Relatório de um militante sobre uma questão disciplinar

(Enviado ao PCP em Maio de 1965)

Maio de 1965


Primeira publicação: in Revolução Popular..., pp. 165-173.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão. Seleção de João Madeira. Editora Ela por Ela e Abrente. Lisboa, março de 2015. Págs: 261-268.

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de reprodução:© Editora Ela por Ela. Transcrição gentilmente autorizada por Ana Barradas (Ela por Ela).


Capa do livro

Graves acontecimentos aos quais me encontro ligado directamente tiveram lugar no organismo local do Partido a que pertenço. Estes fenómenos a aparecerem desligados de um contexto não significariam mais do que um tumor localizado, não merecendo pois um tratamento tão profundo. Tal não é porém o caso. Considero estes acontecimentos não como um caso isolado, mas sim como o reflexo, na nossa célula, de uma situação que impera em todo o partido e que é fruto de uma linha geral imposta a largos sectores do Partido pela sua direcção, linha essa que enferma do mais profundo e descarado «revisionismo», tanto no tocante à sua linha política geral, como em tudo o que diz respeito à sua própria vida interna.

Os acontecimentos que tiveram lugar revestem-se de uma enorme gravidade: eles são pura e simplesmente incompreensíveis e inadmissíveis num partido marxista-leninista. Por isso mesmo, eles podem constituir uma advertência séria dirigida àqueles que insistem teimosamente em banir da vida do Partido os princípios leninistas. Ao substituir-se, por exemplo, a disciplina partidária assente na fidelidade aos princípios marxistas-leninistas e à causa do povo trabalhador por uma pseudodisciplina de tipo metafísico mais frequente nas casernas fascistas (o que o sargento diz pode não ter qualquer sentido, mas ai de quem não cumpra ...!), o único resultado que se pode obter é a denúncia dos que seguem por esse caminho anti-revolucionário, é pois uma autocondenação, ainda que por vezes se pense o contrário.

O aspecto da disciplina não passa porém de uma das facetas, de um dos pontos doentes a analisar. Ele, como os outros, tem as suas causas, que se podem resumir, como todos sabemos, à contradição que subsiste mesmo nas fileiras comunistas (como apêndice da contradição principal que divide toda a sociedade em grupos irreconciliáveis, ou seja: à luta de classes).

Se esta contradição tem um carácter irreconciliável, outro tanto não sucede com o seu apêndice, com a manifestação ou prolongamento da luta de classes no seio da vanguarda revolucionária. Com efeito, esta última é superável. Um dos deveres precisamente de todos os comunistas é lutar para que a sua pureza seja cada vez maior, para que a influência dos hábitos ou até dos princípios burgueses seja cada vez menor no seio das forças progressistas.

Num dos dias de Abril, pela noite, o camarada controleiro do núcleo a que pertenço deu-me a saber que eu havia sido suspenso das minhas funções.

Nenhum encontro preambular tinha precedido essa reunião, nada se seguiu a ela. A notícia sufocou-me; a palavra, a maneira como me foi apresentado o problema foi tão incompreensível, e a situação tão inesperada, que a minha reacção imediata se caracterizou mais pelo estupor do que pela lucidez. Quero contudo reter três pontos que definem bem a maneira como me foi dada a conhecer a pesada sanção que me atingia e que caracteriza com fidelidade o modo como estes camaradas encaram a questão da disciplina.

No momento actual uma tarefa importante se impõe a todos os comunistas: a de bater definitivamente os destruidores do Partido e de reconstituir este: todos os comunistas devem romper, devem cortar, devem deixar de estar juntos com os oportunistas e devem liquidar estes ideológica e praticamente.

A disciplina do Partido tem de ser uma disciplina de ferro. Mas nem por isso pode deixar de haver crítica e luta de ideias, nem por isso ela deve ser cega, nem por isso deve ser inconsciente e imposta. Pelo contrário: só através da crítica e da luta de ideias poderá ser conseguida a unidade de pensamento e a unidade de acção. Só através de uma submissão consciente e livremente consentida às decisões centrais, só após essa luta de ideias, é que poderão existir realmente uma unidade e uma disciplina de ferro no seio de Partido.

Mas será isto, todavia, negado praticamente por acontecimentos tais como os que acabei de relatar?

E não estará isto em aberta contradição com o que se passa, a uma escala bem mais importante, na vida interna do Partido e de que é um exemplo típico a sua «diplomacia secreta»?

Uma das características do trabalho de Lenine era trazer, se assim se pode dizer, para a rua as suas críticas, era a de tornar assunto de discussão das massas todos os problemas que as interessavam, era a de lhes tomar constantemente o pulso, era a de denunciar constantemente junto delas as concepções (e não os homens enquanto indivíduos) mentirosas, mesmo que se encontrassem tacticamente do outro lado da barricada. Uma das suas maiores preocupações na prossecução desta linha de massas (partir das massas para a elas regressar) foi a de abolir a «diplomacia secreta» tão do agrado e da tradição dos políticos burgueses.

