Redescobrir o Comunismo

Francisco Martins Rodrigues


Primeira Edição: Texto incompleto, distribuído por FMR para discussão interna, com trechos que serviram de base a artigos já publicados, e outros trechos inéditos, s. d.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Nem todos os que acompanham o percurso desta revista estão satisfeitos com o trabalho realizado, longe disso. Segundo alguns, a PO, depois de certos avanços iniciais, está a patinar, quase reduzida ao papel de agitação em torno dos problemas diários.

As dificuldades teóricas serão insuperáveis enquanto não nos lançarmos na prática ao ajuste de contas com o passado do movimento comunista, numa perspectiva renovada sobre a luta de classes na nossa época. Um camarada é mesmo de opinião que a PO não cumpriu nenhum dos objectivos que se propôs e que neste momento em nada contribui para o relançamento do movimento comunista no nosso país. Simultaneamente, surge com certa insistência a ideia de que seria hora de “passar das reflexões ideológicas à acção prática” e para tal, formar sem mais demora um novo partido comunista.

Tentarei neste artigo enumerar algumas das dificuldades com que nos defrontamos, que são também a causa que nos leva a encarar com a maior prudência a tarefa da formação do partido comunista.

Germinação: cuidado com os partos prematuros

Em minha opinião, os camaradas que apelam à criação rápida do partido, convictos de que isso depende apenas de um acto de vontade de um núcleo de militantes audaciosos, subestimam o próprio partido. Vêem-no com os olhos de há trinta anos, quando a iminência da crise final do regime fascista e o apoio internacional da corrente marxista-leninista justificavam todas as temeridades… e ilusões. Era o tempo em que se procuravam fórmulas mágicas em Lenine, Staline e Mao. O modelo do partido comunista formado numa reunião conspirativa de uma dúzia de membros foi perfeitamente adequado às condições da repressão fascista, quando a gestação do partido era obrigada a fazer-se de forma subterrânea; seria injustificado hoje e enquanto se mantiverem as actuais condições, quando o processo político e ideológico se desenrola à luz do dia.

Hoje, o problema põe-se em termos inteiramente diferentes. Nem vivemos uma situação de “fim de regime” como a de 1970, nem, sobretudo, temos o direito de acreditar como então na facilidade da edificação do partido.

A experiência vivida obrigou-nos a aprender urna noção marxista que esquecêramos: o partido comunista só será autêntico se exprimir politicamente uma corrente social e ideológica bem definida, isto é, se assentar num programa e numa fracção avançada do proletariado.

Ora, essa corrente encontra-se por enquanto em estado embrionário. Nem sequer é um problema específico nosso; é, como todos sabem, um fenómeno mundial. Após o afundamento do movimento comunista que durante a maior parte deste século se inspirou na revolução russa e na URSS (depois também na revolução chinesa) os comunistas debatem-se com uma catadupa de interrogações, impostas pelas novas realidades: como delimitar os interesses autónomos do proletariado no mar da ideologia democrático-burguesa? como ganhar o apoio das grandes massas assalariadas? como acumular forças? como combinar a luta revolucionária em cada pais com a dimensão internacional da revolução? como instaurar e preservar a ditadura do proletariado nas condições do cerco imperialista? como deter a agressão e espoliação dos povos oprimidos pelo imperialismo? como instituir no partido o centralismo democrático?

É certo que a resposta prática a cada um destes problemas só pode ser encontrada através da própria luta: “descobre-se o caminho andando”. E ilusório contudo pensar que a marcha se pode iniciar às cegas, quando é tão largo o fosso entre os objectivos visados e os meios ao nosso alcance. Pessoalmente, penso que vai ser preciso atravessar uma fase preliminar — que nenhum “acto de vontade” pode suprir — de tacteamentos, experiências em pequena escala, especulações teóricas, antes que se reúnam as condições para a formação do partido comunista.

