O Ano de 1961

Francisco Martins Rodrigues


Primeira Edição: ....
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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O PCP perante o começo das guerras coloniais

Bombardeamento a napalm da baixa do Cassange, sequestro espectacular do paquete “Santa Maria”, assalto às cadeias de Luanda, onda de massacres no norte de Angola, regresso de colonos em pânico, conspiração abortada de Botelho Moniz, reacção ultraobstinada de Salazar (“para Angola, rapidamente e em força!”), embarque de milhares de soldados – o ano de 61 começa em ritmo estonteante. Ao contrário do que se poderia esperar, contudo, o Partido Comunista Português tardou a reagir a este anúncio do fim do colonialismo português que colocava em bases inteiramente novas a luta pelo derrubamento da ditadura.

Se há uma campanha que domina a actividade do partido nesse ano de viragem, não é de modo nenhum a do lançamento da luta contra a guerra, mas a do reatamento da Unidade com as forças liberais, seriamente abalada pelo anterior “desvio de direita”(1). Álvaro Cunhal prosseguiu em 1961 a consolidação da sua direcção, iniciada no ano anterior com a sua evasão da cadeia e reintegração no posto dirigente. Das duas reuniões realizadas pelo Comité Central nesse ano, uma, a de Março, é dedicada à aprovação do relatório sobre o “desvio de direita”, e a outra, em Setembro, ocupa-se com a táctica para as “eleições” para a Assembleia Nacional. Por ordem da comissão executiva do CC, o aparelho e os funcionários do partido são mobilizados para reuniões, contactos e negociações com vistas à formação de listas da Oposição concorrentes às “eleições” de Outubro desse ano.

Esta lentidão do PCP em reagir ao desencadeamento das guerras coloniais reflectia uma política antiga, que subordinava a questão colonial à busca de uma aliança com a Oposição democrática.

"Unidade com as Colónias"

Se é um facto que, desde inícios dos anos 50, havia declarações programáticas do partido fazendo referência ao “direito de autodeterminação” dos povos coloniais, do ponto de vista político o PCP considerava mais “realista” encarar estes como “aliados do povo português na luta contra a ditadura fascista”. Vendo o fim do colonialismo como longínquo e receando que uma campanha anticolonial causasse contradições com a oposição republicana, o PCP procurava enquadrar as aspirações de emancipação das colónias como parte da luta pela instauração da democracia em Portugal.

É assim que, na imprensa do PCP da época, a questão colonial surge quase sempre sob a óptica da denúncia da entrega das “riquezas nacionais” aos imperialistas:

“O governo fascista de Salazar resolveu deportar milhares de trabalhadores para as colónias, mão-de-obra barata para os imperialistas norte-americanos e ingleses a quem criminosamente entregou o melhor das nossas riquezas coloniais”; “As colónias portuguesas, praças de armas e fontes de matérias-primas dos imperialistas americanos”, os quais se informam pormenorizadamente “sobre as riquezas existentes nas nossas colónias”, “apoderaram-se do melhor das riquezas das colónias portuguesas”; etc.(2)

Quando o Avante se referia propriamente à situação dos povos coloniais defendia em regra apenas o seu direito a melhores condições de vida… em unidade com os colonos portugueses:

“Uni-vos aos trabalhadores brancos, explorados e oprimidos como vós, que querem derrubar o governo de Salazar e criar um outro que possa trabalhar pela felicidade de todos os trabalhadores, sem distinção de raça ou de cor!”’(3)

Este anti-salazarismo multirracial veiculava uma ideia de integração, não a da autodeterminação.

Quando surgiu o “caso de Goa” com a pressão crescente dos patriotas indianos em torno dos enclaves portugueses, a tónica das posições assumidas pelo PCP foi semelhante. Punha-se em foco a necessidade de uma “solução pacífica do problema”, omitindo a inadmissibilidade da caquéctica presença colonial portuguesa num país que já conquistara a independência.(4) E denunciava-se a política de “traição” do governo de Salazar ao entregar concessões aos monopólios estrangeiros, ao mesmo tempo que negava à burguesia portuguesa “a montagem de novas fábricas no continente e nas colónias”(5) Esta linguagem, calculada para não ofender os sentimentos colonialistas dos democratas oposicionistas e da maioria da população, então ainda não receptiva para a ideia de poder vir a perder o “Ultramar”, era um recuo nítido em relação à atitude corajosa do Prof. Ruy Luís Gomes e outros dirigentes do MND (Movimento Nacional Democrático), levados a tribunal no ano anterior por terem defendido publicamente o direito de autodeterminação do povo de Goa, Damão e Diu.

