A Ruptura com o PCP em 1964-1965 (3)

Francisco Martins Rodrigues

2007


Primeira Edição: Texto inacabado, inédito, possivelmente de 2007

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


Uma polémica não tão antiga: o reformismo é um beco sem saída

Quando insistimos em conceber a política como um método para ganhar as massas para a ideia do derrube da ordem burguesa, o que implica promover a hegemonia do proletariado pela crítica da pequena burguesia, e portanto combater o oportunismo nas fileiras revolucionárias, e portanto construir um partido capaz de se revolucionarizar permanentemente… suscitamos o escárnio dos representantes da “esquerda moderna”. Consideram a nossa concepção da política como “sectária”, como um “esquema que já não é do nosso tempo”, responsável pelas derrotas da esquerda no passado e cuja única função seria justificar “seitas de iluminados”.

Para os modernos campeões dos “novos movimentos sociais”, a política de esquerda é simples, aberta, intuitiva: “Unir todos os que podem ser unidos na aspiração de um outro mundo possível”, concentrar-se nas causas “abrangentes”, pôr de lado as “disputas teológicas” sobre a linha justa…

A muitos pode parecer atraente esta promessa de popularidade. Mas isto só quer dizer, muito simplesmente, que eles trocaram a visão da política de esquerda como preparação da revolução por uma visão “evolutiva”, “ampla”, gradualista, reformista. Interpretam o trabalho de massas como a adaptação necessária aos limites da legalidade burguesa e, a pretexto de utilizar as instituições, deixam-se domesticar por elas. Não precisam de demarcações de classes, nem de leninismo, nem de lutas de tendências porque não têm um objectivo revolucionário.

Em todo o arco da nossa esquerda formou-se um consenso, que a maioria não exprime em voz alta por achar melindroso, mas que todos intimamente têm por indiscutível: a revolução violenta dos oprimidos contra os opressores, a tomada do poder pelo proletariado, já não faria parte da nossa época. Não haveria portanto alternativa ao caminho reformista. E vá de elaborarem alternativas construtivas [...]

Claro que as objecções à viabilidade da insurreição não faltam: as mudanças no proletariado e na estrutura de classes, a integração mundial dos sistemas de poder e repressão. [...] Só um charlatão pode afirmar que conhece a via para a derrota do imperialismo, para o triunfo de uma revolução violenta e radical dos oprimidos, para a expropriação da burguesia. Mas essa dificuldade não pode justificar que se substitua uma pretensa impossibilidade por outra ainda maior. (Marx: “O que é utópico, etc). Argumenta-se que ainda nunca vimos o proletariado libertar-se e criar uma ordem nova, superior, por meio da revolução; como se através da via reformista isso alguma vez tivesse acontecido! O argumento dos nossos críticos deve ser virado ao contrário: ainda tivemos tão poucas experiências revolucionárias que é absurdo estar a dizer que pela revolução não se vai lá. O que tivemos, sim, e continuamos a ter, são centenas de promessas reformistas frustradas, traídas, afogadas em sangue. Se alguma coisa demonstra a história do século XX, é justamente que o reformismo é um beco sem saída que eterniza a nossa prisão no capitalismo.

Se o nosso alvo for o derrube da ordem existente (seja qual for a distância a que este se possa encontrar), logo compreendemos a importância decisiva de tudo o que favoreça a acumulação de forças revolucionárias, e a necessidade de combater sem tréguas o que a prejudique. Os lirismos ideológicos da “união pelo menor denominador comum” de “attacs” e similares significa que eles tentam compensar pela ampliação indefinida (na realidade ilusória porque invertebrada) a abdicação do antagonismo com o poder. Começam por dizer: “Já que a luta pelo socialismo não está em cima da mesa, não vamos ficar parados; lutando por objectivos intermédios estaremos a aproximar condições mais avançadas”. E também: “É óbvio que a nossa meta é expropriar o capitalismo, mas, uma vez que não temos força para tal, se conseguirmos limitar-lhe os estragos, fiscalizá-lo, isso já será um passo importante”. Dizem ainda: “Já que a luta pelo poder hoje é uma loucura impossível, vamos criar uma corrente com objectivos limitados mas por isso mesmo tão ampla que acabará por impor a sua vontade”. Estes devaneios, próprios das camadas intermédias dos centros imperialistas, procuram dar uma aparência de racionalidade à sua acomodação. São críticos severos do imperialismo… dentro do sistema imperialista. Ao fim de meia dúzia de anos, a própria dinâmica interna do movimento que criaram eleva-os… a deputados.

