Bombistas Suicidas

Francisco Martins Rodrigues

Novembro/Dezembro de 2002


Primeira Edição: Política Operária nº 102, Nov-Dez 2002

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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capa

A minha vida é uma arma — uma história moderna dos bombistas suicidas. Christoph Reuter. Antígona, Lisboa, 20 €.

Especialista em assuntos islâmicos, Reuter produziu um estudo bem documentado, cativante e colorido, bem ao estilo jornalístico, em que as incursões históricas se misturam com entrevistas e reportagens, para nos ajudar a entender como o suicídio pode ser uma arma de guerra. E no enquadramento político e ideológico dessa “cultura do martírio” que ele falha rotundamente — como seria de esperar, aliás.

Embora procurando ater-se ao papel de testemunha imparcial, o autor é traído pela diferença de sensibilidade que manifesta face à perda de vidas humanas. O massacre de grupos de civis inocentes nos atentados das “bombas humanas” nos mercados e cafés de Israel é pintado com todos os pormenores macabros, em todo o seu horror; mas a morte de 200 civis libaneses na ofensiva israelita de Abril de 1996 é referida numa linha; são meros números, tal como os mil prisioneiros egípcios massacrados a sangue frio às ordens do alto comando israelita na Guerra dos Seis Dias. Há aqui uma tese implícita: o terrorismo de Estado dispõe dum estatuto de legitimidade a que não pode aspirar o terrorismo artesanal dos suicidas.

Reuter recusa afinal tirar as conclusões que ressaltam do seu próprio relato: se tantas pessoas podem chegar ao ponto de falar com naturalidade do sacrifício da própria vida e regozijar-se com a morte de inocentes do campo oposto é porque chegaram a situações-limite, absolutamente intoleráveis. O fanatismo religioso não é a causa de nada; é a expressão do sentimento nacional humilhado. Será assim tão difícil entender que populações inteiras, espoliadas, encostadas à parede, privadas de meios de resistência, recorram à única arma que lhes resta — a própria vida? Será assim tão estranho que milhares de muçulmanos celebrem eufóricos o martírio de alguns suicidas que fizeram ir pelos ares a embaixada dos EUA em Beirute, em 1983, matando centena e meia de marines? Nas palavras de um palestiniano, “aqui todas as crianças são alimentadas com raiva; chega o momento em que a pressão se toma insuportável”.

Mesmo quando condena severamente a “cegueira” ou a “loucura” das provocações de Sharon, Reuter não deixa de tomar partido: os crimes sionistas são “erros”, porque dão argumentos ao campo contrário, aos bárbaros fanatizados. Quanto ao fundo do conflito — a apropriação do petróleo, a disputa das rotas estratégicas, a manipulação deliberada por parte dos Estados Unidos e das potências europeias, lançando uns povos contra outros — são praticamente esquecidos, o que não deixa de ser extraordinário.


Inclusão 21/08/2019