O 25 de Abril e o que se seguiu

Francisco Martins Rodrigues

25 de Agosto de 2004


Primeira Edição: extractos da entrevista de FMR a Carlos Morais em Agosto de 2004.

Tradução do Português da Galiza: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


CM – Nas tuas análises e contributos teóricos sobre o fracasso da Revolução de Abril, apontas várias causas. Caracterizas o 25 de Abril não como uma revolução, senão como uma crise revolucionária, destacas a fraqueza das organizações revolucionárias, o subdesenvolvimento teórico e político da corrente M-L, mas especialmente o revisionismo do PCP que não quis aprofundar a via socialista, procurando unicamente uma transformação a fundo do capitalismo português para situar Portugal entre as democracias ocidentais, como consequência dessa estratégia do levantamento nacional, da “unidade dos portugueses honrados”. Por que razão as massas organizadas não foram capazes de evitar o contragolpe da direita no 25 de Novembro?

FMR – O PC é revisionista, é um partido pequeno-burguês; estar a pedir responsabilidades como se eles fossem comunistas não tem sentido, mas acho que na análise desse período é inevitável ver que era o único partido à esquerda com uma implantação sólida na classe operária, e a sua linha foi perfeitamente coerente com o que Cunhal vinha defendendo há muitos anos, embora assentasse num erro clamoroso que era ele convencer-se que a democracia burguesa, feita com a ajuda de um forte PC, teria que ser uma democracia burguesa progressista, de esquerda, que deixaria um grande lugar ao PC.

Cunhal acreditava que o PC ia ser reconhecido e ter uma grande participação no governo. Verificou-se que isso era um sonho, uma completa utopia, porque a burguesia estava assustada com o processo revolucionário. A burguesia portuguesa é conservadora ao máximo, estava habituada a cinquenta anos de tranquilidade, de segurança, ficou apavorada com o processo. Era tudo a mandar o dinheiro para o Brasil, para a Suíça. O que queria era voltar à estabilidade. Ora, um PC no governo, no poder, a tolerar as manifestações, as greves, era para eles inconcebível. Não podiam admitir essa situação. O PC não podia controlar aquele movimento porque à sua esquerda estavam sempre a surgir tendências cada vez com uma maior radicalização.

Para a burguesia, aquela situação dos governos provisórios era inadmissível uma vez que o PS e PSD ganharam as eleições para a Constituinte. O PC teve uma votação muito menor do que se pensava. Uma coisa são os activistas, outra é o “país real”, as grandes massas. A partir daí, ficou sem autoridade e o PS e o PSD, apoiados polo embaixador Carlucci dos EUA, começaram a reclamar o governo. A partir daí, a burguesia não podia continuar a aceitar a continuação desse regime de governos provisórios. Aqueles últimos governos que o PC tentou manter, do Vasco Gonçalves, estavam sendo boicotados por todos os meios pela burguesia. Em Tancos, durante o Verão, fizeram uma reunião dos militares e resolveram derrubar o quinto governo de Vasco Gonçalves, e começaram a criar as condições para isso. Atentados, empresas a encerrar mandando milhares para a rua, campanha permanente de mentiras, provocar pânico.

Havia, claro, uma onda revolucionária mas acho que lá fora, no estrangeiro, é vista com muito mais poder do que na realidade teve, porque era espontânea, era só a consequência de tirar a tampa a cinquenta anos de fascismo. Era espontâneo, não estava estruturado, não tinha um programa. “Os patrões oprimiam-nos, eram fascistas, então fora com os patrões”. Saneavam os patrões, saneavam os engenheiros, tomavam possessão das terras, numa ingenuidade revolucionária espontânea dum povo que não tem direito nenhum e de repente vê que é livre. Mas que de facto não tem um programa político, e a burguesia apercebeu-se disso: “Isto é todo fogacho, e não há por trás uma força com um programa que leve isto até o fim. Então, se a gente actuar com firmeza, vai recuperar a situação”. Foi fácil, não aconteceu nada, há que reconhecê-lo. Os tipos pegaram fogo a umas sedes, deram uns tiros, mataram cinco ou seis pessoas e após esta demonstração de força dram um golpe que foi um passeio militar. Comentava na “Política Operária” o major Varela Gomes que nos meses anteriores os tipos estiveram a encher de material de guerra os Comandos da Amadora e a desarmar as unidades que não eram de confiança, que eram dirigidas por oficiais da esquerda. E o MFA a ver…

CM – Otelo, como comandante do COPCON, que fez?