O direito soberano de exploração do homem pelo homem, que é o verdadeiro pilar do “Estado de direito democrático”, contamina toda a vida social, esvazia as liberdades democráticas.

É preciso ver mais de perto a ideia de que a nova política neoliberal, pela sua brutalidade, retira o espaço à social-democracia. Ela acelera, sem dúvida, a incorporação dos velhos partidos social-democratas nas práticas “modernas” de governo, para poderem beneficiar da rotação eleitoral. Mas estimula o aparecimento de novas gerações de reformismos, sob cores novas. A tão celebrada onda “altermundialista” o que é senão a adaptação da atitude reformista às novas condições? Se calhar, o mais exacto é dizer que a escalada contra-revolucionária cria condições mais propícias para a difusão do reformismo em novas variantes. E tem a sua lógica: quanto mais brutal o inimigo, mais forte a tendência para a capitulação sob falsos pretextos. Atenção à ideia que surge nas nossas fileiras de que a partir de agora nos será mais fácil isolar os reformistas e ganhar as massas. Pode ser a porta aberta para cedências sob cores triunfalistas.

Consegues arrancar a alguns que se acham de extrema-esquerda a defesa da independência e hegemonia do proletariado. Mas quando se procura pôr essa ideia na prática, isto é, demarcar os interesses do proletariado dos da pequena burguesia que lhe está contígua, criticar a ideologia pequeno-burguesa – aí acaba a aparente concordância connosco. Sentem-se arrastados para um terreno “sectário”, que conduz ao “isolamento”.

É interessante este calor principista com que os activistas da nossa esquerda se batem pela “ligação às massas”. O seu ardor em “estar junto das massas” quando elas estão politicamente inertes só tem comparação com o pânico com que se afastam das massas e lhes pedem contenção quando elas empreendem acções revolucionárias. Durante mais de meio século o argumento pseudoleninista da “ligação às massas” fez escola na nossa esquerda como álibi para bloquear a formulação e a aplicação de uma linha revolucionária.

Muitos dos que em tempos foram – ou quiseram ser, ou pensaram ser – de esquerda, dedicam-se agora com fervor às causas cívicas. (Exemplos) Aos seus olhos, é uma maneira de compensar a sua demissão da política. Mas uma coisa não substitui a outra. As causas cívicas não são meia política revolucionária. São política anti-revolucionária pura e simples.

Há aquela crítica boçal do velho “esquerdismo” da UDP de 75 que diz: “Se nós naquele tempo tivéssemos chegado ao poder, tínhamos feito só desgraça, com aquelas ideias sectárias púnhamo-nos a dar tiros uns nos outros”, etc. É um argumento imbecil porque esquece que “chegar ao poder” significaria que o país atravessaria um processo revolucionário profundíssimo, no qual a extrema-esquerda, como todos os partidos, se transformaria, seria remodelada. Um verdadeiro partido revolucionário (que estávamos muito longe de ser) emergiria desse grande processo de luta. O nosso infantilismo de 75 não nos diz nada sobre o que seria um eventual poder revolucionário. Era apenas a marca do infantilismo dos pequenos grupos em busca da sua definição e da sua afirmação perante a classe. Aquilo que seriam os revolucionários no poder dependeria acima de tudo do percurso que fizesse a luta de classes, da profundeza da revolução. Este argumento é mais um dos estratagemas com que os reformistas da “nova UDP” tentam justificar a sua capitulação. Os novos “mencheviques” da UDP bloquista troçam dos “bolcheviques” que eles próprios foram em 75.

