O Caldeirão das Bruxas e Outros Escritos Políticos

Hermínio Sacchetta


Testemunho


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Conheci Hermínio Sacchetta por volta de 1956, quando se gestionava a fundação da Liga Socialista Independente, em reuniões de que participavam vários intelectuais e militantes em busca de uma nova organização, ao mesmo tempo revolucionária, marxista e anti-stalinista: Alberto Rocha Barros, Maurício Tragtenberg, os irmãos Sader etc.

Desde o primeiro momento impressionou-me a força de convicção, a energia espiritual, o ardor combativo do “Velho” (como o chamavam afetivamente os mais jovens aderentes da Liga). Também desde o primeiro momento discordamos, e iniciamos uma polêmica que ia continuar (sobre as mais variadas questões) nos próximos anos, com respeito mútuo e igual obstinação de ambas as partes... Intransigente na discussão, Sacchetta era ao mesmo tempo um espírito profundamente democrático, que acreditava na virtude catártica do debate. Manifestava também uma grande solicitude (não isenta de paternalismo) em relação aos jovens da organização, tendo como preocupação constante sua formação não só política mas sobretudo moral (no sentido amplo da palavra).

A LSI nunca passou de um grupo de 20 pessoas (no máximo), que publicava um pequeno jornal, Ação Socialista. A maioria dos membros eram jovens estudantes. O único operário era um sapateiro de origem anarquista. O que nos reunia era, antes de tudo, o culto a Rosa Luxemburgo: desiludido do bolchevismo, Sacchetta via no marxismo luxemburguista a verdadeira resposta ao eterno problema do movimento operário — a síntese efetiva entre revolução e democracia, socialismo e liberdade. O retrato de Rosa Luxemburgo era a única decoração no austero quartinho da Brigadeiro Luiz Antonio que servia de sede à “Liga”. Combinando sua formação no PCB no começo dos anos 30, sua passagem pelo trotskismo e sua adesão ao luxemburguismo nos anos 50, Sacchetta formulava uma orientação política que ia categoricamente à contrapelo dos lugares comuns da esquerda brasileira desta época. Recusando o populismo, o nacionalismo, a ideologia do desenvolvimento e a política das reformas, ele insistia obstinadamente na necessidade de uma orientação classista, internacionalista, socialista-revolucionária. O inimigo era o capitalismo nas suas duas versões: a sociedade burguesa Ocidental e o capitalismo de Estado soviético. Seus editoriais no Ação Socialista, redigidos num estilo inconfundível — com muitos adjetivos raros e substantivos pouco usados — denunciavam as várias facetas da política das classes dominantes, e em particular as ilusões do “desenvolvimentismo” juscelinista (e seus porta-vozes no movimento operário). Obviamente, no clima da época, era uma vox clamans in descertum: o jornal tinha pouca audiência e pouquíssima influência...

Depois das reuniões, nos sentávamos com o “Velho” ao redor de uma cerveja para ouvir os relatos épicos dos anos 30: o glorioso episódio da confrontação antifascista de 1934, a cisão do PCB em 1937 — “neutralizada pelas antenas da Rádio Moscou irradiando para o Brasil” — a prisão e tortura sob o Estado Novo. Curiosamente, pouco ou nada dizia sobre sua passagem pelas fileiras da IV Internacional Trotskista, o PSR [Partido Socialista Revolucionário] e os anos do após-guerra. Tinha em sua casa um retrato de Trotsky, que nos mostrava com um comentário que resumia tudo: “Apesar de bolchevique, foi um grande homem!”

Isolado, nadando desesperadamente contra a corrente, profeta desarmado e (quase) sem discípulos, Sacchetta não transigia com suas idéias e os princípios. Às vezes sectário, sempre sincero e coerente com suas convicções, ele aparece como uma figura original, quase única, no panorama político e intelectual dos anos 50.

Em 1960, nossos caminhos se separaram: com um grupo de amigos (Eder e Emir Sader), deixamos a LSI para participar da unificação de várias correntes marxistas em uma nova organização, mais ampla e ambiciosa: a POLOP...

Michael Lówy


Inclusão 21/04/2014