FMR – Uma figura triste. Foi o dirigente vacilante dum movimento vacilante. A princípio tinha arranques revolucionários. Quando os proprietários mandavam a polícia para expulsar as pessoas das casas ocupadas, elas telefonavam ao COPCON e ele mandava lá um destacamento. “Nós estamos ao lado do povo, o povo tem razão”. Mas, mais tarde, na Amadora, os soldados e os oficiais subalternos tentaram correr com aquele bandido do Jaime Neves, que era um facho declarado que toda a gente sabia, e o Otelo foi lá apoiá-lo. É um homem de uma vacilação extrema. Veio de Cuba todo entusiasmado fazer aqueles discursos, mas quando os campos estavam claros ele não sabia o que havia de fazer.

Houve essa pequena tentativa de criar a terceira corrente, chamada o Poder Popular, de assembleias populares com os quartéis. O PRP apostou muito nisso, a Isabel do Carmo, o Carlos Antunes, apostaram como último recurso encostar-se aos quartéis da esquerda para fazer uma corrente de poder popular. Mas o próprio Otelo não apostou a fundo nisso. Era um oficial do exército colonial. Eu não posso falar mal dos oficiais do MFA porque fizeram o 25 de Abril, mas acho que tinham uma carga ideológica muito pesada. Tiveram um sobressalto de consciência, quiseram acabar com o fascismo, é uma realidade, mas sabiam que estavam à beira de levar porrada por todos os lados. Aquilo na Guiné estava à beira de uma derrota total. Esse movimento é muito ambíguo. O movimento que poderia ter dado corpo àquilo é o movimento do proletariado com sentido revolucionário, com ambições revolucionárias. Infelizmente não existia. O PC educou gerações de operários para atingir a democracia e “depois logo veremos”. O sonho da democracia avançada rumo ao socialismo, a revolução democrática nacional, o PC ia ser aceite por toda a gente… Nos primeiros meses as pessoas andavam encantadas, parecia mesmo que ia acontecer. Mas quando chegou a hora da verdade…

CM – Nas duas últimas décadas, na PO, parte da tua reflexão teórica está centrada na necessidade de construir uma corrente operária comunista caracterizada por uma demarcação clara entre a linha proletária e a linha pequeno-burguesa. O teu livro “Anti-Dimitrov 1935-1985 meio século de derrotas da revolução”, publicado em Março de 1985, está centrado em realizar um balanço do relatório do Jorge Dimitrov ao 7º congresso da Internacional Comunista que defendia a unidade de todas as forças operárias, populares e democráticas sob uma mesma estratégia, no que tu defines como uma tentativa de fazer do proletariado uma força de reserva da burguesia liberal, contrariamente ao defendido por Lenine. Substituir a luta de classes pela colaboração de classes.

FMR – O que se passou em Portugal depois do 25 de Abril só confirmou aquilo que já se adivinhava antes: que os comunistas, pondo-se ao serviço dessa unidade de todas as forças democráticas, estão de facto a atraiçoar os interesses a longo prazo do proletariado, porque, como nós pudemos ver em Portugal, o proletariado encontrou-se numa crise revolucionária com possibilidades imensas para fazer um avanço revolucionário neste país, e estava inteiramente desarmado porque toda a sua educação tinha sido no sentido de ser uma força de apoio da democracia burguesa. Foi sempre assim que as coisas funcionaram no tempo do fascismo. Pedia-se muito ao proletariado, muito esforço, muito sacrifício, muita organização, mas tudo sem passar os limites daquilo que o programa liberal considerava aceitável. Tudo o que no proletariado tendesse a ultrapassar esse limite e em falar em seu nome próprio e dos seus interesses próprios a longo prazo era chamado “sectarismo”, “obreirismo”, que só prejudicava a unidade. Portanto, criaram-se gerações de operários muito lutadores, muito combativos, com um espírito de sacrifício tremendo, e que politicamente nem sabiam que a linha política que defendiam era contrária ao interesse a longo prazo da sua classe.

