O Fetichismo em Torno do Estado

Francisco Martins Rodrigues

Fevereiro de 2002


Primeira Edição: Política Operária nº 83, Jan-Fev 2002

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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 Chega-nos de Paris mais um trabalho de um autor bem conhecido dos leitores da nossa revista (L’Etat et le Capital. L’exemple français, Tom Thomas. Ed. Albatroz, Paris, 2001). Desta vez Tom Thomas debate um tema que, pode dizer-se, está na moda nos meios da esquerda europeia: pode o Estado, governado por forças de esquerda, disciplinar a anarquia do capital, controlar os malefícios da finança e estabelecer um pouco de segurança e bem-estar para os assalariados?

A classe operária, contesta Thomas, não tem nada a esperar do reforço do Estado e deve separar-se resolutamente dos adeptos da estatização. Pelo contrário, a destruição do Estado é para o proletariado o objectivo imediato essencial. É preciso derrotar a ideia de que a grande oposição contemporânea não seria entre burguesia e proletariado, entre capitalismo e comunismo, mas entre capitalismo liberal e capitalismo democratizado pelo Estado.

Passando em revista a emergência do Estado moderno, Thomas retoma as teses de Marx para mostrar que a característica essencial deste não é favorecer uns tantos indivíduos, os burgueses, nem mesmo uma classe, mas que tem por função reproduzir o conjunto da sociedade capitalista. E isto é assim porque a contradição entre o interesse individual de cada capitalista e o interesse colectivo da classe levou o Estado a tomar uma forma independente, fazendo figura de comunidade ilusória, “acima das classes”. O Estado percorre assim ao longo do século XIX um processo de autonomização que parece torná-lo independente da sociedade, adopta leis de protecção dos trabalhadores, cria uma imagem de poder exterior às classes, com a missão de equilibrar os conflitos sociais defendendo os mais fracos.

Por que não lutar, propõem-nos, para que o Estado faça distinção entre os capitalistas “úteis”, empenhados na produção e no comércio, e os “parasitas” da finança? Não correria tudo muito melhor se o Estado usasse os meios à sua disposição – impostos, taxas de juros, repressão dos especuladores – para impedir que estes obtenham um lucro exagerado dos seus capitais e para garantir a liberdade dos cidadãos? Mas esta visão superficial do capitalismo financeiro ignora que o capital não pode ser reduzido à sua forma dinheiro, que ele nasce da extorsão da mais-valia, o que acontece justamente na produção, que ele é uma relação de dominação, de apropriação, de exploração e de alienação. A função intrínseca do Estado não é assegurar os interesses da cidadania mas garantir as condições da valorização do capital. Só gente demasiado ingénua pode acreditar que existam meios de pôr a economia capitalista ao serviço do homem, graças à intervenção moderadora do Estado. (Aliás, lembra Thomas, a experiência de um capitalismo de Estado levado ao máximo rigor “socialista” na URSS foi elucidativa a esse respeito).

Falemos de factos: a época do capital financeiro em que vivemos obriga o Estado a assumir o papel de gestor do capital em geral e portanto a tornar-se totalitário, apoiado numa burocracia hipertrofiada que invade todos os aspectos da vida dos indivíduos e alimentado por uma fiscalidade esmagadora; e cria à escala mundial uma cadeia hierarquizada de Estados que tem na cúpula os EUA. O capital mundializado da nossa época conduziu o Estado mais poderoso ao papel de Estado mundial, empenhado em forçar os restantes à colaboração-submissão.

Perante um tal panorama, conclui Thomas, é absurdo o fetichismo do Estado como agente do “serviço público”. O Estado não comanda mas segue as exigências da evolução do capitalismo. O Estado é exactamente o oposto de um meio de dominação dos homens sobre as suas actividades: ele desapropria os indivíduos do seu poder social.

Surge aqui a objecção de que o moderno Estado Providência não subsidia só o capital mas dedica grande parte da sua intervenção ao apoio aos trabalhadores, a actividades sociais, humanitárias, etc. Em França, em 2000, os gastos públicos em prestações sociais diversas ascenderam a 28,5% do PIB e representaram cerca de um terço das receitas das famílias. O que prova este valor impressionante, dizem-nos, é que uma luta de classes prolongada e encarniçada teria obrigado a burguesia a fazer grandes concessões aos trabalhadores. Falso, contesta Thomas. De um lado, o Estado Providência só existe nos países imperialistas, porque só estes têm capacidade para captar a mais-valia mundial e distribuir ao proletariado as migalhas do “bem-estar”. Por outro lado e sobretudo, o sentido das intervenções estatais em todos os domínios da vida dos trabalhadores (saúde, educação, família, desemprego, etc.) é tentar adaptar a gestão da força de trabalho às dificuldades crescentes de valorização do capital. Pela sua intervenção “social”, o Estado liberta os capitalistas individuais de uma série de encargos. Todas as reformas sociais têm uma face favorável ao capitalismo, mesmo quando alguns capitalistas individuais podem insurgir-se contra os “gastos excessivos” do Estado.

A grande linha divisória na luta de classes é entre os que querem orientar-se para uma “melhoria” e “democratização” do Estado e os que querem que sejam os produtores a exercer o poder, destruindo a máquina do Estado (o que pressupõe a destruição das relações sociais capitalistas).

Varrer todo o actual fetichismo em torno do Estado como “regulador” do capitalismo, eis o que está na ordem do dia. Como observou Marx,

“um povo de trabalhadores que pede a protecção do Estado manifesta a plena consciência de que nem está no poder nem está maduro para o poder”.


Inclusão 05/09/2018