Sobre um racha no Partido

Otto Rühle

12 de janeiro de 1916


Primeira Edição: Vorwärts

Fonte: Proelium Finale https://proelium.medium.com/sobre-um-partido-rachado-2edab89a98b4

Tradução: Proelium Finale

HTML: Fernando Araújo


Introdução

A introdução é de autoria de Rida Vaquas: https://medium.com/@RidaVaquas/on-a-party-split-by-otto-r%C3%BChle-3afcfa308291

Este artigo foi publicado em 12 de janeiro de 1916 na Vorwärts, o principal órgão da Socialdemocracia Alemã. Vários meses de disputas amargas precederam a elaboração desse artigo, à medida que crescia a oposição dentro do partido às políticas de guerra do SPD. Uma pequena minoria da esquerda radical já havia rompido com o SPD, em 1915, e fundado o Internationale Sozialistischen Deutschlands, composto por grupos de Berlim, Brunswick e Bremen. Em junho de 1915, uma petição bastante crítica, assinada por mais de 750 ativistas, funcionários, editores e líderes sindicais, incluindo aqueles da centro-esquerda do partido, bem como da esquerda radical, foi apresentada à executiva do SPD. Em Berlim, os opositores da guerra haviam conquistado o apoio de uma maioria significante a suas perspectivas entre os membros, e as bases militantes estavam cada vez mais inquietas frente ao silêncio dos deputados do Reichstag. Em 21 de dezembro de 1915, dezessete deputados do Reichstag se juntaram a Karl Liebknecht e Otto Rühle ao votarem contra os créditos de guerra, infringindo, assim, a disciplina parlamentar do grupo. Na base, os radicais de esquerda apelaram para que as obrigações fossem retiradas das organizações distritais controladas pela maioria do SPD, bem como da executiva do partido.

Na esquerda anti-guerra, a questão do “e agora” não foi respondida satisfatoriamente. Como se relacionar com o SPD depois de agosto de 1914? Os “oposicionistas leais” viram o partido como seu partido, que podia ter errado, mas precisava ser reconquistado. Viram a luta como tendo de ser realizada dentro do partido, e relutavam em realizar ações que podiam resultar em expulsões. Outros consideravam violar a disciplina do partido como uma medida lamentavelmente necessária, mas temporária. De sua parte, Rosa Luxemburgo (que, juntamente com Karl Liebknecht, é possivelmente a mais conhecida da esquerda anti-guerra) estavam hesitantes em convocar uma saída do partido, mesmo quando se referia a ele como um “cadáver fétido”. Mesmo tão tardiamente quanto em 1917, Luxemburgo foi capaz de escrever: “é apenas um devaneio irresponsável querer liberar toda a massa da classe trabalhadora do jugo da burguesia com uma simples ‘debandada’” do partido.

Por fim, a questão foi resolvida de maneira negativa: em 18 de janeiro de 1917, a executiva do SPD anunciou que todos os membros da oposição do SPD (que havia realizado uma conferência nacional no dia 7 de janeiro) não podiam mais ser membros do SPD, forçando os oposicionistas a se reagruparem num partido. Onde a maioria do SPD controlava as organizações locais, ela se movimentou rapidamente para expulsar os oposicionistas e onde as organizações locais eram controladas pelos oposicionistas, ela simplesmente estabeleceu organizações paralelas.

Talvez este texto seja uma escolha estranha para traduzir e irrelevante para as condições dos dias atuais. Quando olhamos para a história contemporânea dos grupos de esquerda, não há falta de rachas, mas muito pouco em jogo. Este debate é importante porque representa um racha que teve consequências devastadoramente concretas. A luta pelo/contra o Partido foi algo que ocorria no grande corpo do movimento, das organizações locais para baixo. Todo participante estava penosamente consciente do peso de uma cisma, mesmo quando chegavam a conclusões diferentes.

Mas o debate e a contribuição de Rühle para ele importam porque demonstram um desejo urgente de buscar a verdade e encontrá-la. A oposição do SPD sabia muito bem que estava numa encruzilhada. Esta é uma tentativa de descobrir para onde ir.

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Sobre um Racha no Partido

Não quero gastar palavras falando sobre o valor da unidade do partido na luta contra os inimigos do proletariado. Também não vou gastar palavras falando sobre como seria irresponsável, até mesmo sem princípios, querer frivolamente colocar em perigo ou destruir esta unidade. Estas são percepções e avaliações óbvias para qualquer membro de partido, de qualquer facção que sejam.

