"Raízes do Brasil" e a necessidade da revolução
(No centenário de Sérgio Buarque de Holanda)

José Carlos Ruy

11 de julho de 2002


Fonte: http://resistir.info

HTML: Fernando Araújo.


Vivemos entre dois mundos: "um definitivamente morto e outro que luta por vir à luz do dia". Esta frase define o espírito e a ambição de um dos mais influentes ensaios surgidos na década de 1930: Raízes do Brasil , publicado em 1936. Define também o pensamento de seu autor, Sérgio Buarque de Holanda, cujo centenário comemora-se no dia 11 de julho de 2002. A chave desse pensamento é o reconhecimento da necessidade de se completar a ruptura com o passado colonial, como expressou no capítulo final deste livro que é sua obra mais conhecida e de maior influência.

A marca de Sérgio Buarque vai desde essa interpretação radicalmente democrática com que compreendeu as transformações em curso no Brasil das décadas de 1920 e 1930, até sua influência inovadora como historiador responsável pela formação de grande parte das gerações seguintes dos historiadores brasileiros.

Não há espaço, aqui, para a avaliação em profundidade de sua contribuição, positiva e contraditória, para o estudo da formação social brasileira, da renovação metodológica e do uso de novos documentos e instrumentos historiográficos que emerge de sua obra. Basta assinalar, contudo, o paralelismo de sua contribuição à da Escola dos Anales francesa, influente e muito valorizada. Aliás, Sérgio Buarque foi colega e contemporâneo de Fernand Braudel na USP, que lá escreveu sua principal obra, certamente beneficiando-se dos comentários e da influência do professor que, muitos anos depois, definia-se modestamente como sendo apenas o "pai do Chico Buarque".

Recusando tanto o fascismo (e sua versão tupiniquim, o integralismo), quanto o comunismo, Sérgio Buarque deu alento a uma visão democrático-burguesa da história, onde o diagnóstico do "caráter nacional" é complementado pela defesa da necessidade de ruptura com a herança do escravismo e do colonialismo.

Raízes do Brasil é um exemplo da aplicação dos tipos ideais weberianos, como a contraposição entre trabalho e aventura, o racional e o cordial, o pessoal e o impessoal, etc. Essa influência de Max Weber é visível na identificação desses traços como parte da herança ibérica, traduzida numa alegada incapacidade de organização social e na inclinação à anarquia e à desordem, e é talvez a principal limitação de sua análise, que busca explicações culturais , e não nas relações concretas entre os homens, para os fenômenos histórico-sociais. Sérgio Buarque também foi pioneiro no uso do conceito weberiano de patrimonialismo para descrever as relações politicamente promíscuas entre o Estado, os governos e as classes dominantes. É também do sociólogo alemão a idéia, que ilumina sua obra, de que o capitalismo não é um modo de produção específico, com leis e formas de organização próprias da produção e distribuição, mas um sistema movido pela busca do lucro monetário.

Há um certo paralelo entre esse pensamento e as teses de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, com quem compartilha a visão psicológica e culturalista da história. Essa semelhança está presente na indicação de uma pretensamente pequena distância entre os dominadores "e a massa trabalhadora constituída de homens de cor", que teriam resultado nas relações entre dominados e dominadores marcadas pela situação de dependente, protegido "e até mesmo de solidário e afim".

Compartilham também a descrição positiva do colonizador português, que seria mais capaz de adaptação aos costumes dos povos colonizados do que os demais colonizadores europeus. Como o sociólogo pernambucano, Sérgio Buarque também pensou que há, no brasileiro, uma ênfase no afetivo e no irracional, e "uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras". Daí sua tese, inspirada em Ribeiro Couto, de que "a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade -- daremos ao mundo o homem cordial " -- tese que é talvez a mais difundida e menos compreendida de seu ensaio.

Se concordam na avaliação do caráter nacional, uma temática própria dos anos 30, a medida da distância entre Sérgio Buarque e Gilberto Freyre é dada pela prudência que afasta o primeiro da apologia das oligarquias agrárias.

Gilberto Freyre valorizou a colonização portuguesa e sua influência; atualizou a legitimação do domínio da oligarquia enraizada no passado colonial e acentuou a continuidade, e não a ruptura, condenando a luta de classes como estranha ao caráter brasileiro.

A posição de Sérgio Buarque é radicalmente oposta. Para ele, a modernização social e política do Brasil exige o rompimento com o passado colonial; o desenvolvimento nacional exige o aprofundamento da revolução brasileira, vista como um processo ainda incompleto.

Este não é um ponto de vista pessimista, como querem alguns. No último capítulo de Raízes do  Brasil , ele atribui à revolução tarefas que o marxismo descreve como democrático-burguesas, encarando-a como um movimento lento mas inexorável, o "elo secreto" entre a Abolição e a República, a única revolução que, "rigorosamente, temos experimentado em toda a nossa vida nacional", promovendo a superação do agrarismo pelas cidades, que se tornam "o centro de gravidade do novo sistema".

As teses de Gilberto Freyre corresponderam melhor à aliança que emergiu da revolução de 1930. Por isso tornaram-se hegemônicas. Elas serviram como uma luva à legitimação do pacto entre a burguesia industrial e a oligarquia mercantil-latifundiária. A hegemonia burguesa, no Brasil, fez-se pela resolução, pelo alto, das tarefas próprias da revolução democrático-burguesa, e o conluio entre os segmentos da grande burguesia brasileira, o imperialismo e seus representantes, e os grandes proprietários de terra, foi desfavorável à democracia.

Sérgio Buarque sempre foi um democrata radical, e não pode ser arrolado na estirpe de conservadores como Gilberto Freyre. Amigos na década de 1920, afastaram-se devido à evolução antagônica de suas posições políticas. Sérgio Buarque disse certa vez ao historiador norte-americano Richard Graham, que Raízes do Brasil foi uma espécie de resposta a Casa  Grande & Senzala : seguindo o caminho propossto por Capistrano de Abreu na passagem do século XIX para o século XX, Sérgio Buarque procurou falar do povo, dos mamelucos, e não da oligarquia. "E, em vez de olhar para o Atlântico, olhou para o interior", diz Richard Graham.

Mais do que historiográfica, a divergência entre eles era política, e refletiu-se na obra que escreveram. Gilberto Freyre foi constituinte, em 1946, pela UDN, um partido conservador. Nas décadas seguintes, naufragou como cientista social, tornando-se cada vez mais um trivial propagandista de ditaduras como a de Antonio Salazar, em Portugal, e da ditadura militar brasileira, ligando-se inclusive à Arena, o partido dos generais. Morreu apoiando aquele regime discricionário.

Sérgio Buarque, que se definia como socialista, esteve em posição oposta. Figurou entre os fundadores da Esquerda Democrática em 1945 e, depois, do Partido Socialista Brasileiro. A radicalização de sua oposição democrática levou-o à militância contra a ditadura militar de 1964; em 1968, ele pediu aposentadoria como professor da USP em protesto contra a cassação de vários colegas pelo Ato Institucional nº 5. Nos anos 70, foi vice-presidente do oposicionista Centro Brasil Democrático e, em 1980, quase octagenário, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores.

Baseada na exigência da ruptura do pacto elitista que mantém vivas as forças do passado, a "explicação" do Brasil que emerge de sua obra não serviu à aliança dominante que, formada em 1930, manteve-se durante a ditadura militar de 1964 e foi atualizada sob Fernando Henrique Cardoso. Mas é justamente a exigência dessa ruptura que faz a genialidade e a atualidade de sua obra, que aponta para o futuro, e não para o passado.


Inclusão: 11/11/2021