Pois uma nova «diplomacia secreta» vem instalar-se no seio de Partido. As suas relações com os seus parceiros na FPLN, de um modo mais característico as suas relações com o general Delgado, cobardemente assassinado pela PIDE, assim o deixam concluir. Um manto de silêncio envolve tudo, para aqueles que não estão na periferia dos «deuses».Tão depressa alguém é alvo de uma circular a todos os militantes apelando pela desconfiança, como no dia seguinte, sem que qualquer razão plausível ou não seja dada, se incensa esse alguém. O militante limita-se a consultar o «boletim meteorológico» se não deseja ser apanhado em falso, pois nada lhe é dito. As intrigas, as «desgraças», os elogios, toda uma gama de atitudes se sucedem cronologicamente, contraditoriamente, sem que nunca aos militantes e ao povo seja dada una explicação, sem que as confianças deixem de ser totais, um dia, sem que as desgraças deixem de ser as mais absolutas no dia seguinte. Seria doloroso relembrar que aconteceu com o general H. Delgado, agora. Mas a lição que todos sabemos pode ser tirada. A «diplomacia secreta» que reinou nas relações que o Partido manteve com a FPLN e com o general só serviu para lançar a confusão no espírito de todos e a vergonha da atitude do Partido quando do assassinato daquele.

Este modo de encarar as relações com forças não comunistas, representantes de correntes antifascistas mas nem por isso firmemente revolucionárias, difere fundamentalmente de tudo quanto a teoria e a prática marxistas-leninistas nos ensinam. Em lugar do assistirmos a um processo de crítica às ideias erradas dos outros participantes na frente, de defesa da autonomia e independência do Partido, única garantia de um trabalho verdadeiramente revlucionário, de uma colaboração honesta e leal mas limitada por princípios inamovíveis, assistimos à realização de toda a espécie de compromissos tácticos e estratégicos («unidade para hoje e para amanhã») com a burguesia. Que encontrará o Partido ao cabo deste caminho? Só poderá encontrar a traição que os seus dirigentes, na esteira dos revisionistas diássicos e modernos, levaram a efeito metodicamente.

Por culpa dos dirigentes revisionistas do Partido, a FPLN encontra-se de facto convertida numa organização burguesa, de fundo reaccionário, sobre a qual e povo trabalhador português não pode de modo algum contar para obter a sua libertação.

O espírito da pequena-burguesia, classe que em Portugal possui muita força, exerce sobre todo o Partido uma influência constante e uma pressão contínua. Sucumbindo a esta influência que cerca o Partido de todos os lados, a sua direcção abandonou a política de alianças que dá a prioridade ao povo trabalhador e que encontra a sua expressão na aliança entre o proletariado dirigente e os camponeses, seus mais fiéis aliados, para pregar a «unidade de pensamento e de acção» com a burguesia.

A Declaração de Moscovo de 1960, em que os revisionistas se pretendem apoiar para defenderem a «colaboração de classes», se salienta que a burguesia pode desempenhar um papel progressista, em determinadas circunstâncias ou em de terminados momentos, não salienta menos que ela é essencialmente instável. Será pois, o abandono da aliança com os camponeses o melhor caminho para forçar aquela a desempenhar um papel progressista e para prevenir o seu carácter instável ? Não certamente!

O abandono da expressão «revolução democrática e popular» em favor da «revolução democrática e nacional» encontra na sua base, e segundo os próprios teóricos revisionistas da «revolução nacional», a preocupação de se abandonar a via revolucionária marxista-leninista para se encaminhar a «revolução portuguesa» por uma «terceira via» que «pode conduzir ao socialismo, mas que não conduz forçosamente até ele» e em que «as transformações revolucionárias se realizam muitas vezes por meio de reformas», conforme os dizeres de um desses teóricos.

As antigas teses revisionistas, conforme vemos, vestem roupas novas e são agora propostas ao nosso povo pelos «reformistas modernos» como um caminho autenticamente revolucionário...! Não corresponderá isto objectivamente à traição dos nobres ideais comunistas e da causa do proletariado português?

Na sequência desta linha pequeno-burguesa, aparece-nos igualmente a substituição da expressão «povo em armas», sem qualquer equívoco, pela nova tese «do levantamento nacional», vaga, imprecisa, sem qualquer conteúdo real. Com efeito, que sentido pode ter falar de um levantamento nacional quando ele não é cuidadosamente preparado e temperado na prática e quando é abandonado nas névoas o papel que caberá ao proletariado nesse levantamento de toda a nação?