Mas falar sobre um partido rachado não é a mesma coisa que forçar um racha no partido. Se a discussão de um partido rachado pode parecer prematura e mal orientada porque torna a propaganda para a perspectiva da maioria ou da minoria mais difícil, também pode ser considerada como esclarecedora e útil, pois a articulação da realidade é um mandamento fundamental da política honesta e se prova, finalmente, como a coisa taticamente correta a se fazer. Acho que chegou a hora de o tema de um racha no partido ser colocado na agenda para a discussão do partido.

Um racha no partido já estava prestes a ocorrer há muito tempo. Diferenças de opinião entre a Esquerda e a Direita criaram profundos antagonismos e dividiram o partido em duas facções. Quem havia acreditado que, após o Congresso de Dresden, a tendência revisionista-oportunista fora extinta estava equivocado. A cada ano, todo o partido se desviou claramente para a prática reformista, sem abandonar totalmente sua teoria e fraseologia radical. Se tornou cada vez mais difícil para a esquerda leal impor sua posição, como os Congressos do Partido recentes demonstraram. Na Fração Reichstag, a ausência ou presença de um único camarada era com frequência o suficiente para determinar se as deliberações eram tomadas num sentido com princípios ou de maneira oportunista. Uma situação desagradável e, a longo prazo, insustentável. A guerra levou as coisas a um clímax e a vitória da política oportunista. O que normalmente teria levado anos para atingir a maturidade, se concluiu num só golpe. A fração da esmagadora maioria , apoiada e protegida pela executiva do partido, pelo comitê do partido, pela coletiva de imprensa, pela Comissão Geral e pelos executivos centrais apresentou políticas de guerra que na prática não diferiam dos partidos burgueses ou do governo. Reconhecendo a trégua dos partidos, votando pelos créditos de guerra, declarando solidariedade nacional, abandonando o princípio de rejeitar o orçamento, uma nova orientação de táticas de acordo com as perspectivas oportunistas: estes foram os momentos determinantes da nova era no partido.

Com isso, a socialdemocracia desistiu de ser o que era antes da guerra. Um novo partido entrou oficialmente em seu lugar. Kolb, o mais franco e consistente entre os oportunistas, o admite sem reservas. A direção do partido, que chegou ao topo, explica, representa um sistema completamente novo. A reviravolta é um rompimento total com o passado. Só a minoria em torno de Liebknecht ainda defende os princípios que eram aceitos pelo partido antes de 4 de agosto de 1914.

Há atualmente, portanto, dois partidos no partido. O partido antigo (Minoria) com os antigos princípios do partido e com o objetivo de derrubar o capitalismo, e o novo partido (Maioria), com o princípio oportunista do reformismo e de adaptação ao capitalismo. A direita consistente vê na perspectiva da esquerda uma negação vã e uma fantasia desesperada, a esquerda consistente condena o afastamento da direita como uma traição dos princípios do socialismo e a entrega do proletariado a seus inimigos. Não é mais possível uma compreensão ou construção de pontes entre as duas perspectivas e facções. Por que se silenciar e fechar os olhos para esse fato?

Segundo a vontade da maioria do SPD, a política de guerra do grupo parlamentar deveria se tornar a política permanente do partido. Ouvimos o discurso de Heine em Stuttgart e o anúncio da política de bloco, sabemos que o posicionamento da socialdemocracia quanto à monarquia, ao militarismo, à política nacional e internacional deveria passar por uma revisão fundamental. Kolb declara: ou a socialdemocracia segue políticas sistematicamente reformistas no futuro, ou entrará em falência a longo prazo.

A minoria do SPD adota uma abordagem oposta. Considera as políticas defendidas atualmente pela maioria do SPD, bem como as políticas que dissemina para o futuro, incompatíveis com os interesses da classe trabalhadora — uma calamidade e a bancarrota do socialismo. Segundo suas convicções, o único caminho para a libertação do proletariado é o caminho que foi percorrido antes de 4 de agosto de 1914. Empenha-se com todas suas forças, portanto, para um retorno às táticas “antigas, experimentadas e testadas” que foram “coroadas com vitórias”.

O que deveria acontecer agora?

Suponhamos que a maioria do SPD se mantenha firme por toda a guerra. A minoria do SPD deveria se subordinar e aguentar tudo, pôr de lado seus princípios, jogar suas resoluções no lixo e deixar os interesses da classe trabalhadora sofrerem o pior dano?