Têm-se sucedido, desde há bons trinta nos, as descobertas no campo do marxismo “criador”, as exortações para abrirmos os olhos para as transformações do capitalismo, as mudanças nas relações entre as classes, o resultado das novas tecnologias, etc., que teriam irremissivelmente envelhecido os pressupostos do leninismo. Contudo, se é certo que temos que vencer o espírito regressivo de toda uma corrente dogmática, que se aferra à “fidelidade” aos textos passados para justificar o seu oportunismo (PCP), o certo é que, quando apuramos o substrato político das inovações, quando as vemos postas à prova em situações concretas, resulta sempre a mesma inepta e cobarde tendência de adaptação à ordem burguesa, renovando-se continuamente com novos álibis “incontestáveis”.

A ideia de uma política guiada pelos interesses do proletariado parece entre nós ainda tão abstrusa que muitos a tomam por sinónimo de retirada da política. Para esses (e havia muitos no PCR), os conceitos de “hegemonia do proletariado” e [...]  pertencem  ao   campo da pura ideologia; para entrar na política “real”, seria preciso esquecer esses “purismos”.

Assuntos do passado? Não. Assuntos do presente. Quando hoje nos convocam para a luta urgente contra a máquina trituradora da UE, a globalização, os massacres imperialistas, a crise económica, temos que deslindar primeiro se esses pesadelos significam o mesmo para o proletariado e para as outras classes, se todos têm uma forma comum de os combater e um objectivo final semelhante.

Já não há as guerras coloniais, mas o chauvinismo é agora um problema face ao crescente proletariado imigrado. Já não há [...] mas [...]

Alertam-nos que é suicida querer combater o imperialismo em formação dispersa. Certíssimo! Então vamos ver se é possível chegar a acções comuns – mas a partir da prévia distinção dos diferentes interesses e sem ceder a chantagens para que abandonemos os pontos de vista do proletariado como sinais de “obreirismo”, “sectarismo”, “estreiteza”, etc. Vamos fazer o levantamento dos interesses do proletariado nessa luta, vamos encetar a nossa própria luta e depois veremos que propostas de acção comum podemos dirigir aos outros sectores, que frentes de acção imediata anti-imperialista poderemos erguer.

Voltam agora, num contexto novo, os apelos dramáticos para “pôr de lado tudo o que nos divide” – logo, devem os comunistas desistir de objectivos próprios, não eles! A “esquerda sem fronteiras” com que se acena aos ingénuos é uma fraude.

Há muito quem não perceba que a “crise” e “esgotamento” do comunismo resultam justamente da perda dos seus vínculos de classe, os únicos que lhe podem dar vitalidade e clarividência. E aqui vem sempre à baila a “desaparição da classe operária” [...]

Em escala cada vez mais vasta, o progresso económico assenta nas novas tecnologias, o que amplia o peso da camada de cientistas e técnicos e sobretudo os eleva a um papel social decisivo, ao mesmo tempo que os grandes contingentes do proletariado, desqualificados, são remetidos para uma posição subalterna. Ascenso dos quadros, identificados com a burguesia, descenso do proletariado – que mais é necessário para caracterizar um fase de bloqueamento da revolução anticapitalista?

O campo da extrema-esquerda foi abandonado pelos militantes que estavam de acordo em ser revolucionários na condição de lhes garantirem a tomada do poder a curto prazo. Como era isso que verdadeiramente os trouxera às fileiras do movimento, a esperança de acesso ao poder, assim que viram o caso mal parado passaram-se com nobres justificações para a área da mini-esquerda, onde podem exercer os seus talentos de administradores, jornalistas, parlamentares… Assim, a extrema-esquerda corre o risco de ficar povoada só por seitas de lunáticos que prometem fidelidade eterna ao espírito de Staline, Mao ou Enver Hoxha, e que confundem a sua recusa desesperada em olhar a situação actual com firmeza de princípios. Disto não precisamos. Precisamos de uma crítica do presente penetrada de um ódio total à ordem capitalista, porque só esse ódio dará a lucidez para as respostas estratégicas e tácticas eficazes.


Inclusão 12/11/2018