Carnificinas Democráticas

Francisco Martins Rodrigues

Maio/Junho de 2004


Primeira Edição: Política Operária nº 95, Mai-Junho 2004

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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A passagem do 60° aniversário do desembarque aliado na Normandia, o célebre Dia D, e a morte de Ronald Reagan, aos 93 anos, foram pretexto para grandes parangonas na comunicação social, engrandecendo a “democracia americana”.

Reagan, um fanático anticomunista, organizador de expedições e golpes de Estado, colaborador da caça às bruxas dos anos 50, fantoche nas mãos das multinacionais, nulidade intelectual e moral, foi despudoradamente apresentado como “a encarnação do sonho americano”, e mesmo como “político de convicções, que era tudo menos uma marioneta”, como se atreveu a escrever o director do Público. Não se pode dizer que não tenham razões fortes para reverenciar esta personagem tenebrosa: sob a sua presidência, a corrida armamentista levou ao esgotamento a União Soviética e foi lançada a vaga neoliberal que varre o mundo — os dois maiores acontecimentos da nossa época, na óptica da burguesia. Mas o certo é que a estatura do “herói” diz tudo sobre o sistema que o aclama.

E o Dia D? Sem dúvida decisivo para a derrota final do império nazi, é elevado às nuvens como “a mais complexa operação militar de todos os tempos” — para nos massacrar com a “eterna dívida de gratidão dos europeus para com os Estados Unidos” e, sobretudo, para fazer esquecer a derrota esmagadora dos alemães em Stalinegrado, que, essa sim, ditou o desenlace da guerra. O Dia D é o “aleluia” da burguesia europeia porque afastou o perigo das revoluções populares que sucederiam à derrocada do nazismo. Por isso estão “eternamente gratas” ao império americano.

Não é por acaso que surgem estas loas à “democracia americana” neste preciso momento. Trata-se de neutralizar a onda de protestos contra os crimes bárbaros que os EUA, directamente ou através do seu agente sionista, cometem no Iraque, Palestina, Afeganistão. Isso torna-se especialmente claro num artigo de André Glucksmann, transcrito no Público de 6 de Junho, no qual o aniversário do Dia D serve para aplaudir as invasões ianques em curso, uma vez que “o direito do povos a serem libertados de despotismos extremistas sobrepõe-se ao habitual respeito pelas fronteiras e ao velho princípio da soberania” (!!).

E Glucksmann não recua mesmo em justificar esse “direito de interferência” dos EUA, “apesar das ignomínias cometidas nas prisões iraquianas”, “porque os Estados Unidos continuam a ser uma democracia. E das mais exemplares”. Como prova desta “exemplaridade” cita o facto de ser a única que, no meio da guerra, não censura a publicação dos crimes cometidos pelos seus soldados, a única em que as comissões do Congresso intimam presidentes e generais a depor, e que permite ao mundo conhecer a verdade em tempo real... Assim este “brilhante intelectual” pode chegar à conclusão aberrante de que os EUA “continuam a ser a nação que lidera a luta contra as violações dos direitos humanos”, justamente no momento em que são execrados como ameaça para a humanidade e sucessores dos nazis! Ou, por outras palavras: os EUA são uma “democracia exemplar” porque matam muito mas não fazem segredo disso.


Inclusão 21/08/2019