Não só se tem de acentuar de um modo eficaz o papel dirigente do proletariado na insurreição antifascista, como o próprio processo insurreccional deverá ser olhado de outro ângulo. As frases não conseguem esconder esta verdade simples que é a falta de interesse que os dirigentes revisionistas manifestam pelo «levantamento nacional», pois nenhum campo é deixado à iniciativa dos diversos grupos, pois se esquece que a grande garantia da justeza da acção destes é dada «pelos imperativos inflexíveis do próprio curso da revolução» e não pelos dogmas. Cai-se, como dizia Lenine, no uso de grandes frases sobre a «organização processo, táctica processo» que só servem para justificar a indecisão, a falta de iniciativa. Esqueceu-se que «em tempo de guerra os recrutas instruem-se dirrvtamente no decurso das operações militares (...). «Não temam reunir novas cohortes — exclamava Lenine — enviem-nas ao fogo! (...) Lembrem-se que qualquer atraso neste domínio faz o jogo do inimigo da social-democracia, porque as novas águas procuram uma saída imediata e se elas a não encontram no canal de social-democracia, precipitar-se-ão noutro lado (...) osapelos apaixonados a novas forças, as queixas sobre a falta de homens nas organizações soam de todos os lados (...) Falar assim é não ver, por detrás das árvores, a floresta, é reconhecer que o revolucionário, longe de dominar os acontecimentos na sua consciência e na sua actividade, é dominado, esmagado por eles.

O famoso «levantamento nacional» só tem servido até agora para impedir, através de uma certa disciplina, que os nossos dirigentes sejam ultrapassados, dominados e esmagados pelos acontecimentos e assim compelidos à reforma.

Já que falámos do abandono da aliança operário-camponesa em favor da Unidade com a burguesia, já que falámos no abandono da revolução popular para se entregar o produto de tantos esforços e sacrifícios do povo à burguesia, já que falámos na falsificação de que é alvo a insurreição popular, não deixarei de focar a traição feita ao marxismo-leninismo quanto à sua estratégia.

Aceitemos que esse «levantamento nacional» é realizado não vejo como. Acatemos mesmo que o tal «governo provisório democrático» será instaurado a seguir à queda de Salazar. Será conseguida, sem mais, a vitória do proletariado português? Sim, deixam perceber os revisionistas portugueses, que não nos explicam como é que a burguesia se deixará «apagar» da cena da história, nem como o proletariado português trabalhará para conquistar o poder de Estado, para instaurar a ditadura do proletariado. Claro que dentro do quadro da «democracia nacional» tais frases como «luta de classes», «ditadura do proletariado», «socialismo» e «comunismo» não têm lugar, eu sei. Elas são substituídas pela «colaboração de classes» (de todos os portugueses honestos), pela «democracia» (eu pergunto: democracia de quem e para quem?) e sei lá por que mais. Mas nem por isso a luta de classes deixa de existir, nem por isso o caminho para o comunismo deixa de passar pela liquidação total e irremediável da burguesia exploradora, através de uma «nova forma de democracia», a democracia para a maioria explorada, através de uma «nova forma de ditadura», a ditadura dos trabalhadores.

Ao deixar-se no esquecimento tudo isto, ao fazer-se crer ao povo que o tal «governo provisório democrático, que deus abençoe!» «libertará» (?) completamente o povo trabalhador português, está a fazer-se a maior traição aos princípios do marxismo científico, está a trair-se o povo português.

A direcção do Partido, sob a pressão da burguesia nacional, tem vindo a proceder a um divórcio gradual entre as palavras e os actos, entre a teoria e a prática, levantando mais e mais o véu com que cobria a sua traição. Apoiando- se numa fraseologia pseudo-revolucionária, tenta vender gato por lebre, ao abandonar pouco a pouco a via marxista-leninista para cair em posições «democratas» que aproveitam a curto ou a longo prazo à burguesia, ao feudalismo, à reacção.

A direcção do Partido quer, bem vistas as coisas, levar o povo trabalhador português a fazer uma revolução para a entregar de mão beijada à burguesia, ao capitalismo português.

Eis a grande verdade que se esconde por detrás do pseudo-revolucionarismo oficial. Eis a grande verdade que a direcção do Partido pretende esconder a todos os militantes através duma pseudodisciplina da maior ferocidade.

Perante tal facto, e ao ser-me provado à evidência que já não é possível forçar os dirigentes do nosso partido a abandonar a sua linha revisionista, pelos únicos processos da «democracia interna», ausente dos hábitos do Partido no momento actual, só me resta abandonar as fileiras do Partido para melhor servir este. É esta a conclusão deste relatório.

Sou jovem. Há quatro anos que pertenço ao Partido. Há quatro anos que o sirvo o melhor que posso, com as minhas qualidades, com os meus defeitos às vezes. Esta pequena folha de serviços está recheada, porém, de sacrifícios. Isto ninguém o poderá negar.

Bater os revisionistas portugueses, reconstituir o Partido Comunista, eis a grande tarefa que a todos se impõe. Não poderia, por considerações de nenhuma espécie, considerar-me isento dos deveres que me incumbem perante obra tão grande.

Se o caminho para a reconstituição do Partido e para o fortalecimento das alas revolucionárias passam pela desobediência aos dirigentes do dia, tanto pior.