A subordinação à vontade da maioria, segundo o costume democrático, era aconselhável e inquestionável, operando sobre a pressuposição de uma guerra breve e de um congresso do partido que aconteceria o quanto antes. Não é assim que as coisas são agora. Grandes eventos políticos ocorrerão, decisões serão executadas, que são de suma importância para o proletariado. A minoria do SPD deveria se calar para ficar assistindo, enquanto as políticas da maioria do SPD, segundo suas convicções, causam um terrível desastre? Ou, pelo contrário, tem o dever, ignorando as exigências formais da disciplina, de intervir e fazer política ativamente em seus próprios termos? Fazer essa pergunta é respondê-la afirmativamente. Com uma linha argumentativa parecida, Kautsky, portanto, explicou e justificou a medida especial da minoria do SPD, uma parte da minoria traduziu os argumentos e as conclusões em atividade parlamentar. Eu considero esta ação especial como o primeiro passo em direção a um racha no grupo parlamentar e, levado à suas últimas consequências, também a um racha no partido.

Suponhamos que o próximo Congresso do Partido confirme a posição da maioria do SPD. O que fará a minoria do SPD, então? Se submeterão à obra da maioria do SPD, após terem começado a trilhar seu próprio caminho e fazer sua própria política no Parlamento? Abandonarão suas convicções e enterrarão seus princípios para se tornarem os seguidores descerebrados dos oportunistas? Não se pode falar disso de modo algum. E, portanto, só um racha permanece.

Ou suponhamos que a minoria do SPD se torne a maioria durante a guerra ou, no mais tardar, após a guerra. O que a Direita fará então? Ela se dissipará e será absorvida pela maioria radical? Se submeterão dignamente às políticas Kladderadatsch(1) fantasiosas, dogmáticas, e farão política radical no futuro? Claro que não. O oportunismo não desaparecerá de modo algum, porque as condições que favorecem seu surgimento e desenvolvimento persistirão e talvez melhorem. O oportunismo não é de fato invenção ou erro dos humanos, mas a expressão de determinadas condições econômicas e sociais, ainda que enfatizadas de maneira unilateral e enviesada.

Pela consistência com a qual a tendência oportunista tem buscado seus objetivos, não restam dúvidas de que, caso não consiga se impor no grupo parlamentar e no partido, ela decididamente realizará um racha. A conduta de Legien, David, Heine e etc. comprova isso.

Mas e se, em nenhum dos casos, a minoria em questão decidir rachar voluntariamente? Quando todos, de uma maneira ou de outra, declararem: unidade do Partido a qualquer preço?

Uma esquerda vitoriosa, pelo seu próprio bem, não pode permitir oportunismo. Não pode permitir que oportunistas permaneçam como funcionários em escritórios, em redações, em mandatos parlamentares e posições de influência, se quer esperar algo que não o oportunismo a encurralando mais uma vez no curto ou longo prazo e causando um novo colapso no próximo ano. Portanto, a Esquerda tem que excluir a minoria que não capitula politicamente. Com a consequência de que constitui agora um novo partido em si. E, portanto, um racha.

Em contrapartida, não vai demorar um minuto para a Direita, como vitoriosa, se livrar da desconfortável oposição dos radicais. Os esforços do grupo parlamentar nesta direção, as moções de Legien, Giebel, etc. contra Liebknecht são o suficiente para demonstrar o que se deve esperar. Os expulsos obviamente se agrupariam num partido imediatamente. Um racha, portanto.

Você pode virar as coisas e olhe para elas do ângulo que quiser, não deixa de ser um racha. Considero este o método mais lógico e até mesmo o único possível para encerrar o conflito no partido.

Não poderia haver maior infortúnio para nós se, após meses e anos de lutas apaixonadas no partido, após ruptura sem precedentes da vida no partido, depois das milhares de degradações pessoais, suspeitas, denúncias e difamações, que fosse encontrado algum meio de reconciliar todos os elementos relutantes e tendências heterogêneas. Eu não agradeceria por esta “união partidária” xoxa, essa meleca disforme e insubstancial, porque não seria só uma meleca desprovida de princípios, mas também sem caráter. Não conquistaria nada para a luta, pelo contrário, perderíamos tudo. Como um partido de tamanha monstruosidade sobreviveria frente a seus inimigos? Essa perspectiva está fora de questão.

Com certeza é difícil se familiarizar com a ideia do partido rachar. É uma luta que requer grandes sacrifícios. Mas, por fim, o partido é apenas um instrumento para a realização do socialismo, para o alcance da democracia. O objetivo principal é e permanece sendo o socialismo.

Eu sei que não tenho culpa de promover ou querer frivolamente um racha no partido, então todas as acusações e insultos que sofrerei não me preocupam. Mas vou respirar aliviado quando o racha ocorrer. Porque, pra mim, é só aí que uma luta clara e rigorosa pelo objetivo do socialismo será possível novamente.


Notas de rodapé:

(1) Onomatopeia para colisão. [Nota do tradutor] (retornar ao texto)

Inclusão: 18/05/2021