Perguntas

Francisco Martins Rodrigues


Primeira Edição: Texto inédito, s. d.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


“Depois de tantos fracassos, ainda vale a pena gastar tempo a estudar as correntes marxistas?”

“Se Lenine não tem morrido tão cedo, outro seria o destino da União Soviética e do movimento comunista”. Certo ou errado?

“O que perdeu a URSS foram os privilégios dos dirigentes, o burocratismo, o autoritarismo de Staline

“O comunismo ainda não começou” — quer dizer que gerações de comunistas foram cegos?

“E Cuba? Não é obrigatório apoiar? E Venezuela?”

Temos uma tremenda carga de idealismo: o papel dos líderes, o papel do partido sobrepõem-se à análise concreta da situação concreta

Olhar mais longe. A degeneração reformista nasceu sempre da adaptação ao que parece instalado: o nível de negociação dos sindicatos, a coexistência pacífica entre as grandes potências… As rupturas revolucionárias nascem dos que vêem mais longe: a nova guerra que se está a preparar, a revolta que se acumula. Temos que agir em função do que está para vir, não do que domina neste momento.

A revolução está a acontecer agora. Podem faltar mais vinte etapas e 200 anos para chegar ao socialismo, mas isto que estamos a viver faz parte do processo de queda do capitalismo e do nascimento do socialismo. A exigência já é a sério, agora. Sem paixão revolucionária, sem ódio aos opressores não se vai longe como comunista

“A burguesia é estúpida”. Será? Eles actuam muitas vezes às cegas, a olhar para o imediato, mas têm um formidável instinto de sobrevivência – e a sua sobrevivência é montados em cima de nós. A burguesia tem a batalha perdida, historicamente, porque a corrida à acumulação do capital não pode deixar de tomar intolerável a vida da esmagadora maioria, não pode deixar de aumentar o exército dos seus inimigos. Mas não vacila. Nós é que vacilamos, nós é que perdemos de vista a guerra em que estamos metidos, nós é que sonhamos com grandes reconciliações.

Vou falar pouco dos grandes nomes do marxismo mundial, dos Kautski, Rosa Luxemburg, Lenine, Trotski, Staline, Mao… e mais da luta de classes concreta em que eles estiveram envolvidos. A revolução não é feita pelos grandes homens, a revolução produz os grandes homens.

Onda de apartidarismo, autonomia, espontaneísmo, fuga à política, horror e vergonha pelos erros passados, desarma a esquerda e limpa o terreno por onde avança depois a “nova esquerda” eficiente e parlamentar.

Não basta repetir que “o mundo não é uma mercadoria”. Vai uma grande distância entre indignar-se com a barbárie do capitalismo e agir deliberadamente com vista a derrubá-lo. É fácil encontrar simulacros de resistência mais ou menos cómodos que permitam economizar um confronto sério com a burguesia.

Por onde se sumiu a ousadia dos jovens que arriscavam a liberdade para desafiar um regime odioso? Dizer, como agora se tomou hábito, que “o mundo mudou” não faz sentido. Acaso as injustiças, os crimes dos poderosos são menores? Pelo contrário, são maiores. O que comanda é o egoísmo feroz da nova classe média: “Não nos venham outra vez com folhetins sociais!”

Tudo funciona como se não existisse espaço para uma acção de massas de sentido revolucionário. No entanto, não temos dúvida de que, nesta Europa do capitalismo global imperialista, só tem sentido revolucionário a acção que mine a autoridade do Estado, a apropriação capitalista, a ordem burguesa.

Marx:

«os operários não têm nenhuma utopia pronta a implantar por decreto do povo (…) não têm que realizar nenhuns ideais, mas simplesmente soltar os elementos da nova sociedade que a velha sociedade burguesa agonizante contém no seu seio».

Desconfiem do socialismo de geração espontânea – Operários de fábricas recuperadas que produzem sem capatazes e reinventam formas de divisão do trabalho que não geram hierarquias; camponeses que criam assentamentos que implicam uma verdadeira revolução cultural na vida rural; indígenas que recuperam os seus saberes curativos ancestrais; desempregados que inventam mercadorias e as trocam com outros desempregados. É uma perda de tempo. Tem que se atacar a toca do monstro — o poder do Estado burguês. Só a partir daí poderemos chegar ao autogoverno.

Socialismo do século XXI – Já são muitas as experiências de chefes benévolos que dão regalias às massas. Na Venezuela temos mais uma variante de um regime assim.

Se querem um conselho, o que importa é agarrar sempre o tronco, deixar as folhas.

