Lula X FHC
O combate do progresso contra o atraso

José Carlos Ruy

4 de outubro de 2002


Fonte: http://resistir.info

HTML: Fernando Araújo.


Fernando Henrique Cardoso tem insistido na tecla de que houve "avanços" em seu governo, e que é preciso derrotar o "atraso" na eleição de 6 de outubro. Mais recentemente, deu indicações do que entende por "atraso", insinuando que a oposição — particularmente a Frente Lula Presidente — restaura idéias da década de 1950.

É preciso reconhecer que, de atraso, Fernando Henrique Cardoso e sua equipe entendem. Afinal, o programa imposto ao país por seu governo foi a mesma rendição aos interesses da oligarquia financeira internacional e brasileira que caracteriza as forças conservadoras brasileiras desde o início da República (a rigor, elas predominam desde a Independência do país). Um sinal desta adesão: no começo de seu longo período de governo, FHC fez freqüentes referências a Campos Sales, que fora presidente há exatos cem anos antes dele (de 1898 a 1902), e cujo programa de "saneamento" financeiro não deve nada ao implantado pela equipe econômica dirigida por Pedro Malan. Aliás, a primeira providência tomada por Campos Sales, após sua eleição, foi tomar um navio para Londres, para encontrar-se com os Rothschilds, os banqueiros que, na época, dominavam as finanças mundiais. Com eles, assinou um acordo para a rolagem da dívida (o famoso funding-loan de 1898) que empenhou, aos credores, as receitas da alfândega do Rio de Janeiro, como garantia para os empréstimos.

Um dos principais conflitos que opôs os lutadores pelo progresso social contra as forças do atraso, ao longo da República brasileira, foi a disputa entre dois programas principais: a oligarquia financeira internacional e seus representantes no Brasil, a oligarquia agro-mercantil exportadora, sempre defenderam a subordinação do país aos interesses externos e a manutenção de estruturas sociais sobreviventes do passado colonial, principalmente o monopólio da posse da terra.

Contra esse programa atrasado, as forças progressistas da sociedade brasileira defenderam o fortalecimento da soberania nacional e o desenvolvimento autônomo do país, voltado para o atendimento das necessidades de nosso povo e de nossa economia — um programa que remonta às idéias defendidas por José Bonifácio na época da Independência, e que nunca se conseguiu colocar em prática.

Fernando Henrique tem razão quando diz que a oposição mira-se em idéias da década de 1950. Aquele foi o período de maior florescimento daquele projeto de desenvolvimento autônomo do país. Ao lado destas propostas políticas e econômicas, e que fizeram parte da "Era Vargas" execrada por Fernando Henrique e pelas forças que o apoiam, foi também um período de florescimento cultural e ideológico sem precedentes.

Amadureceram então as obras privilegiadas de Caio Prado Junior, Nelson Werneck Sodré, José Leite Lopes, César Lates, Mário Schemberg, Josué de Castro, Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Anísio Teixeira, João Cruz Costa, Darcy Ribeiro, Roland Corbisier, Celso Furtado, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, o Centro Popular de Cultura (CPC), o teatro de Arena e o Oficina, o cinema novo... O próprio reconhecimento que a obra de Fernando Henrique Cardoso alcançou decorre das inquietações daquela época, e de sua participação no debate que envolvia a sociedade brasileira na busca de soluções para os graves problemas que enfrentava.

E que ainda enfrenta. O nacional reformismo típico daqueles anos tinha fortes limitações. Afetou os próprios comunistas, cuja corrente majoritária diluiu suas propostas e sua ação naquela proposta que deixava o socialismo e a luta de classes em segundo plano e enfatizava a ação democrática e progressista de setores da burguesia brasileira e seus aliados nas classes dominantes. A luta de classes amadurecia e se aprofundava no país, condicionando uma tomada de posição mais clara para as várias forças sociais em conflito. Ela repercutiu no próprio Partido Comunista do Brasil, acelerando a diferenciação entre os reformistas e os revolucionários, cujo clímax foi a reorganização do Partido de 1962.

Entretanto, mesmo limitado, o programa nacional reformista preconizava um desenvolvimento autônomo para o país, expresso nas famosas "reformas de base" do governo de João Goulart (entre elas, as reformas agrária, fiscal, bancária, administrativa, etc), cuja mera menção era suficiente para exaltar os ânimos conservadores e reacionários da oligarquia agro-mercantil e dos representantes do capital estrangeiro e do imperialismo.

É ilusório supor — como fazem Fernando Henrique Cardoso e seus sequazes — que aquele programa tenha sido alguma vez posto em prática no Brasil de forma completa e conseqüente, mesmo que os governos de Getúlio Vargas e de João Goulart tenham adotado alguns aspectos desse programa. É também ilusório, senão de má fé, supor que hoje alguém pretenda aplicá-lo ao pé da letra: o que é preciso é adotar o ponto de vista expresso naqueles anos tão vilipendiados pelos conservadores, o ponto de vista da soberania nacional e do desenvolvimento autônomo do país.

Mas a verdade histórica é que aquele programa foi sucessivamente derrotado pelas forças do atraso. No período mais recente, a maior derrota foi a que ocorreu em 1964, quando o golpe militar depôs o governo de João Goulart e impôs ao país a ditadura militar.

O próprio período militar foi marcado pela oscilação entre o programa do atraso e da rendição às imposições do imperialismo, e a busca de autonomia para o país, mesmo que muito limitada. A luta contra a ditadura impôs severas derrotas políticas contra as forças do atraso. O resultado da campanha das diretas-já, de 1984, levou à implosão da ditadura e sua derrota no Colégio Eleitoral; as conquistas sociais, econômicas e políticas da Constituição de 1988 foram outras derrotas contra aquelas forças que, entretanto, voltaram a controlar a presidência da República e a impor seu programa anti-nacional, anti-democrático e anti-popular sob Collor de Mello. Cujo governo não chegou ao fim, como se sabe: o presidente neoliberal foi varrido de Brasília pelo Fora Collor, em 1992, levando à lona, com ele, os oligarcas campeões da entrega do país aos interesses do imperialismo. Ao se aliarem ao PFL e às forças dos grotões, Fernando Henrique Cardoso e o PSDB tiraram a oligarquia daquela enrascada, levando-a outra vez ao comando do governo e do Estado brasileiro, onde fizeram o estrago que compõe a herança nefasta que FHC deixa a seu sucessor.

A previsível vitória de Lula e das forças progressistas, democráticas e avançadas da Frente Lula Presidente será mais um capítulo nesse combate entre o atraso e o progresso social. A eleição de Lula e a derrota das forças políticas e sociais que prevaleceram durante a ditadura militar e os governos de Collor e de FHC representam, para os trabalhadores e o povo brasileiro, o fim da transição para a democracia. E a abertura de uma possibilidade concreta de realização das mudanças que, colocando o país num novo rumo, levem de fato à modernização que a sociedade brasileira precisa e reclama: a superação de suas anacrônicas estruturas sociais, econômicas e políticas.


Inclusão: 11/11/2021