Aliás, já na defesa de Álvaro Cunhal no Tribunal Plenário salazarista, em 1950, não houvera qualquer referência ao direito de autodeterminação e independência dos povos das colónias portuguesas; em vez disso, era exposta a tese de que são os comunistas os melhores defensores dos interesses da Nação traídos pela grande burguesia – e o conceito de Nação era estendido às colónias ao enunciar as empresas imperialistas aí instaladas, como se estas fossem um mero prolongamento do espaço nacional. Este colonialismo “esclarecido”, que também Bento Gonçalves assumira 14 anos antes, perante o Tribunal Militar, era agora particularmente chocante, porque, no intervalo, houvera a guerra mundial, o começo das independências coloniais e sobretudo o triunfo da grande revolução nacional na China, que deveriam ter levado Álvaro Cunhal a rever toda a posição do PCP a esse respeito.

A Declaração de 1957

Em 1957, finalmente, o 5º Congresso do PCP fez

“o reconhecimento incondicional do direito dos povos das colónias portuguesas de África, Ásia e Oceânia, dominados por Portugal, à imediata e completa independência”(6).

O PCP, alertado pelo avanço do movimento anticolonial e decerto instruído pelos contactos da altura com os partidos da União Soviética e da China, tomava consciência dos “ventos da História”.

Mas este passo em frente quanto à questão colonial não era tão efectivo como poderia parecer. Porque, reconhecendo aos povos coloniais o direito à independência, o congresso colocava como tarefa

“um esforço orgânico de todo o nosso partido para ajudar à formação no mais breve espaço de tempo, de partidos comunistas nas colónias, com vida própria”(7).

Seguindo esta orientação, foi lançada em Luanda uma tentativa algo precipitada para a formação de um partido comunista, gorada por uma série de prisões (o processo de 1959).

Esta urgência tardia na formação de partidos comunistas nas colónias, quando já havia movimentos de libertação constituídos ou em fase avançada de formação, significava muito claramente que o PCP (provavelmente aconselhado pela URSS) tentava assegurar posições próprias nas novas nações africanas emergentes. Os conceitos chauvinistas que se haviam infiltrado silenciosamente nas fileiras do partido a coberto da Unidade com a oposição republicana adaptavam-se à nova situação, não desapareciam. E causaram alguns choques internos no PCP nos anos iniciais da guerra colonial.

Conflitos Internos

É pouco conhecido o facto de o PCP ter editado em Março, logo após o começo da guerra, dois manifestos diferentes em nome do Comité Central. Um primeiro manifesto, apelando “aos operários, camponeses e soldados” para se colocarem ao lado dos povos das colónias e contra o seu próprio governo, foi retirado da circulação por decisão de Cunhal. Em seu lugar, foi editado um outro em que se alertavam “todos os portugueses, todos os democratas e patriotas”, para os “prejuízos e sofrimentos” que para eles acarretaria a guerra nas colónias e para a necessidade de união de todas as forças na luta contra a guerra. A alternativa era clara: o PCP rejeitava uma linha de união entre os trabalhadores portugueses e os povos das colónias, com receio de que isso prejudicasse a sua aliança com a oposição republicana. Como foi dito numa reunião do Comité Central, em 1962, o partido não podia “deitar por terra as posições conquistadas”.(8)

Orientação confirmada logo a seguir, em Maio, quando o PCP se viu confrontado com o “Programa para a Democratização da República”, lançado pela ADS (Acção Democrato-Social). Os líderes republicanos colocavam, como seria de esperar, a questão colonial em termos da necessidade de reformas democráticas na Metrópole e nos “territórios ultramarinos”, mas sem pôr em causa a legitimidade do domínio português sobre os povos africanos. Suscitada em algumas reuniões do PCP a necessidade de criticar esta variante “democrática” do colonialismo, como condição para a descolagem duma oposição popular à guerra, o Secretariado do CC opôs-se a qualquer crítica pública, já que isso poderia deitar por terra os esforços com vistas à Unidade, nas “eleições” desse ano. A questão colonial continuava a ser vista como parte da política interna da Oposição.

