O Comunismo Que Aí Vem

Francisco Martins Rodrigues

Setembro de 2004


Primeira Edição: Política Operária, Setembro 2004
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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O artigo de Ângelo Novo “Comunismo. Para uma reconstituição estratégica do movimento emancipador do proletariado”, na P.O 51, suscita, entre muitas reflexões estimulantes, uma questão do maior interesse que enunciarei assim: foi o movimento revolucionário deste século uma saída em falso, precoce, carregada de voluntarismo, manchada de crimes, que nos competiria a partir de agora rectificar por um novo ciclo revolucionário, mais maduro e mais civilizado, realmente socialista? Interrogação compreensível.

Afinal, os marinheiros de Petrogrado e a Longa Marcha já estão bem distantes desta nossa época da robotização, da informática e da mundialização do capitalismo. Face ao esgotamento dessa onda que há meio século parecia prestes a avassalar o mundo, é natural que os comunistas busquem um recomeço reabilitador que lhes devolva a confiança no marxismo e na revolução. Mas talvez seja conveniente desconfiarmos deste primeiro impulso.

1. Antes de mais: não creio que se devam considerar as revoluções deste século como uma saída em falso. Não é o facto de não terem correspondido à meta socialista que equivocadamente os seus protagonistas e todos nós delas esperávamos que lhes tira a grandeza. Desde logo, porque emancipar um quarto da humanidade das relações de servidão e desbravar-lhe o caminho para a modernidade é mais do que suficiente para as colocar entre os maiores acontecimentos da história. Sem elas, o mundo, tal como hoje o conhecemos, seria inconcebível.

Depois, porque as deformidades e a longa agonia dos regimes ditos “socialistas” não são atribuíveis a “erros”, fosse de quem fosse. Não foram os comunistas que “traíram” a revolução, foi esta que os moldou e triturou à sua medida. Atravessámos um século de revoluções burguesas retardadas, forçadas a pedir de empréstimo ao proletariado o papel dirigente na demolição das velhas instituições, para o sacrificar em seguida, porque assim o exigia a sua tarefa histórica de acumulação capitalista primitiva.

Não vale a pena, pois, chorarmos o ideal comunista manchado, pela simples razão de que era irrealizável naqueles momentos, naqueles países. Deveremos antes maravilhar-nos pelo protagonismo assumido pelos operários e camponeses em revoluções que ainda não lhes pertenciam. O que é sinal de uma época de transição: as revoluções burguesas já só produzem abortos monstruosos mas ainda não estão reunidas as condições para o triunfo da revolução socialista. Será bom tentarmos interpretar a esta luz as convulsões que aí vêm.

2. Não vejo nenhum motivo por que o comunismo deva autocriticar-se pelo “messianismo” em que esteve mergulhado neste século. As explosões de ódio aos privilegiados, a ânsia mística de igualitarismo, a tradução ingénua do marxismo em dogmas e preceitos morais foram a forma de expressão possível dum mundo medieval em explosão criadora. Era inevitável que as revoluções transmitissem ao movimento, a par do seu poderoso impulso plebeu anti-imperialista e antifeudal e da sua demonstração prática de como se toma o poder, também o reflexo das suas limitações. Mas foi só graças a elas que um movimento operário embrutecido sob a ordem imperialista recebeu alguma vitalidade.

De resto, nenhuma revolução real pode existir sem ódio, paixão, impulsos bárbaros, visto que põe em movimento massas oprimidas e não puros intelectos. Como poderiam milhões de seres humanos dispor-se a enfrentar os sacrifícios terríveis da revolução se lhes faltasse o “combustível” do ódio ao opressor, esse elemento-chave da consciência política? Como poderia estabelecer-se um mínimo de justiça popular em tempo de carência, fome, ignorância senão pelo igualitarismo mais estrito, com todas as violências daí resultantes? Como não havia o fim da opressão de aparecer aos oprimidos rodeado por uma aura mística?

Talvez as revoluções do século XX sejam vistas no futuro como pequenos acidentes preparatórios da passagem mundial ao comunismo; mas a sua busca pioneira de uma nova ordem social não pereceu; os seus participantes não se enganavam ao vê-las como uma promessa de redenção final dos explorados: se algum dia a humanidade chegar ao cimo da escada será graças aos limitados degraus entretanto franqueados por comuneiros, bolcheviques, maoístas… É isso que dá a Lenine e a Mao a estatura de gigantes, independentemente do inevitável naufrágio posterior das suas ambições.

Numa palavra, não vejo motivo para nos apiedarmos da limitação das perspectivas dos que nos antecederam, nem creio que nos caiba a nós, cidadãos do primeiro mundo farto e civilizado, definirmos os limites “politicamente correctos” a exigir às revoluções dos párias para se tornarem “aceitáveis”.

