Conceituando o gênero

Heleieth Saffioti

1994


Fonte: http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br que agradece à autora, à editora Rosa dos Tempos (do Grupo Record), à Fundação das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação Social (NIPAS) por autorizarem a publi­cação deste texto, originalmente escrito para o livro Mulher brasileira é assim, de Heleieth I. B. Saffioti e Mônica Munoz-Vargas, RJ, 1994.

Transcrição: COLOCARNOME

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Todas as atividades humanas são medidas pela cultura, pois é graças a este verdadeiro arsenal de signos e símbolos que aquelas atividades adquirem sentido e os seres humanos tornam-se capazes de se comunicar. Desta sorte, ao nível da sociedade, não existem fenômenos naturais.

Embora se pensasse superada a fase histórica de a biologia é o destino, surgiu na década de 1980 e continua grassando atualmente um retorno assustador a posições essencialistas, vinculando a mulher à natureza e o homem à cultura. O acervo de teorias, acumulado em três decênios de pesquisas feministas, permite a defesa de postura que advoga a construção social do gênero, a fim de se combater a escalada do pensamento conservador, altamente deletério ao avanço das lutas políticas pela igualdade social, desenvolvidas por categorias sociais discriminadas.

Não se trata de buscar qualquer outra igualdade situada fora do campo social, na medida em que isto levaria, inexoravelmente, a uma essência masculina e a uma essência feminina. Tampouco se trata de negar diferenças entre homens e mulheres, o que representaria intolerância, mas de entendê-las como fruto de uma convivência social mediada pela cultura. “As mulheres que escaparam do Eterno Feminino e do mimetismo com os homens (...) defendem uma igualdade inédita entre os sexos, o primado da diferença sem hierarquia e sem ambiguidade” (Darcy de Oliveira, 1991, p.17).

Se pensar (ou lutar por) a diferença, assim como a igualdade, isoladamente, envolve sérias armadilhas, afirmar a primazia da diferença pode conduzir à absolutização da cultura, hipostasiando-se ela na seguinte fórmula: a cultura é o destino. Atribui-se aqui o mesmo valor à igualdade e à diferença, na medida em que não constituem um par dicotômico, mutuamente exclusivo, mas são cada uma a condição da outra. Com efeito, poderia a diferença tout court, sem adjetivação, realizar-se senão através da igualdade? Teria esta sentido se não houvesse respeito às diferenças? Ademais, similaridade e diferenciação são duas dimensões de um mesmo processo, razão pela qual não se pode mencionar uma na ausência da outra. Desta sorte, a diferença não é senão a outra face da identidade (Saffioti, 1991). As pessoas situam-se nos eixos de distribuição/conquista do poder - gênero, raça/etnia e classe social - graças às similitudes que apresentam com determinadas outras e às dessemelhanças de que são portadoras em relação a outras criaturas. Assim, a discussão sobre as diferenças não faz sentido isoladamente, uma vez que é apenas no contexto do insulamento que elas se tornam apropriáveis por movimentos de cunho discriminatório. As diferenças só se inscreveriam no nível do essencial se se admitisse, aqui, uma essência feminina distinta de uma essência masculina, o que está longe de ser o caso. Não se procede, pois, a uma naturalização da diferença, como faz a sociedade. Isto ocorre em posturas intelectuais que concebem o gênero como imutável. Ora, num discurso que admite explicitamente a des-re-construção do gênero, este é, obviamente, cambiante. Nesta linha de raciocínio, discorda-se de Pierucci (1990), que enxerga ciladas só na diferença, quando a igualdade também já serviu de pretexto para a sujeição de vários povos a governos despóticos.

A modelagem de homens e mulheres como seres diferentes faz-se através de “tecnologias de gênero”, terminologia que Lauretis (1987) toma de empréstimo de Foulcaut (1976, “tecnologias de sexo”) e que designa discursos hegemônicos, cinema, posturas epistemológicas, críticas, enfim, “práticas sociais e culturais” (Lauretis, p. ix). Em linguagem althusseriana, tecnologias de gênero seriam desenvolvidas pelos aparelhos ideológicos de Estado (Althusser, 1976) aos quais pensa-se ser necessário agregar explicitamente os aparelhos ideológicos privados. Obviamente, de forma implícita, estes estão compreendidos nos primeiros, já que as determinações do Estado alcançam os mais ocultos espaços da vida privada.