Hoje, essa independência política do proletariado ainda é mais difícil de conseguir. A situação tem estado a evoluir aceleradamente com as globalizações, com a pulverização da própria classe operária, a fragmentação, os precários, todos os fenómenos novos que a gente está a ver, e a identidade do proletariado como classe parece uma coisa cada vez mais difícil de palpar. No meu tempo, quando eu era jovem, ainda era possível perfeitamente encontrar núcleos de operários que sabiam a classe a que pertenciam, embora lhes pudesse faltar uma perspectiva política revolucionária. Mas hoje as pessoas são eleitores, são membros da população, são cidadãos, e essa consciência, essa identidade de classe está-se a esfumar cada vez mais.

Eu sei que a insistência nesta ideia, que me parece a única de acordo com o marxismo, a ideia da necessidade de independência política do proletariado, não parece realista à massa dos militantes. Mas é a única que faz sentido: se este sistema não vai evoluir, nem vai desaparecer por si, nem vai entregar o poder, a única perspectiva que existe é o seu derrubamento pela força. E não vale a pena dizermos que “a esmagadora maioria da população é contra o capitalismo, logo a coisa pode-se fazer pacificamente”… Isto funciona por camadas. Tem que haver um núcleo, um sector de classe, cujos interesses próprios de classe lhe permitam ver que para além deste regime podemos organizar um regime socialista, podemos expropriar a burguesia para criar o nosso sistema. Depois há outros sectores que estão descontentes, que vão aderir, mas que não podem assumir essa visão de classe. Se não têm essa visão de classe, tem que se fazer distinções. Tem que haver forças revolucionárias e aliados de primeira ordem, e aliados de segunda ordem, e forças a neutralizar, e forças a hostilizar e por aí fora.

Essa separação, essa gradação das várias camadas, eu vejo que hoje na esquerda repugna a toda a gente. Considera-se que isso divide, isso cria espírito de seita, isso não dá frutos políticos, etc. Então, ofereçam-me uma alternativa do ponto de vista marxista, com um mínimo de racionalidade, de vermos a saída disto. Como é? Não vês, só vês respostas que são uma versão actualizada das mesmas asneiras antigas. São versões pequeno-burguesas de tentar uma saída sem violência através duma moderação dos objectivos, dum apagamento dos conflitos mais agudos. É o espírito da pequena burguesia que penetra naturalmente em todas as camadas, no próprio proletariado. Quando se está perante um inimigo tão poderoso, é inevitável que se gere na grande massa uma tendência para procurar saídas não muito dolorosas: “Os gajos não olham os meios, usam bombas atómicas, gases, guerras, massacram as pessoas de qualquer maneira, que é que se há de fazer? Vamos ver se levamos isto devagarinho, com jeito.” Mas essa ideia é uma ideia errada, equivocada, não conduz a nada. Eu sinto que hoje a continuidade da defesa destas opiniões, como o artigo que escrevi na última PO sobre o problema do proletariado, deixa mesmo na nossa área muit@s camaradas um pouco reticentes. Não vão directamente contra, mas não lhes cheira: “Isto não dá, isto dá isolamento. Onde é que arranjamos forças, a falar desta forma? Quem é que adere?”. Por causa deste espírito é que a PO anda há vinte anos a remar sozinha.

Eu sei, temos que procurar uma solução para avançar na prática. Mas eu, depois de ver tanta burla feita aos trabalhadores em nome do marxismo, tenho uma grande preocupação em não embarcar de novo nas coisas em que embarquei na juventude, que era seguir cegamente um partido que é comunista, que segue a União Soviética, que é socialista, logo está porreiro. Acho que isso é desastroso. Temos que procurar raciocinar como marxistas, procurar respostas que façam sentido. Resposta que faz sentido é esta: o proletariado é a única força que pode intervir numa perspectiva para além do capitalismo. Para o proletariado assumir isto, tem que ter a sua identidade própria. Para ter a sua identidade própria tem que se demarcar dos outros, e dos mais próximos é que é preciso se demarcar, como dizia o Lenine, que são aqueles com quem a gente se confunde. A gente não se confunde com os banqueiros, a gente confunde-se com a pequena burguesia que está ao nosso lado. Temos que fazer essa demarcação. A nossa política não pode ser a deles. Tem que ser diferente, mesmo que eles não gostem.