3. É claro que, quando chegou a “hora da verdade” dessas estranhas revoluções burguesas, com o seu cortejo de aberrações, a crise instalou-se no movimento comunista. Mas esse longo definhamento do marxismo e dos partidos comunistas, em conluio com regimes tenebrosos, tentando descortinar na tirania burocrática sinais de socialismo, abdicando do espírito crítico, rastejando perante o culto do líder “sábio”, ignorando crimes monstruosos, não surgiu por propensão para a “imolação” ou o “sacrifício místico”, e sim porque esse pseudo-socialismo, stalinista, maoísta, fosse ele qual fosse, era o único ponto de apoio do movimento comunista e operário face ao colosso imperialista.

Na realidade, por detrás do discurso optimista sobre a “crise geral do capitalismo” com que os regimes do Leste e os líderes comunistas do Ocidente tentavam “animar as hostes” havia uma enorme incapacidade para fazer frente à crise, ao fascismo, à guerra mundial e à manifesta atracção das massas pelo guarda-chuva social-democrata. E isto porque o capitalismo, fortemente abalado pela amputação sofrida em 17 (e agravada em 1949), prosseguia a sua marcha expansionista. A burguesia não perdia mas reforçava a capacidade para submeter as massas à sua ditadura. A “última fase do capitalismo” estava ainda no começo.

Submetidos a essa enorme desproporção de forças, os comunistas europeus, mergulhados numa etapa recuada de propaganda e agitação, comportavam-se como se estivessem em plena preparação da revolução; só lhes restava agarrar-se à crença de que tudo dependia de saber imitar a audácia e o génio dos bolcheviques e manter uma fé ilimitada no “campo socialista”…

A degeneração reformista e revisionista do comunismo europeu foi tanto fruto da decadência da União Soviética, como dos próprios factores internos das nossas sociedades. E não nos ajuda muito atirarmos hoje as culpas para Staline, Kruchov ou Brejnev.

4. Trata-se afinal de reconhecer o atraso revolucionário do mundo avançado, constatação antiga que tende a ser esquecida na actual onda de desencanto com o bolchevismo e de “retorno a Marx”. Decerto, em termos económicos, os países de capitalismo altamente desenvolvido reúnem já as premissas do socialismo; mas não em termos sociais e políticos.

Diz-se agora com frequência que o “terceiro mundo” penetrou no primeiro e que a miséria e a revolta das massas tendem a igualizar-se em todos os continentes. Convém não exagerar. As metrópoles do capital, mesmo com os seus abismos sociais, nada têm de comum com a espantosa agonia dos países subjugados. Explosões como a de Los Angeles ou a do Outono francês testemunham a irremediável decadência do sistema mas carecem dos ingredientes que conduzem a crises nacionais gerais – nomeadamente, uma fractura política nítida entre proletariado e pequena burguesia. Ora, é justamente esse corte com o sector burguês que lhe fica contíguo que dá a medida do amadurecimento do antagonismo entre o proletariado e a ordem capitalista, que indica a sua saída da menoridade, a sua capacidade para atrair para o seu lado as vastas massas semiproletárias – numa palavra, a sua preparação para a revolução. E não é baptizando de “proletariado” a totalidade da população assalariada, como se tornou agora hábito em certos meios marxistas académicos, que se resolve o problema; pelo contrário, obscurece-se atrás dum falso optimismo.

Duvido seriamente, caro Ângelo, que a luta pelo comunismo venha a ser, mesmo daqui a cem anos, uma tarefa capaz de mobilizar “clubes de ciência popular, laboratórios experimentais, associações de estudantes e as mais diversas organizações de base de expressão cosmopolita.” Acredito antes na exasperação da postura anticomunista das camadas médias à medida que se aprofundar a crise do sistema, receosas do que podem perder com a revolução. O permanente borbulhar do reformismo imperialista aí está a testemunhar o suborno dessas camadas pela grande burguesia.

Estamos em sociedades em decomposição, onde as excrescências parasitárias do capital envenenam a atmosfera. A colossal concentração dos capitais, a proliferação cancerosa das camadas auxiliares, cujo destino está ligado ao do imperialismo, o aperfeiçoamento extremo dos aparelhos de Estado, de controlo democrático-burguês e de manipulação ideológica, bloqueiam a erupção de crises revolucionárias no “primeiro mundo”, apesar do esgotamento do sistema pela queda inexorável da taxa de lucro.