Se, por um lado, Lauretis aproveita as potencialidades da hipótese althusseriana e envereda pelo caminho da compreensão “do gênero como (auto-)representação”, por outro, extrapola seus limites, concebendo o sujeito feminino como estando, simultaneamente, dentro e fora da ideologia de gênero. O sujeito do feminismo é concebido como múltiplo e construído através de “discursos, posições e significados frequentemente em conflito uns com os outros e inerentemente (historicamente) contraditório” (p. ix-x).

Isto equivale a dizer que o sujeito constituído em gênero o é também em classe social e em raça/etnia. Assim, em vez de ser unificado, é múltiplo, sendo mais contraditório que dividido. Isto posto, o gênero caracteriza-se, para Lauretis, ao mesmo tempo, como representação e como auto-representação, participa de sua própria construção. Esta não depende apenas dos aparelhos ideológicos de Estado, mas é tecida também nos movimentos de vanguarda intelectual e artística. A desconstrução do gênero interfere em sua construção, o que significa a possibilidade de desestabilização de qualquer representação.

Lauretis situa o gênero em dois níveis: no da representação e no que chama de real. Como se pensa que a representação é tão real quanto qualquer outro fenômeno, prefere-se afirmar que a representação se inscreve no terreno do subjetivo, objetivando-se através da atividade, enquanto o “real” consiste em práticas sociais e seus produtos, que se subjetivam por um movimento oposto do sujeito. Produtos e processos sociais são igualmente importantes, uma vez que construção do gênero depende deste movimento em sua representação. Para autora em pauta, portanto, o gênero “é tanto um construto sociocultural quanto um aparelho semiótico, um sistema de representação que atribui significado(...) a indivíduos dentro da sociedade”(p.5). Ora, o devir das representações vai modelando homens e mulheres, produzindo, assim, diferenças de gênero. Não somente o sujeito do feminismo, que é um construto teórico, como também as mulheres historicamente situadas são concebidos como simultaneamente dentro e fora do gênero, dentro e fora da representação.

É crucial reter esta ambiguidade do gênero, assim como a modalidade e a multiplicidade de seu sujeito. Os sujeitos históricos têm suas relações reguladas pelo gênero, conjunto de representações absolutamente central na sociedade. Ademais, é relevante no pensamento de Lauretis a consideração simultânea da classe social e da raça/etnia, apreendendo a multiplicidade do sujeito sem fragmentá-lo e, por isto, preferindo chamá-lo de contraditória a dividido. Ainda que o gênero se refira, para Lauretis, às categorias masculino e feminino, também normatiza as relações sociais. A força da mudança social está bastante presente em sua concepção, seja através de um sujeito que, sendo modelado pelo gênero, é, ao mesmo tempo, capaz de tomar distância em relação a ele, seja pela capacidade desestabilizadora da desconstrução. Mais do que isto, ela enxerga a dinâmica presente nas franjas dos discursos hegemônicos e nas práticas micropolíticas no sentido da construção originária de gênero, bem como na direção de sua desconstrução/reconstrução.

Evidentemente, o nível da subjetividade é privilegiado, ganhando relevo, desta forma, a auto-representação. Nos interstícios das práticas instituídas, nas margens dos discursos competentes, nas brechas da estrutura de poder/saber nascem cotidianamente novas representações, sobretudo auto-representações, que vão construindo o gênero em outros termos. Desta sorte, o gênero não é concebido como camisa-de-força. Pode-se afirmar que, para esta autora, o gênero apresenta um caráter substantivo, na medida em que designa categorias sociais, e uma dimensão adjetiva, ou seja, sua face normatizadora. É também o caso de Welzer-Lang (1991), quando afirma que “A violência doméstica tem um gênero: o masculino, qualquer que seja o sexo físico do(a) dominante” (p. 278) e que “No imaginário masculino, a mulher não existe como sujeito. Ela é, seja o objeto a ser tomado, a consumir, seja um outro homem” (p.114).

