces sem ninguém dar por isso?

Saiu daí uma ruptura de alcance histórico para o programa da revolução proletária – a perspectiva dos “elos fracos”, generalização da experiência da revolução russa. Não tirando de imediato todas as consequências da decomposição imperialista por ele próprio caracterizada, Lenine julgou a princípio que a revolução socialista poderia abrir caminho na Europa desde que os revolucionários extirpassem o “tumor oportunista”. Em 1918-20, perante os sobressaltos revolucionários na Europa central, esperava ainda um desenlace revolucionário no continente através da “luta armada e da guerra civil entre as duas tendências”(6).

De ambas as vezes sobrestimou o amadurecimento do processo revolucionário europeu. E foi na fase derradeira da sua vida que se apercebeu de que o “centro das tempestades” se deslocava para as regiões coloniais e dependentes, alertando para a “rapidez incrível” com que a Índia, China, etc., eram impelidas para a luta pela sua libertação(7).

Se Novo acha que a teoria leninista está envelhecida, tudo bem. Mas não nos convide a voltar para trás, para a crença de que o capitalismo adiantado vai entrar pelo socialismo dentro. Por essas e por outras, a II Internacional teve mau fim.

Tempos Novos

Grandes esperanças – Talvez em nenhum outro ponto ressaltem tanto as diferenças da nossa avaliação do imperialismo como na questão da social-democracia. “Desde os anos 80 – escreve Novo – a social-democracia entrou em falência histórica, assistindo-se hoje à sua derrocada total”.

Com o capitalismo lançado numa ofensiva impiedosa, anulando as concessões do passado, estaria esgotada a capacidade de a social-democracia influenciar o proletariado, nomeadamente na Europa. E já entrevê as burocracias sindicais a ser ultrapassadas pela “imparável ascensão de um movimento transnacional e transcontinental de solidariedade operária” e esperançosos partidos “trabalhistas” a medrarem por toda a parte.

Parafraseando Novo, eu diria que isto é uma “construção puramente ideológica”. Associa linearmente a social-democracia a uma política de concessões da burguesia quando todos sabemos que ela já promoveu programas de “austeridade”, o desmantelamento de conquistas populares e até pogroms anticomunistas e nem por isso perdeu a sua vocação moralizadora do sistema.

A verdade é que a social-democracia se moderniza e se desdobra em “cem flores”. Sempre que o partido socialista clássico é promovido a missões mais elevadas na administração central dos negócios da burguesia, o lugar por ele deixado vago como consolador dos aflitos, porta-voz das exigências (ordeiras) das massas e de aspirações poéticas ao socialismo é preenchido pelos partidos comunistas degenerados, pelos Verdes, pelas alas esquerdas “socialistas” e “trabalhistas”… Os actores mudam, a função permanece. E isto por uma razão simples: a necessidade orgânica, inerente à sociedade capitalista avançada, de um partido que lute “inabalavelmente” por reformas enquanto defende inabalavelmente a ordem burguesa.

Ao convencer-se que a social-democracia acabou (quando o comunismo ainda não tem qualquer expressão política!), Novo desarma-se para fazer frente à ideologia e à política do socialismo imperialista, que vai ressurgir com mil e uma faces novas na nova Europa, em luta denodada para abrir uma via “civilizada” para o socialismo (tomando a seu cargo, naturalmente, a tutela da maior porção possível de pobrezinhos do terceiro mundo).

Pequena burguesia – A social-democracia tem a vida assegurada enquanto houver imperialismo, e isto por um motivo de classe: a proliferação verdadeiramente cancerosa (Novo que me desculpe o termo grosseiro) da nova pequena burguesia e de outras camadas intermédias, as quais, lutando pelos seus interesses próprios e exibindo frequentemente o seu agastamento face aos abusos dos monopólios, o fazem sempre no quadro da nação imperialista e lutando sempre para manter o proletariado e os povos dependentes acorrentados a esses interesses imperialistas.

O peso desta camada social, imperialista até à medula, cerca por todos os lados o proletariado e sufoca a expressão dos seus interesses. É lamentável que Novo mostre em tudo o que escreve nulo interesse por este fenómeno.

Fenómeno tanto mais grave quanto se reduz o peso social e numérico do proletariado nessas metrópoles. Novo soma o “conjunto do mundo industrializado e em vias de industrialização” para poder afirmar que é “total e patentemente falso que o peso sociológico da classe operária esteja em declínio” Assim não vale. Que a classe operária cresce imparavelmente à escala mundial já sabemos. É dos centros imperialistas que aqui se trata e nestes o declínio é indiscutível.

Assim, a polémica que nos opõe em torno da revolução proletária mundial assume uma nova faceta que conviria explorar: tem mais condições para a revolução o proletariado que se apoia nas grandes massas semiproletárias e camponesas arruinadas, ou aquele que se alia com a pequena burguesia culta?