Logo depois, a questão da deserção despertou acesos conflitos na organização do partido. Com a mobilização e os embarques de tropas, surgiu, especialmente no sector estudantil, que alimentava o contingente dos oficiais milicianos, uma forte tendência para desertar. Os jovens comunistas e simpatizantes não queriam ir para África massacrar guerrilheiros e populações, não queriam ser cúmplices nesse crime. A resposta da direcção do partido foi desde logo contra, pelo “dever de acompanhar as tropas para as consciencializar e organizar contra a guerra”. E citava-se, em abono desta posição, o trabalho militar do partido bolchevique russo durante a primeira guerra mundial, que tinha gradualmente levado às insubordinações colectivas, às confraternizações entre tropas dos dois campos e à desagregação do exército. Mas, objectavam os militantes, podia-se comparar a táctica dos comunistas russos, adequada a exércitos lutando em frentes de combate definidas, com esta guerra “contra-subversiva”, com uma tremenda desproporção de forças e de armamento, guerra de ocupação, de massacres e torturas?

A direcção do partido manteve-se inabalável. Quando muito, após extenuantes discussões, admitiu as deserções desde que “organizadas, em grupo e no terreno”. A deserção individual antes do embarque era condenável, pois representava “virar costas às massas por medo aos riscos da luta”. Afinal, o que a experiência demonstrou, logo nesse primeiro ano de guerra, foi que desertavam, regra geral, os militantes mais firmemente opostos à guerra e embarcavam os mais propensos à vacilação e ao compromisso, os mais receosos de “estragar a vida” com a fuga aos deveres militares.

Por último, a guerra pôs a nu o fracasso da orientação seguida pelo PCP em relação à organização militar. Com efeito, depois do desastre de 1936(9), os esforços do partido tinham-se deslocado da criação de células comunistas de soldados e marinheiros para a formação de núcleos de oficiais antifascistas. O PCP abandonara, apesar dos retóricos apelos aos “filhos do povo fardados”, o trabalho de subversão das forças armadas. Em 1961, o partido imprimia numa sua tipografia clandestina o boletim Tribuna Militar, colaborado por oficiais, com apelos à rebelião contra o regime, fazia umas reuniões com alguns oficiais para colher informações e aperceber-se do estado de espírito da tropa e era tudo… Nos raros contactos com soldados e marinheiros, a substância era a da luta pela melhoria do rancho e contra os abusos da disciplina. Palavras de ordem antifascistas não existiam. Sabotagem do esforço de guerra estava fora de questão.

O que fazia todo o sentido: uma vez que se atribuía à oficialidade democrata um papel chave no “levantamento nacional” e sabendo-se que os oficiais, mesmo os mais liberais, não tolerariam rupturas na cadeia de comando, havia que prescindir de uma organização comunista de soldados, que tenderia naturalmente a virar a tropa rasa contra os comandos. Em abono desta orientação, um dirigente do PCP citava a política seguida por Mao Tse-tung na luta contra o exército de Chiang Kai-chek”(!).(10)

O ano de 1961 termina com a queda dos enclaves portugueses na Índia, o desvio do avião da TAP e o gorado assalto ao quartel de Beja, conduzido por Varela Gomes, acção em que participam, como é conhecido, militantes do PCP, à revelia da direcção. Tornava-se gritante o atraso da direcção do PCP quanto às novas exigências de uma oposição violenta à ditadura e à guerra nas colónias.

O Preço do Compromisso

Se analisarmos, à luz da situação nesse ano de 1961, a política anticolonial do PCP, torna-se patente o compromisso que a inspirava: condenava o governo fascista por reprimir os patriotas africanos mas não saudava os movimentos de libertação por terem desencadeado a guerra contra o ocupante português; reclamava a cessação da guerra mas não apelava à acção na retaguarda para a derrota militar do governo; repudiava as atrocidades de “meia dúzia de degenerados” mas não denunciava o racismo da massa dos colonos e o chauvinismo secular entranhado no povo português e na própria classe operária; enumerava os prejuízos acarretados pela guerra à população e à economia e com isto passava para segundo plano as obrigações de solidariedade prática aos povos africanos; sob o apelo ao exército para não reprimir as populações africanas ocultava-se a desistência do trabalho de subversão comunista no interior das forças armadas; e as ilusões num vasto movimento “de todos os democratas, patriotas e pessoas de coração” contra a guerra serviam para apagar oconflito de interesses entre os trabalhadores e a burguesia oposicionista, transportando o cego egoísmo desta para o interior do movimento popular.

A oposição do PCP nesses anos iniciais da guerra vacilava porque tentava conciliar o inconciliável: os interesses nacionais dos povos africanos e os interesses colonialistas da oposição liberal; a luta contra a guerra e os preconceitos chauvinistas e racistas do povo; o dever de solidariedade activa aos africanos e a recusa à luta militar contra o regime.