5. O capitalismo cresce inelutavelmente em direcção ao comunismo – mas isto só é verdade à escala mundial e a longo prazo. Se desta ideia geral deduzirmos que a máxima concentração capitalista produz a máxima aproximação à revolução, tenderemos a “descobrir” germes de socialismo onde eles não existem. É o que faz, quanto a mim, Ângelo Novo quando admite que “pode acontecer que o capitalismo vá ‘gerando em si próprio os seus coveiros’… sob a forma de ‘nichos’ de trabalho associativo altamente produtivo”, e que “o próprio desenvolvimento espontâneo das forças produtivas vá criando, no seio da sociedade capitalista, vantagens competitivas para a empresa ‘socialista’. Esta provaria imediatamente a sua superioridade acumuladora e alastraria rapidamente, um pouco como a oficina manufactureira capitalista se vulgarizou e expandiu no século XVI sob o regime feudal”. Só que… a comparação não vale, porque, como todos sabemos, o regime capitalista, ao contrário do sistema senhorial, não deixa espaços vazios por onde possam crescer novas relações de produção. Dentro do mercado capitalista não podem medrar empresas não fundadas na extorsão de mais-valia; a natureza do capitalismo simplesmente não o permite.

Aliás, toda a hipótese dum progresso das metrópoles em direcção ao socialismo que abstraia da sua relação devoradora com os povos escravizados desemboca em puras fantasmagorias. As tecnologias de ponta e os “espaços de liberdade”, aqui, repousam, lá, sobre as hecatombes pela fome, as matanças étnicas e os esquadrões da morte. Se algum dia as metrópoles do capital entrassem na era da robótica e da internet, o resto da humanidade teria regredido para a idade das cavernas. Socialismo? Seria antes o auge do imperialismo. Felizmente, isso parece muito improvável.

6. Por que não admitir então que a revolução irá continuar a avançar pelas nações subjugadas, precisamente por onde o socialismo não está maduro? Isto pode não ser tanto o contra-senso que parece à primeira vista. O fenómeno já foi visto antes na história. Por vezes, um modo de produção caduco bloqueia, pela sua decomposição, a passagem a novas relações sociais que ele próprio preparou e torna necessárias. O que é o imperialismo senão uma longa história de apodrecimento social resultante dum eficaz bloqueamento da revolução?

Acontece então que a solução do problema tem que vir do exterior, como se a história tivesse que contornar o obstáculo para prosseguir a sua marcha. A revolução progride de forma abortiva pelos elos fracos da periferia, ainda sem condições para passar ao novo modo de produção mas que aproximam a sua eclosão “por tentativas”, se assim se pode dizer. Não foi isso, afinal, que indicaram as revoluções nacionais-camponesas na Rússia e na China, enquanto viveram? Talvez o “centro das tempestades revolucionárias” permaneça ainda por mais algumas décadas sobre as nações atrasadas. É aí que se observa uma acumulação inaudita de factores revolucionários depois que falharam as esperanças num desenvolvimento nacional e ficou impossibilitado o surgimento duma formação capitalista normal.

A ideia, hoje corrente, de que o estrondoso colapso do Leste toma impossível a repetição de revoluções do mesmo tipo pode ser demasiado simplista. Talvez o próximo episódio da marcha da revolução mundial nasça de explosões das massas famintas e desesperadas de Calcutá, do México ou da Indonésia, quando chegarem ao ponto de gerar uma direcção comunista capaz de as conduzir à expulsão do imperialismo e dos seus agentes. Revoluções que ignorarão a recomendação algo ingénua, que daqui lhes é lançada, para que se articulem primeiro numa Internacional porque só a revolução mundial pode ser triunfante (o que são elas senão erupções incontroláveis da revolução mundial?).

Aliás, uma nova Internacional Comunista digna desse nome não nascerá certamente da conjugação dos centros marxistas “adiantados”; precisará da tremenda força gravitacional de milhões de seres humanos em movimento, único impulso capaz de polarizar forças, clarificar o ambiente, separar águas entre a revolução e o reformismo, como fez há 80 anos a revolução russa. Revoluções que exibirão de novo certamente o seu cortejo de manifestações atrasadas, o seu igualitarismo primitivo, nacionalismo, autoritarismo e misticismo, próprios de sociedades em transição para o capitalismo; que deixarão muito a desejar em matéria de democracia socialista, para que não estão de forma nenhuma preparadas; mas que poderão aproveitar a herança da Rússia, da China, do Vietname, de Cuba, para ir além das suas experiências, se o marxismo as ajudar.

E se assim for, a essas revoluções imperfeitas teremos mais uma vez, nós, os comunistas do primeiro mundo que prestar solidariedade se quisermos manter fidelidade à linha do comunismo e da emancipação da humanidade. Sempre atentos a qualquer hipótese para derrubar a fortaleza onde estamos aprisionados mas sobretudo conscientes da máxima prioridade para o apoio às revoluções reais, lá onde elas surjam.


Inclusão 25/10/2016