Há, todavia, autores, que prescindem do gênero enquanto designante de substância, encarando-o exclusivamente como uma relação entre sujeitos socialmente construídos em contextos históricos determinados. “Como um fenômeno contextual e mutável, o gênero não denota um ser substantivo, mas um relativo ponto de convergência entre configurações de relações, cultural e historicamente específicas” (Butler, 1990, p. 10). O conceito humanista do gênero enquanto atributo de uma pessoa não serve como ponto de partida para uma concepção relacional, na qual tanto a pessoa quanto o gênero são frutos do contexto histórico que os constrói.

Conceber gênero como uma relação entre sujeitos historicamente situados é fundamental para demarcar o campo de batalha e identificar o adversário. Nestas circunstâncias, o inimigo da mulher não é o homem nem enquanto indivíduo, nem como categoria social, embora seja personificado por ele. O alvo a atacar passa a ser, numa concepção relacional, o padrão dominante de relação de gênero. Diferentemente do que se pensa com frequência, o gênero não regula somente as relações entre homens e mulheres, mas normatiza também relações homem-homem e relações mulher-mulher. Deste modo, a violência cometida por uma mulher contra outra é tão produzida pelo gênero quanto a violência perpetrada por um homem contra uma mulher. A adequada compreensão deste fenômeno responderá pela formulação de estratégias de luta com maior potencial de êxito, enquanto a singularização do inimigo pode fazer perder de vista o nó constituído pelas três contradições sociais básicas: gênero, raça/etnia, classe social (Saffioti et alii, 1992).

Além de se inscrever num universo conceitual relacional, o que raramente é encontrado em outras autoras (Whitbeck, 1983; Saffioti, 1991), Butler aponta caminhos de transformação social de uma forma bastante original. Formula o conceito de inteligibilidade de gênero, ou seja, coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática social e desejo. Em outras palavras, o gênero culturalmente inteligível institui e mantém relações capazes de expressar o complexo sexo/gênero pelo desejo sexual realizado na prática sexual. Obviamente, esta coerência traduz o padrão hegemônico de relações de gênero ou a matriz dominante de sua inteligibilidade cultural. Nada impede, entretanto, que outras matrizes de inteligibilidade concorram para subverter a ordem de gênero. Neste sentido, pode-se pensar em diversos pontos de observação (Saffioti, 1991) - os lugares de onde falam as feministas, por exemplo - a partir dos quais são introduzidos padrões alternativos de relações de gênero. Além disso, há que se reservar um lugar especial para a marginália, capaz das mais originais combinações para destruir a coerência e a continuidade do gênero, ou seja, sua lógica hegemônica. Em um caso como no outro, pode-se dar uma significativa ampliação dos limites da inteligibilidade cultural do gênero, o que permite a coexistência de várias mites da inteligibilidade cultural do gênero, o que permite a coexistência de várias matrizes de significações inteligíveis. No limite, ter-se-ia uma pluralidade de matrizes, propiciando, certamente, a aproximação da utopia da androginia (Rubin, 1975).

O quadro atual, contudo, situa-se muito longinquamente da androginia, na medida em que ser mulher não apenas é diferente de ser homem, como também implica inferioridade, desvalorização, opressão. Embora não haja espaço para se discutir a polissemia do conceito de opressão, entende-se necessário indicar, pelo menos, que o oprimido tem o seu campo de opções reduzido, sendo objeto de um processo de dominação-exploração. É neste contexto de relações de gênero entre desiguais que se legitimam a agressão física e emocional da mulher, assim como o abuso sexual e o estupro. A pesquisa de Gilligan (1982) revelou que as mulheres imputam à desigualdade a responsabilidade pela violência, enquanto os homens consideram a questão em termos de uma justiça falha, cega às diferenças entre as pessoas. Isto é, o raciocínio dos homens não acusa a percepção do processo social de conversão das diferenças entre homens e mulheres em desigualdades. Em outros termos, a ideologia de gênero procede através da naturalização das diferenças que, conforme o já exposto, foram socialmente construídas (Saffioti, 1987; 1992), podendo, por conseguinte, ser transformadas. No contexto do pensamento ideológico, a apresentação das diferenças como naturais constitui uma necessidade. Sem a satisfação deste requisito, o uso da diferença, para fins discriminatórios, não alcança eficácia política. Assim, afirmar que as diferenças encerram o perigo da naturalização é praticamente um truísmo.