Embuste – A terminar, embalado na sua própria eloquência, Novo acusa-me sem cerimónias de “embuste ideológico”: eu pretenderia pintar o proletariado central como “inimigo da revolução” ou confiná-lo, quando muito, à tarefa da solidariedade ao “terceiro mundo” para proveito de burguesias manhosas. E vê-me já lançado num tenebroso “endoutrinamento dos trabalhadores imigrantes africanos aqui radicados na desconfiança e no ressentimento em relação aos seus colegas portugueses”. Porque o meu sonho tresloucado seria, finalmente, chegada a hora, abrir a porta aos “bárbaros” “para o grande banho vindicativo e escatológico”.

É realmente difícil escrever mais insanidades em tão poucas linhas! Não esperava ver recicladas as mesmas tolices com que me mimosearam, já lá vão 30 anos, os dirigentes do PCP.

Novo está a ver o filme de pernas para o ar. Temos pela frente a árdua tarefa de mostrar ao proletariado europeu a longa marcha que lhe falta percorrer para se desligar dos valores do bloco imperialista continental – mas Novo vê nisto um “abandono da perspectiva revolucionária”! Alertamos para o perigo de o proletariado da Europa colaborar na repressão dos povos em luta – Novo protesta que se está a tratá-lo como “inimigo da revolução”! Pergunta-se o que faremos nós, os comunistas europeus, se novas revoluções anti-imperialistas rebentarem, como tudo indica, antes de conseguirmos ajustar contas com a nossa burguesia? – e Novo protesta que se quer organizar apenas a solidariedade! Diz-se ao operário português que querem transformá-lo em carrasco do seu irmão imigrado – e Novo vê nisso um desígnio de instilar nos negros o ódio ao branco!

Estas expansões não são casuais. São, por assim dizer, o estádio supremo das considerações de Novo. Quem aposta tudo na passagem ordenada e unificada ao socialismo sob direcção “civilizada” não pode deixar de reagir com alarme ao que lhe lembre que a sua “vanguarda” marcha por enquanto na cauda da revolução.

Autocrítica? – Há duas ideias no artigo de Novo que me agradam sobremaneira, embora não saiba se lá apareceram por distracção ou para cobrir a retaguarda realmente vulnerável da sua construção.

  1. O imperialismo introduz “sensíveis distorções nas formações sociais do capitalismo central” (eu chamar-lhes-ia simplesmente “países imperialistas” mas não vamos guerrear por isso);
  2. “é verdade que as especiais distorções que sofrem as formações sociais da periferia podem levar a que as suas contradições atinjam o ponto de ruptura antes de a revolução estar na ordem do dia nas metrópoles centrais”.

Com base nisto seria facílimo chegarmos a acordo. Bastava que Novo, tirando a consequência necessária destas duas ideias, reconhecesse que o eixo da política proletária nas metrópoles consiste em não se deixar neutralizar pelas “distorções” imperialistas e apoiar por todos os meios as “rupturas” das periferias que previsivelmente irão ocorrer antes que ele consiga ajustar contas com a sua burguesia.

Se aceitar isto e riscar tudo o resto que escreveu, ficaremos em paz e harmonia.

Seis recapitulações – Termino à boa maneira maoísta:


Notas de rodapé:

(1) “O comunismo, para a próxima”, P. O. 55, p. 28. (retornar ao texto)

(2) Como A. N. “não faz a mínima ideia” onde fui eu buscar essa opinião e me aconselha a “não atirar para o ar com citações de memória que são puro produto da tua imaginação ”, cito-lhe o que escreveu numa carta a Bitot publicada na P. O. 56, p. 21, 1ª coluna: “Sobre a teoria do imperialismo, você afirma que ela ‘se tornou obsoleta para dar conta do curso histórico do capitalismo moderno’. Você tem evidentemente razão (embora esta seja infelizmente uma evidência que ainda está longe de se ter imposto por completo no campo marxista) quando diz que o imperialismo não é nenhum ‘estádio supremo’ do capitalismo.” (retornar ao texto)

(3) No prefácio do Imperialismo, edição de Moscovo das Obras completas em francês, volume 22, 1973, p. 207. (retornar ao texto)

(4) “A crise do capitalismo”, P. O. 56, p. 27, 2ª col. (retornar ao texto)

(5) Os números entre parênteses são os das páginas da edição citada. Sublinhados meus. (retornar ao texto)

(6) No prefácio do Imperialismo, pp. 209-210. (retornar ao texto)

(7) Oeuvres, Moscovo, 1973, t. 33, p. 515. (retornar ao texto)

Inclusão 13/09/2018