CM – Quando falas de pequena burguesia a quem te referes? Estou a pensar na difusão desta entrevista entre milhares de pessoas, e nós utilizamos uma determinada terminologia que não sempre é bem compreendida. Esta explicação tão lúcida pode ser pouco efectiva perante a perda de visão política e da pouca formação ideológica de amplos sectores da esquerda. Há uma série de categorias e conceitos que ou não sabem exactamente o que são, ou existe uma confusão sobre o verdadeiro significado. Muitas vezes falamos de coisas que muita gente que nos ouve diz: “Mas que estão a dizer estes tipos?”.

FMR – Aí vamos dar à discussão das classes. Isso deu discussões muito grandes na cadeia. A gente na cadeia tentava ver se entendemos as classes utilizando o Marx. Se partimos do princípio que o proletariado é a classe que produz uma mais-valia ao capitalista pela sua actividade, aquelas camadas que não produzem uma mais-valia têm que ser consideradas fora do proletariado. Agora existem várias camadas, o Lenine falava muito disto, insistia muito na existência do semiproletariado, da pequena burguesia e por aí fora… Há pessoas que são assalariadas, vivem só do seu salário, contudo a sua actividade é um custo para o capitalista, não é uma fonte de lucro, como é a do proletário. O capitalista precisa de um contabilista que lhe faça as contas da empresa, aquilo é um custo que ele vai tirar do seu lucro possível, vai pagar a esse gajo porque necessita disso para a realização do seu próprio lucro. Portanto, essa pessoa, o empregado do comércio, o empregado de escritório, já não se consegue meter dentro do proletariado, mas há uma grande massa que está à volta do proletariado, de assalariados, com uma condição de vida próxima, embora normalmente isentos de trabalho manual mais violento, daqueles perigos mais duros que rodeiam o proletariado, esses portanto, são o semiproletariado. Então partimos do princípio que politicamente tenderá a apoiar o proletariado, mas não a assumir uma posição de vanguarda, porque não está no fogo da luta como está o proletário, que às tantas pode dizer “eu estou aqui a arrasar a saúde para aquele gajo andar num carro de luxo e ter uma piscina”.

Depois vem o pequeno proprietário, que ninguém tem dificuldade em ver que seja um pequeno burguês. É uma pessoa que investe um pequeno capital para tentar obter um lucro mas apenas para sobreviver, que no campo, no comércio, ou na pequena indústria, eventualmente até explora um ou dois empregados, e depende muito do seu próprio trabalho. Há várias camadas, uns mais abonados, outros mais pobres, outros arruinados, e em função da situação em que estejam reagem de uma maneira política ou outra. Mas não nos digam que eles, como classe, podem desejar o socialismo.

Depois temos uma série de actividades intelectuais, de funcionários públicos, de médicos, engenheiros, advogados, professores, que hoje é uma massa muita grande, e normalmente pola sua situação social, pela sua actividade, aproxima-se, tende a identificar-se com a pequena burguesia. De uma maneira talvez não muito rigorosa, como arrumação de tendências políticas, eu creio que toda essa massa dos pequenos proprietários, com essa massa de profissões intelectuais um bocadinho superiores ao simples empregado de escritório, constituem uma massa pequeno-burguesa. Não são proletários, mas também estão numa posição arredada do núcleo da burguesia. E a burguesia não são só os banqueiros, os grandes financeiros; abaixo deles está a média burguesia que não é lá tão pouca, de empresários, industriais, comerciantes. Toda essa gente está por baixo dos grandes grupos multinacionais, mas faz parte do corpo da burguesia, com todos os seus serventes, guardas de segurança, padres, todos encarregados de lhe fazer a vida mais fácil, toda essa gente que circula à conta da burguesia. A burguesia precisa duma série de gente que não produz nada, mas é necessária para o seu bem-estar. E esta gente, em geral, não quer ouvir falar em revolução.

CM – Dentro desta massa de pequena burguesia da Europa Ocidental teremos que incorporar os funcionários públicos. Têm um salário superior à média, um contrato estável, embora sejam assalariados pela sua concepção da vida, cultura.

FMR – Pois. Como funcionários públicos, fazem parte da máquina do Estado, para o funcionamento do sistema burguês. Não se confundem com os sectores que estão a produzir mais capital.


Inclusão: 27/04/2021