O partido (tomando como assente que falamos de um autêntico partido de classe e não de uma qualquer seita que se decreta a si própria “o único e verdadeiro partido da classe operária”) só surgirá pela confluência de uma série de movimentos de massa espontâneos ou semi-organizados, grupos de propaganda, núcleos de intervenção sindical e cultural, jornais e revistas — e isto ao fim de um certo tempo de debate e confronto aberto de posições, com os conflitos, dúvidas, avanços e recuos inerentes.

Assumir o período germinatório actual como uma etapa necessária, pôr de lado tanto as lamentações como os planos “grandiosos”, que encobrem a renúncia ao trabalho, multiplicar as experiências locais, pontuais, de propaganda, agitação e organização revolucionárias — esta pode ser uma primeira resposta para sair do impasse. A PO é um elemento, não se lhe pode pedir que resolva tudo.

Somos todos proletários?

Desde logo, a criação do partido proletário choca-se com a questão dos limites actuais do proletariado. Como resposta aos reaccionários arautos da “extinção do proletariado”, tem circulado nos meios de esquerda (entre nós, por exemplo, no PCP mas também no PSR e no PCTP/MRPP) a ideia de que proletários, segundo Marx, seriam todos ou quase todos os assalariados, o que elevaria as fileiras do proletariado, nos países capitalistas avançados, aos 80 ou 90 por cento da população. Naturalmente, os adeptos desta “teoria” não conseguem explicar como é que nestas sociedades “avassaladoramente proletarizadas” os interesses e ideias próprios do proletariado estão em recuo constante, mas isso é dificuldade que pouco lhes importa; o que é preciso é “sair por cima” da crise com respostas “positivas” e “mobilizadoras”…

Na realidade, ao omitir a produção de mais-valia como característica essencial do proletariado, este ponto de vista tenta introduzir nas fileiras estas grandes massas de trabalhadores dos serviços, que os marxistas sempre classificaram como semiproletariado, por terem as suas características próprias; pior do que isso, baptiza como “proletários” toda uma camada de auxiliares na extorsão da mais-valia, ou seja. verdadeiros inimigos do proletariado. Marx definiu perfeitamente a função desses chefes, capatazes, organizadores da produção. Lenine, meio século mais tarde, caracterizou não só essa “aristocracia operária”, mas a burocracia sindical e partidária, e toda uma série de outros assalariados em actividades parasitárias, como uma camada em crescimento nos países avançados, que rotulou como “imperialista até à medula” e arrumou na pequena burguesia, designando-a também por vezes como semipequeno-burguesa. Estamos pois perante duas concepções opostas: nas regiões imperialistas o proletariado cerca a burguesia ou encontra-se, lado a lado com o semiproletariado, cercado por uma multidão de activos destacamentos da pequena burguesia, interessados em impedi-lo de fazer a revolução? Ao optarmos pela segunda resposta, sabemos que nos separamos da quase totalidade dos que no nosso país se declaram de esquerda; censuram-nos o “sectarismo obtuso”, o “obreirismo irrealista”, o “pessimismo desmobilizador”, como aconteceu quando da nossa ruptura com o extinto PC(R). É uma constatação desagradável e que suscita muitas perplexidades, mas não vemos que se possa manter coerência com o marxismo se não se partir da constatação de que a única classe social capaz de empreender a liquidação do capitalismo é a dos produtores assalariados de mais-valia; e se é certo que estes tendem, à escala mundial, a constituir a maioria da sociedade, nos países imperialistas, pelo contrário, formam uma fracção decrescente da população.

E isto conduz-nos a uma segunda ideia-mestra quanto ao futuro partido comunista, nas condições deste novo Portugal-província-europeia: partido vocacionado para organizar a luta anticapitalista do proletariado (e em certa medida do semiproletariado) sob a hostilidade não apenas do poder instituído mas da democracia pequeno-burguesa, apostada na conservação do sistema.

