Democracia Reduzida a Ritos

Francisco Martins Rodrigues

Junho de 2002


Primeira Edição: Política Operária nº 85, Mai-Jun 2002

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Depois de muitos anos de interrupção, está a sair de novo regularmcnte este órgão do democratismo moderado, agora propriedade da Intervenção Democrática, a ala esquerda que restou do ex-MDP/CDE.

Motivo de interesse neste número, a enorme variedade de entrevistas, com o senão de falarem de tudo e mais alguma coisa. Villaverde Cabral mistura algumas irreverências bombásticas que lhe ficaram do Maio de 68 (“os partidos são bandos organizados com o objectivo de se apoderar dos recursos do Estado”, “este sistema político-partidário é um sistema em agonia”) com uma curteza de vistas nada avançada quando atribui o actual descalabro económico do país aos partidos, que “não estiveram à altura” de uma política desenvolvimentista; ou quando vê na entrada de imigrantes o fruto de uma atitude fidalga dos trabalhadores portugueses, indisponíveis para trabalhos baixos, em vez de apontar o banditismo dos empresários ávidos por escravos; ou ainda quando acha muito bem que se mande gente para casa, para aumentar a produtividade; tem pelo menos a lucidez de constatar que “o PSD vai fazer duas ou três privatizações e dar dois ou três apertos nas finanças, mas se o governo fosse do PS teria que fazer o mesmo”; da entrevista de Octávio Teixeira não há muito a dizer: torna-se chato à força de diplomacia; Medeiros Ferreira não vacila na defesa da ordem (“a segurança faz parte da democracia”); Carlos Lopes, o intelectual cabo-verdiano que faz carreira na ONU, põe a CPLP pelas ruas da amargura (com razão). Há ainda Costa Leal, presidente do Montepio Geral e mecenas da revista, a discorrer extensamente sobre a filosofia mutualista do seu banco (5o no ranking nacional), e até o xeique Munir, da comunidade islâmica, a debitar abstrusas considerações religiosas.

A revista reproduz também com destaque a mensagem de Saramago ao Fórum de Porto Alegre. O escritor associa, como é seu hábito, a rebuscada elegância académica com algumas verdades contundentes: a impotência e a miséria dos partidos da “denominada esquerda” e dos sindicatos, a democracia reduzida a ritos, o poder económico… Para equilibrar, fecha em tom mais consensual, pedindo um “debate mundial sobre as causas da decadência da democracia”, reivindicação inócua mas que fica sempre bem nos fóruns.

Onde a nova Seara Nova falha por completo é quando tem que formular juízos sobre o caminho que se oferece à esquerda. Aí, vêm ao de cima as contradições em que se debate o pensamento da corrente política que a anima. Assim, o editorial considera “incompreensível” que, nas últimas eleições legislativas, os eleitores tenham preferido a direita quando “seria de esperar” que penalizassem a política neoliberal do PS optando por uma “política alternativa de esquerda”. Está-se mesmo a ver, uma viragem à esquerda nas eleições de Março!

A mesma estreiteza num artigo de Canais Rocha, em que aliás se dizem algumas verdades sobre a “crise” da Segurança Social. Salazar usou os dinheiros da Previdência para financiar os investimentos capitalistas e as guerras coloniais, mas depois do 25 de Abril, a Segurança Social tem servido para tudo: reestruturar empresas, beneficiar jogadores de futebol, clero, militares, financiar a criação de PPRs que beneficiam quem mais rendimentos tem… Entre 1975 e 1995 os encargos estranhos ao sistema da S. S. mas que esta teve que suportar elevam-se a mais de 6 mil milhões de contos e o Estado nem sequer paga juros sobre essa dívida. As seguradoras clamam que o sistema está à beira da falência porque querem abocanhar uma parte pelo menos das centenas de milhões de contos que ele movimenta anualmente. Mas depois de tudo isto, o autor debruça-se sobre as medidas de apoio aos idosos a promover pelo Estado e pelas autarquias e que darão o seu contributo “para ir construindo a Democracia Social”.

As mesmas boas intenções alimentam o artigo de Blasco Hugo Fernandes, em que depois de desmistificar a pretensa aproximação da economia nacional ao nível comunitário, defende a necessidade de “substituir na construção europeia os critérios de rendibilidade financeira e capitalística por outros onde a satisfação das necessidades sociais tenha a primazia” e se pede a promoção de “um projecto de sociedade alternativo, baseado no aprofundamento e alargamento da democracia ao terreno económico, social e cultural”. Entre “propostas” deste tipo e as rezas à Senhora de Fátima não vai grande distância…

Há ainda neste número colaborações de Ulpiano Nascimento sobre a crise argentina, de Corsino Tolentino, Eduardo Costa Dias e Alfredo Margarido sobre Senghor, e uma emotiva mas desinteressante homenagem de Irene Dias Amado a Carlos Aboim Inglez, o dirigente do PCP recentemente falecido.


Inclusão 06/09/2018