Do exposto pode-se concluir ser de suma importância admitir não apenas um sujeito múltiplo, partícipe das relações de gênero, de raça/etnia e de classe social em diferentes posições - de dominância e de sujeição -, como também da convivência competitiva de várias matrizes de inteligibilidade cultural de gênero. Observe-se, portanto, a riqueza proporcionada pela diferenciação interna de uma sociedade, o que propicia relações sociais substantiva e adjetivamente variadas. Neste sentido, as diversidades resultantes do processo de diferenciação social são sempre positivas, independentemente de seus conteúdos específicos. E a humanidade tem revelado uma pronunciada tendência à diferenciação. Daí, ser problemática a utopia de androginia, de Rubin (1975). É bem verdade que a androginia, ao nível do gênero, poderia ser atingida pelo livre trânsito de mulheres e homens por uma imensa gama de papéis sociais, sem as referências do masculino e do feminino. Sem a especialização de papéis, contudo, a indiferenciação permearia a diferenciação. Em vez de mulheres e homens serem diferentes na igualdade, seriam iguais na diferença, o que pode ter significados muito diversos.

Uma utopia mais modesta e, por esta razão, talvez mais exeqüível consiste em uma sociedade com gênero, portanto, com diferenciação entre homens e mulheres, mas sem hierarquias neste eixo de estruturação social. Este objetivo de relações igualitárias de gênero, todavia, não apresenta viabilidade se não se desfizer o nó formado pelas três contradições sociais básicas. Isto significa lutar por uma sociedade sem contradições entre categorias e gênero e entre categoria étnico-raciais, assim como entre classes, o que é distinto de perseguir a meta de uma ordem societária sem gênero, sem relações interétnicas, sem classes. A superação das atuais contradições é representada por um outro estágio de desenvolvimento que, eventualmente, desse lugar a outras contradições, mas que também pudesse permitir uma convivência mais humana entre os diferentes. Se é fácil pensar as desigualdades e as diferenças qualitativas e, por conseguinte, pensar a reconversão das primeiras nas segundas, o mesmo não ocorre com as desigualdades e diferenças quantitativamente definidas. Com efeito, como se transforma uma desigualdade econômica em mera diferença? Aquele que possui riqueza equivalentes a X não é simultaneamente diferente e desigual em relação àquele que possui o correspondente a 2 X? Não se trata, assim, de apenas (o que já seria tarefa de enorme alento) eliminar a contradição capital-trabalho? Acreditando-se que a quantidade, a partir de certo ponto, se transmuta em qualidade (Marx, 1959), tende-se a imaginar uma sociedade equânime (ou quase) com grandes variações de atividades, mas com pequenas diferenças no que tange ao padrão de vida, garantindo-se serviços de educação, saúde, lazer etc. de boa qualidade. Ter-se-ia, desta forma, um único padrão de vida, embora ele pudesse ser concretizado de muitas maneiras distintas. As utopias de igualdade chegaram a um gigantesco fracasso porque, dentre outras razões, não admitiam diferenças. Há pois, que reformular estas ideias, conformando-as às mais variadas diferenciações sociais. O mundo caminha neste sentido. Haja vista o número de grupos étnicos defendendo, inclusive com armas, suas culturas, embora, às vezes, as especificidades destas culturas tenham sido mantidas em silêncio por um Estado homogeneizador. Por outro lado, poder-se-ia dizer que o mundo está crescentemente globalizado. As duas afirmações são igualmente verdadeiras. Enquanto alguns processos (de comunicação, por exemplo) e alguns setores da sociedade (a economia é um deles) se internacionalizam, outros tornam-se ainda mais restritos, particulares e até singulares. Basta lembrar, neste sentido, as conseqüências do fundamentalismo islâmico para as mulheres. Neste contexto, há que se cavar espaço saudável tanto para a homogeneização, como para a diferenciação. Se se puser ênfase exclusivamente sobre a primeira, a segunda impor-se-á pela força, como está ocorrendo em várias regiões do planeta, já que o ser humano se enriquece através da diferença e não por intermédio da mesmice.