O facto de o proletariado ser empurrado, pela sua própria natureza de classe, para a necessidade de derrubar o capitalismo, não nos leva a pensar que descubra facilmente esse caminho. É o contrário que acontece. Submetido ferreamente à omnipotência do capital, bombardeado pelas promessas democrático-burguesas, traído pelos antigos partidos comunistas, acicatado em escala crescente pela “revolta” fascista, o proletariado tem vindo a perder a noção da sua identidade. Se outras provas fossem necessárias deste estreitamento do terreno próprio do proletariado bastaria observar o declínio geral do movimento operário, a decadência organizativa, a menoridade ideológica. Isso nada tem de estranho, uma vez que, ao longo deste século, a evolução da luta de classes mundial lhe incutiu a convicção de que é impossível derrubar a burguesia e construir um sistema social alternativo ao capitalismo.

Em tempos de cerco esmagador dos valores burgueses, pela proliferação da pequena burguesia e pelo monopólio dos grandes meios da informação/ espectáculo, a reconstrução do partido só poderá ser levada a bom termo se este contrariar, junto da massa, as tendências espontâneas para o reformismo, para o chauvinismo, para o sindicalismo.

A luta no seio do proletariado pela implantação do seu partido comunista tem que ser simultaneamente uma luta contra as tendências reformistas espontâneas, isto é, as tendências para erigir a luta necessária por reformas em perspectiva geral, sacrificando-lhe a luta revolucionária.

Questão de nome mas não só

Está hoje bastante difundida nos meios da esquerda a ideia de que, devido ao descrédito a que chegou a denominação “comunista”, o novo partido deveria adoptar um nome diferente. Pensamos pelo contrário que esse partido só pode chamar-se comunista e que deve desde logo proclamar a sua diferença face a todos os outros partidos existentes. Defendemo-lo não uma simples manifestação de fidelidade a Marx e Engels (que se declararam comunistas) mas pelas próprias exigências actuais de afirmação do partido. Se sacrificarmos a nossa condição explícita de comunistas a considerações “tácticas” (defesa da legalidade, espaço de manobra, etc.), se envolvermos a natureza e fins do partido no nevoeiro das “conquistas progressistas” e da “transformação socialista da sociedade”, estaremos a roubar ao partido a ruptura que é a própria base da sua existência e a dar o primeiro passo para a absorção pelo reformismo.

Como é óbvio, isto não envolve só uma simples questão de nome: intitular-se partido comunista significa, desde logo. defender explicitamente o objectivo da expropriação do capital, da eliminação da burguesia como classe, do derrube por via revolucionária do Estado existente. E isto acarreta, segundo todas as probabilidades, o perigo da ilegalizaçào e uma mais que certa reacção da burguesia visando a eliminação do partido.

 [Alianças]
Princípios organizativos

Para alguns camaradas, a questão é ociosa, já que os princípios organizativos do futuro partido deverão ser simplesmente os do centralismo democrático, e tudo estaria dito. Ignoram ou esquecem que, sob esse nome. foi posta em prática, durante este século, toda a concepção de centralismo democrático recebida do movimento comunista internacional, um estilo de organização copiado do do PC da URSS no poder e que, este, embora usando a bandeira do “centralismo democrático” e das “normas leninistas do partido”, representava na realidade uma prática muito diferente da que vigorava no partido bolchevique, antes da tomada do poder e nos anos imediatamente posteriores (nomeadamente entre 1912 e 1921). Sob Staline, e nas condições da ditadura capitalista de Estado, todos os conceitos leninistas de vida interna do partido foram revistos e sub-repticiamente alterados para se adaptar às necessidades do regime. Foi esse novo “centralismo democrático” que todo o movimento comunista copiou, como uma espécie de “fórmula milagrosa” para chegar à conquista do poder, substituindo a confiança nas massas e no marxismo pela submissão aos aparatchiks.

De modo que. para encetarmos hoje a reconstrução de um partido comunista deveremos conhecer criticamente: 1) o funcionamento dos primeiros partidos marxistas, dos partidos da II Internacional até 1914; 2) o estilo de funcionamento do partido bolchevique no seu período revolucionário (1912-1921); 3) o estilo de funcionamento dos partidos comunistas até à sua degeneração revisionista. Só com este conhecimento, poderemos perspectivar as linhas gerais em que poderá materializar-se o centralismo democrático na nossa época, no nosso país.

