A Revisão da História

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 1997


Primeira Edição: Política Operária nº 62, Nov-Dez 1997

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Le livre noir du communisme. Crimes, terreur, repression. Stéphane Courtois, Nicolas Werth, Louis Mar­golin e outros. Ed. Robert Laffont, Paris, 1997.

A campanha de erradicação do comunismo acaba de receber reforços frescos, por ocasião do 80º aniversário da revolução russa. O lançamento, com grande cobertura mediática, do “livro negro do comunismo” permitiu informar a opinião pública de que “os regimes comunistas erigiram o crime de massa em verdadeiro sistema de governo” e causaram a morte a 100 milhões de pessoas, nada menos. Está pois de parabéns a legião dos recuperados para o campo da ordem, que assim vê enriquecido o seu arsenal de argumentos para justificar a capitulação.

A ausência de qualquer valor científico deste novo trabalho académico evidencia-se desde logo por englobar sob a designação de “regimes comunistas” todos os que em algum momento se reivindicaram do marxismo-leninismo e amalgamar indistintamente autênticas revoluções populares com regimes opressivos de capitalismo de Estado que se cobriram com a sua bandeira.

Depois, os números. Cem milhões de mortos é cifra estarrecedora, mas Courtois não o faz por menos: 65 milhões na China, 25 na União Soviética, o resto por esse mundo fora. O processo é simples: põe-se à conta do comunismo as mortes causadas pelas insurreições populares e pela repressão dessas insurreições, as vítimas de fomes e outras catástrofes tudo calculado por alto. Adicionam-se assim os mortos de ambos os campos da guerra civil na Rússia, os mortos causados pela fome resultante do bloqueio à URSS (“é preciso estrangular a criança enquanto está no berço”, aconselhava com finura o jovem Winston Churchill), os mortos da fome de 1930-32, os mortos da repressão stalinista, os da guerra mundial; procede-se do mesmo modo quanto à China, Vietname, Coreia, Camboja, Europa oriental, Etiópia, Angola, Moçambique (nestes dois países, os crimes incontáveis cometidos pela Unita e pela Renamo, pagos pelo imperialismo, são postos à conta dos regimes “comunistas” governantes)… Esta responsabilização dos revolucionários inclusive pelos mortos que sofreram não deixa de ter a sua lógica: se não tivessem interrompido a marcha normal da civilização burguesa, não teria sido necessário reprimi-los…

O golpe é de tal modo grosseiro que em Paris rebentou a polémica entre os próprios autores. Margolin e Werth criticam o prefácio e as entrevistas ultras de Courtois de que não tiveram conhecimento prévio; censuram-lhe “a obsessão de chegar aos cem milhões de mortos”; não aceitam que “o comunismo, que se pretende doutrina libertadora, seja posto no mesmo plano do nazismo, doutrina racista”; distinguem que “a URSS teve campos de concentração mas não campos de extermínio”. Courtois, porém, não cede: “Os comunistas são responsáveis por cem milhões de mortos, contra 25 dos nazis, e além disso começaram primeiro”. Não há dúvida; Hitler e Goering, se fossem vivos, felicitar-se-iam por esta adesão tardia à sua cruzada antibolchevista.

A demarcação de Werth e Margolin resulta, visivelmente, do receio de perderem todo o crédito se seguirem o anticomunismo primário de Courtois. Mas nada os distingue deste quanto ao desejo de banir a revolução. São todos unânimes em negar a Outubro de 1917 o carácter de revolução social, rebaixando-o ao nível de um golpe de Estado, conduzido pelo “aventureiro” Lenine. Esta tese do “golpe”, difundida por uma série de obras de inspiração social-democrata, vai sendo aceite, na ausência de contestação, como verdade incontroversa. Registe-se, a este respeito, a posição particularmente abjecta do Humanité que, na edição de 7 de Novembro, tem o impudor de escrever: “Revolução social? Putsch de uma minoria bem organizada? Ambas as coisas? As controvérsias continuam a opor os historiadores”.

Mas não se trata só da revolução russa. Os historiadores revisionistas querem pôr toda e qualquer revolução fora da lei ao decretar que a luta pela eliminação de uma classe seria uma forma de “genocídio”! “O genocídio de classe é equivalente ao genocídio racial”, decreta Courtois. E assim a longa luta dos oprimidos pela conquista dos seus direitos humanos aparece virada do avesso, com a burguesia a exigir o acatamento da ordem social existente, em nome dos seus próprios “direitos humanos” de explorar e oprimir. De facto, porque não há-de a minoria burguesa ver respeitado o seu “direito à diferença”?

Uma coisa parece certa: este desatar frenético da campanha de erradicação do comunismo, em que surgem com frequência apelos explícitos à repressão, não resulta só de um ajuste de contas com o passado ou do desejo de apagar o rosário de genocídios do capitalismo, do Vietnam à Coreia, à Indonésia, Argélia, África, América Latina. Indica também um medo latente, obsessivo, do que está para vir. A burguesia parece querer banir o direito à existência dos comunistas e do seu partido, porque pressente que a bandeira vermelha vai ressurgir em novos grandes combates de classe.

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Inclusão 10/06/2018