Trotskismo – Primeiro, uma precisão: o Partido Bolchevique não é o partido “de Lenine e Trotski” Foi-o durante um ano talvez. Leiam os artigos de Lenine entre 1903 e 1917: ou Lenine era um sectário empedernido e maledicente, ou Trotski era mesmo oportunista centrista, oscilando entre bolchevismo e menchevismo.

Trotski tem o grande mérito de se ter levantado contra o stalinismo nos anos 30. “A revolução traída”. Mas não conseguiu nem ninguém conseguiu na época explicar o fenómeno.

As “revoluções” e “insurreições” que estão a descobrir continuamente ora num continente, ora noutro, podem ajudar a manter a chama dos militantes mas indicam muito pouca análise marxista. Os troscas jogam com uma aparente elaboração teórica, mas é superficial, o âmago é muito manobrador, justifica tudo. Figura do fundador suscita adesões e ataques apaixonados, tem que ser situado historicamente

Resultados práticos – “Se eu for para os operários falar de teoria marxista viram-me as costas. Querem respostas para a sua vida”. Certo. Mas para lhes saber dar essas respostas práticas, tu, militante revolucionário, tens que saber mais alguma coisa. Um bom agitador tem que ver mais além do imediato.

“O presente não tem nada a ver com o passado” – “De que serve andarmos voltados para a reflexão sobre a experiência passada quando deveríamos olhar para o mundo actual, completamente diferente, etc?”. Claro que a compreensão do passado é só uma parte do nosso trabalho, mas é uma parte necessária. Alguém pensa que se vai poder erguer um novo movimento comunista inserido na nossa época sem entender o que foi o movimento comunista do século XX? Como essa pressa em arrumar o passado, a única coisa que se consegue é repetir vezes sem fím os mesmos erros sob outras formas.

Mistério. Como se pode compreender que, guiando-nos nós pela teoria de Marx, cujas previsões se confirmam hoje à vista de todos, estejamos reduzidos a grupos de escassa influência? Se temos razão, porque são tão poucos os que nos dão ouvidos?

Não esperes que um revolucionário, que fala do que está para vir, que vai contra as verdades dominantes e que contesta a ordem estabelecida ganhe popularidade fácil. Tirando breves momentos revolucionários, ser revolucionário é levar na cabeça ou ser ignorado e ridicularizado.

“Como foi possível que a revolução russa, chinesa, tendo à sua frente dirigentes tão geniais e partidos tão fortes, seguissem por mau caminho?” Esta é a ideia de que a revolução é só aplicar a receita. A revolução depende de bons dirigentes e de um partido forte, mas depende, acima de tudo, da força das classes em presença. Cada sociedade tem o seu nível de desenvolvimento económico e social que não pode ser manipulado. Se uma sociedade não está madura para um parto, não pode haver parto. Se está grávida de capitalismo, é capitalismo que sai. Não se pode dar um salto do feudalismo ao socialismo passando por cima do capitalismo. Houve essa ilusão com a US, China, Vietname, Cuba, mas a vida deitou a ilusão por terra.

A menoridade ideológica do nosso movimento manifestou-se durante décadas com o papaguear dos manuais de Moscovo ou de Pequim. Agora manifesta-se com a altaneira recusa da elaboração ideológica em nome do “aprender pela prática”. Passámos de um buraco a outro. Nunca haverá movimento proletário revolucionário neste canto do mundo se não criarmos uma escola de aprendizagem permanente da experiência acumulada.

Somos demasiado duros nas críticas, chamamos nomes? Não estranhem. Se estamos a escolher o caminho que pode melhor servir a revolução estamos a falar de uma questão de vida ou de morte, não de literatura. Os que estão instalados na ordem burguesa podem dar-se ao luxo de ser amáveis. Nós estamos a abrir uma corrente à força.

Desconfiança – “Toda essa grande teoria marxista-leninista faliu. Havia um campo socialista que abarcava um quarto da humanidade, havia um movimento comunista mundial com milhões — em 20 anos sumiu-se tudo pelo cano. Portanto, não nos venham com novas certezas. Vamos guiar-nos pela experiência, fazer a revolução na prática, inspirar-nos na sabedoria das massas, não precisamos de teorias.”

Pode parecer muito proletário mas é atrasado. É na prática da luta de classes que se faz a revolução, na base da experiência. Mas da experiência acumulada, comparada, não da experiência em bruto, não generalizada, não analisada.

A história das correntes marxistas neste século e meio atesta a imaturidade do próprio proletariado para se assumir como classe revolucionária.


Inclusão 16/11/2018