Só a partir de 1966, com o avolumar da luta armada de libertação, o PCP passará a uma oposição mais activa à guerra, mas ainda aqui desempenhou um papel preponderante o interesse estratégico da URSS. Na época, como se sabe, os governantes soviéticos disputavam ao imperialismo dos Estados Unidos a influência sobre os movimentos de libertação africanos, ao mesmo tempo que tentavam desviar estes da atracção da China, então em busca da sua própria base de apoio terceiro-mundista. A direcção do PCP era nesta matéria um veículo indispensável para chegar aos movimentos de libertação.

Por fim, o avizinhar do descalabro, o descontentamento crescente entre as tropas e na população e os sinais de crise no regime fascista, convenceram a direcção do PCP a lançar-se francamente nas acções de sabotagem do esforço de guerra e a empenhar-se a fundo no pronunciamento militar. O 25 de Abril acabou por dar um final feliz à tragédia das guerras coloniais e Álvaro Cunhal pôde proclamar o êxito da “revolução democrática e nacional”. As cedências e vacilações do PCP nos primeiros anos da guerra foram esquecidas. Mas esses anos perdidos tiveram um pesado custo na evolução posterior do regime democrático em Portugal e dos novos regimes africanos.


Notas de rodapé:

(1) No período 1956-59, sob a direcção de Júlio Fogaça, Pires Jorge, Octávio Pato, Pedro Soares, Dias Lourenço, o PCP inflectiu a sua política de acordo com a linha da “coexistência pacífica” praticada por Moscovo, propondo nomeadamente o “afastamento pacífico de Salazar”, o que o levou a trocar a busca tradicional de alianças com a corrente republicana-liberal por uma aproximação a grupos golpistas, salazaristas descontentes, católicos, etc. (retornar ao texto)

(2) “Ruína, miséria e exploração dos povos das colónias”, Avante nº 152, Outubro 1950: “Os salazaristas seguem o caminho da ruína e da entrega das colónias aos monopolistas estrangeiros”; “Desemprego, fome e miséria nas colónias”, Avante nº 153, de Novembro de 1950; Avante nº 164, Janeiro de 1952; “Fora com os americanos das colónias!”, Avante nº 188, Junho 1954; etc. (retornar ao texto)

(3) “As massas trabalhadoras africanas lutam contra a escravatura e contra o fascismo”, Avante nº 138, de Julho de 1949; “Trabalho escravo nas colónias. Chamamos os povos coloniais à luta contra os negreiros salazaristas!”, Avante nº 163, Dezembro de 1951: “Os povos das nossas colónias devem organizar-se e lutar… pela igualdade de direitos, pela defesa dos seus interesses”; “Os povos coloniais são poderosos aliados na nossa luta pela paz e pela independência”, Avante nº 182, Novembro de 1953. (retornar ao texto)

(4) “Povos de Goa, Damão e Diu, Avante na luta pela vossa libertação!”, Avante nº 170, Agosto de 1952. “Política provocadora e agressiva do governo no caso da Índia ameaça a vida pacífica do povo português!”, Avante nº 190, Agosto de 1954, exprime a via paternalista da emancipação: “Dar autonomia aos povos coloniais”, “prestar-lhes auxílio fraterno, abrir-lhes o caminho para uma vida livre”, “Pela solução pacífica dos casos de Goa, Damão e Diu!”, Avante nº 191, Setembro de 1954. (retornar ao texto)

(5) “O caminho para uma ampla Frente Nacional Anti-Salazarista”, informe da Comissão Política apresentado por “Amílcar” à VI Reunião Ampliada do CC do PCP. Edições “Avante!”, 1955. (retornar ao texto)

(6) “Sobre o problema das colónias”, informe de “Freitas” ao V Congresso do PCP, 1957. (retornar ao texto)

(7) Resoluções do V Congresso do Partido Comunista Português. Edições “Avante”, Outubro 1957. (retornar ao texto)

(8) Encarregado de redigir o primeiro manifesto, fui depois informado de que este fora retirado da circulação por “não corresponder à linha do Partido”. (retornar ao texto)

(9) O desmantelamento da organização comunista na Armada, após o fracasso da revolta de 1936. (retornar ao texto)

(10) Blanqui Teixeira, numa reunião da Comissão Executiva do CC, em 1962. Esquecia este emérito estratego militar que o aliciamento de oficiais do exército inimigo era para os comunistas chineses apenas um elemento auxiliar, numa luta cujo ponto de apoio era o seu próprio exército de libertação e as suas próprias zonas libertadas. (retornar ao texto)

Inclusão 23/05/2018