A Crise do Regime

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 1998


Primeira Edição: Política Operária nº 67, Nov-Dez 1998

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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 O ministro Cravinho, desnorteado com as denúncias de corrupção na JAE, disparou que “há uma gravíssima crise do regime democrático”. Logo Marcelo subiu a parada: vivemos o “apodrecimento” e a “degradação da autoridade do Estado”. Pegando na deixa, Jorge Sampaio ofereceu-nos no 5 de Outubro fúnebres considerações e piedosos conselhos sobre a perda de credibilidade dos políticos e da política.

É sabido que os políticos não resistem à dramatização das suas chicanas, para despertar a atenção do público e para subir uns pontos nas sondagens, mas há aqui alguma coisa mais. Já não se pode ocultar a desconfiança dos governados face aos governantes, o profundo mal-estar da sociedade em relação ao regime. E isto não apenas pela catadupa dos escândalos de corrupção, pelo negócio do financiamento dos partidos, ou pela golpada fracassada da regionalização.

Na origem da crise do regime estão três causas entrelaçadas que os políticos não têm meios de atalhar.

Primeira. Os governos perderam todo o crédito junto dos cidadãos porque se mete pelos olhos dentro que transferiram o seu poder para Bruxelas e se limitam a cumprir ordens vindas de cima. PS, PSD, PP são mercenários vulgares e não adianta trocar uns pelos outros.

Segunda. A ficção da “defesa do bem comum” torna-se motivo de chacota quando toda a gente vê que as grandes decisões políticas partem dos mercados financeiros e das multinacionais. Justamente, a emergência dos juízes como um pretenso poder incorruptível corresponde a uma reacção de defesa dum regime desacreditado pela sua subordinação ao alto negócio.

Terceira. Se o país está a desenvolver-se, se a economia cresce, como se justifica o alargamento do fosso entre pobres e ricos? Dois milhões de pobres, num país de dez milhões que se insere garbosamente na Europa avançada, é algo que toda a retórica de Guterres não chega para fazer esquecer. E aí entra em cena aquilo que o dr. João Carlos Espada chama a “inveja”.

Confortam-se os avestruzes da política com a ideia de que as coisas não devem estar assim tão más, visto que não há sintomas de agitação social. Mas a actual paz podre é enganosa, porque assenta sobre factores conjunturais: o silenciamento temporário do proletariado, em fase de reconversão, e a ampliação da pequena burguesia e da sua capacidade de consumo.

Basta que se interrompa o actual ciclo económico (e as nuvens negras já se adensam) e os factores de crise que trabalham subterraneamente o regime virão à luz do dia. Na hora da verdade, os políticos deste tempo de enganos aparecerão reduzidos à sua dimensão desprezível e a política retomará os seus direitos, como busca de uma ordem social digna de seres humanos.


Inclusão 16/10/2018