A Campanha Antiguerra não está à altura

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 1999


Primeira Edição: Política Operária nº 70, Maio-Junho 1999

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Ao longo das semanas por que se tem prolongado o cobarde bombardeamento da Jugoslávia, foi tomando corpo no nosso país, como em tantos outros, um movimento de protesto, pelo fim da agressão, pela saída de Portugal da guerra.

Soube-se desde o princípio pelas sondagens que a maioria dos portugueses está contra a guerra, mas isso não chega. Com esse repúdio pessoal silencioso pode o governo bem. O que conta é o protesto aberto nas ruas, a intervenção de grandes massas a pedir contas a Guterres, a condenar a NATO, os Estados Unidos e a União Europeia.

Com esse fim, têm-se sucedido as manifestações, os abaixo-assinados, as sessões públicas, promovidos pelo PCP e organismos a ele ligados, pela CGTP, pelo Bloco de Esquerda, pelo PCTP/MRPP e por diversas outras organizações criadas a propósito, como os colectivos de Acção contra a Guerra, de que damos notícia nestas páginas.

Este movimento, porém, é preciso dizê-lo, ficou até agora muito aquém dos objectivos que se propôs. Nomeadamente em Lisboa, as manifestações circunscreveram-se à mesma franja de activistas (algumas centenas), perante a apatia (e até a estranheza) da massa da população, e isto apesar do leque invulgarmente alargado das personalidades que apareceram a condenar a guerra. Devido a esta estreita base de apoio do movimento, as sessões de esclarecimento foram escassas e em circuito fechado, a agitação e a propaganda mais que insuficientes. Caiu-se assim num tipo de protesto puramente demonstrativo, que dá conhecimento ao país da sua existência mas é incapaz de ganhar as grandes massas e golpear seriamente o governo.

Tem-se argumentado por vezes que a inércia popular seria natural e inevitável. Primeiro, porque o drama dos refugiados, manipulado pela pandilha da NATO, à força de matraqueado pela televisão e pelos jornais, acabou por convencer uma boa parte das pessoas de que a guerra seria “por boas razões”. Segundo, porque a prática unanimidade dos governos (quase todos “socialistas”, ainda para mais!) tende a paralisar a repulsa instintiva da maioria das pessoas pelos actos de barbárie da aviação da NATO. Terceiro, porque anos e anos de apatia roubaram às pessoas o hábito das manifestações políticas, mais ainda por uma questão internacional. Por último, também o afastamento do país do teatro de guerra e a insignificância das forças que o governo aí envolveu contribuíram para que a tragédia surgisse aos olhos da esmagadora maioria da população como uma guerra virtual, para assistir na televisão, não para intervir, à semelhança do que já acontecera com a guerra do Golfo.

Pode isto ser verdade, que não diminui a gravidade da situação. É missão das forças antiguerra sacudir a consciência adormecida da população, contrapor uma informação abundante à barragem das mentiras oficiais, ganhar novos activistas – e isso não tem sido conseguido. O movimento permanece muito restrito, revelando as dificuldades de mobilização, mesmo de forças como a CGTP.

Justamente, a escassez da mobilização efectuada permitiu que os dois principais partidos envolvidos na campanha (o PCP e o Bloco) levantassem obstáculos à criação de um movimento único, suprapartidário (como foi proposto desde o início pelos colectivos Acção contra a Guerra) e tratassem de pôr o movimento ao serviço das suas respectivas campanhas eleitorais.

Hoje, com a guerra a caminhar para o desenlace previsível, é ainda e cada vez mais ocasião de lutar pelo alargamento e radicalização da campanha. Seria muito grave que este crime imperialista passasse sem um forte protesto. A inércia popular seria paga no futuro a preço muito alto, já que abriria as portas sem resistência às novas aventuras em preparação. Ou ainda haverá quem duvide de que estamos perante uma escalada, prenunciadora de destruidores confrontos imperialistas?

Por último, a experiência desta campanha deixa-nos um alerta que deve ser seriamente meditado pelas forças de esquerda: a dificuldade da maioria da população em ver para além do “humanitarismo” forjado dos agressores e em tomar partido pelos agredidos indica que, insensivelmente, o espírito europeu de grande potência está a penetrar nas massas do nosso país. As grandes obras, os fundos comunitários, a relativa prosperidade das classes médias, o alinhamento crónico dos governos com Bruxelas, sejam eles PS ou PSD, estão a mudar o estado de espírito geral e a criar um sentimento de identificação com a “nova Europa”. Só pela denúncia deste novo chauvinismo europeu pode um movimento anti-imperialista abrir caminho no nosso país.


Inclusão 16/10/2018