Para os camaradas que consideram que isso não terá dificuldades de maior, gostaria de sugerir o seguinte dilema: como garantir que um partido realmente implantado nas massas e praticando real democracia interna (pedra de toque do autêntico comunismo), não abrirá caminho à preponderância das tendências oportunistas e reformistas, naturalmente prevalecentes nas massas nesta época de refluxo da revolução? Como evitar que o próprio curso da actividade diária alimente dentro do partido uma resistência passiva à linha revolucionária, uma adaptação aos limites da política burguesa? Como garantir a formação da opinião e da vontade democrática dos seus membros, a eleição e controlo democrático da direcção? Os camaradas que julgam que isto se resolve pela “educação ideológica”, pelos “movimentos de crítica e autocrítica”, etc., esquecem a profundidade deste fenómeno, que progride subterraneamente, de modo insensível; e também que a circulação do oportunismo no seio do partido comunista se faz usualmente de cima para baixo (quando uma direcção aburguesada arrasta a base do partido para soluções reformistas), mas também se faz de baixo para cima, de forma muito mais lenta e insensível, quando tendências reformistas incutidas na massa pela pequena burguesia se propagam gradualmente no partido.

Acumular forças — que forças?

Tem sido dito que a nossa recusa sistemática a manobras tácticas, a formas de acção inferiores, a alianças, acaba por nos condenar à imobilidade e à estagnação. Naturalmente, não tenho dúvida de que a acumulação de forças para a revolução não se faz num plano ideal, mas no próprio terreno do inimigo; só as seitas iluminadas começam por definir por si próprias as condições ideais que deveriam ser preenchidas pela realidade. Trata-se de partir do mundo que existe, inserir- se no movimento real e não pretender inventar um ao nosso gosto — a esse respeito não temos qualquer dúvida. O problema é que esta questão encobre em geral uma outra, muito séria: intervindo no terreno do real, que soluções e que formas de luta devem ser adoptadas para que as acções parcelares desestabilizem a ordem burguesa, abram pistas para além dos limites da sociedade existente, acumulem reais forças revolucionárias? Por outras palavras: como evitar que as acções parciais sejam absorvidas e recuperadas pelo sistema, como evitar que o nosso revolucionarismo de intenções se transforme, uma vez materializado em acções, em mero reformismo?

Quem pretender que isto é fácil de resolver ainda não sabe no que está metido. Para não ir mais longe, observámos no período recente três variantes de uma actividade pretensamente revolucionária mas que desacumula forças revolucionárias. Primeiro, o trabalho esforçado, minucioso, do PCP “com as massas”, que as encaminha para o seio das instituições burguesas e para o respeito supersticioso pelo parlamento e pela ordem burguesa, na mira de vir a merecer um lugar no governo pela via constitucional; esta estratégia (a que a UDP aderiu desde há duas décadas) conduz à degradação oportunista e à gradual integração no sistema. Temos, por outro lado, a opção do PSR por reivindicações, movimentos e formas de luta alternativos ao reformismo do PC, com a correspondente busca de “novas vanguardas”; traduz-se, apesar de mérito de algumas acções, numa forma de expressão da jovem pequena burguesia descontente, sem consequências de maior sobre a marcha do sistema, a não ser a rodagem de alguns quadros que, a seu tempo, irão ocupar o seu lugar na gestão do sistema. Tivemos, por último, a aposta das FP-25 nas acções armadas de guerrilha urbana como meio de “despertar” e “excitar” um movimento popular em declínio e que mais não conseguiu do que destroçar uns tantos militantes potenciais do movimento revolucionário; representou também ela uma outra variante da política pequeno-burguesa aplicada às massas.

São afinal três variantes da intervenção política da pequena burguesia, da mais conformista à mais radical, mas todas estranhas aos interesses revolucionários do proletariado. Naturalmente, balizam-nos o caminho, indicando o que não se deve fazer, mas não nos resolvem o problema do que é necessário fazer.


Inclusão 16/11/2018