A diferença, contudo, é o locus privilegiado da constituição das relações de poder. Scott (1990, p.16) chega mesmo a afirmar que “o gênero é o primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado”. Para a postura aqui assumida, a raça/etnia e a classe social são também filtros de percepção e apercepção, servindo, por via de consequência, de parâmetros para a organização das relações de poder. Afirmar que o gênero vem em primeiro lugar significa atribuir-lhe primazia sobre os demais eixos de estruturação social, o que contraria as ideias nucleares aqui expressas. Colocam-se os três eixos na mesma posição, acreditando-se que não cabe ao cientista ordená-los em termos de sua capacidade de estabelecer ópticas de percepção e análise da realidade. A conjuntura do momento determinará qual dos três eixos deterá a preeminência nos sujeitos em interação. Há que se pôr em relevo a reciprocidade entre, de uma parte, o gênero, a raça/etnia e a classe, e, de outra, a sociedade como um todo. Para simplificar, toma-se apenas o gênero, ficando- se com a mesma autora: “a política constrói o gênero e o gênero constrói a política” (Scott, p16).

Como as mulheres foram, nas sociedades simples, objeto de troca por parte dos homens (Lévi-Strauss, 1976) e o são, embora disfarçadamente, nas sociedades complexas, a tarefa de estabelecer alianças ficou a cargo dos homens. As mulheres sempre foram os veículos de negociações. Ora, a política - onde o poder é, por excelência, exercido - consiste em negociar, em fazer e desfazer alianças. Esta lide treina os homens não somente na negociação, mas na percepção da oportunidade de estabelecer tal ou qual aliança com tal ou qual facção. As mulheres não recebem este treino. Desta forma, o gênero é sim um eixo a partir do qual o poder é articulado. Esta articulação processa-se em detrimento das mulheres. Poucas são as que chegam aos parlamentos do mundo inteiro. Em lá chegando, mostram-se canhestras na negociação, enfim, como não poderia deixar de ser, neófitas no exercício do poder. O importante, porém, é frisar que tudo depende de experiência, uma vez que as especializações, ou seja, as diferenças, não se inscrevem nos planos natural ou divino e sim no social. Em sendo este registro, convém chamar a atenção do leitor para o fato de que não existem duas culturas: uma feminina e outra masculina, como concluem alguns a partir da leitura do livro de Gillian. Talvez o próprio livro ofereça esta leitura. A posição aqui assumida esposa a idéia de que há somente uma cultura falologocêntrica (Féral, 1990), no seio do qual há diferenciações através das quais as mulheres se submetem ao poder (phallus) e à razão (logos) dos homens. Não o fazem, contudo, passivamente. Não obstante sejam tratadas como não-sujeitos, atuam permanentemente como sujeitos, seja ratificando o ordenamento social machista, seja solapando-o. As mulheres também fazem, portanto, a história. Parafraseando Marx, não a fazem, contudo, em condições por elas idealizadas, mas em circunstâncias dadas e herdadas do passado. Mais do que isto, as três contradições básicas da sociedade, ao se fundirem em um nó, alimentam-se mutuamente, agudizando os conflitos e dificultando as alianças.

Dada a multiplicidade do sujeito social constituído em gênero, raça/etnia e classe - situa-se fora de cogitação a totalidade de uma categoria ou classe. Não resta senão o caminho das alianças entre desiguais, fenômeno contingente e efêmero, mas sempre renovável, para se tentar construir uma sociedade menos iníqua e mais propiciadora do desenvolvimento pleno das potencialidades de cada um: homem ou mulher, branco ou negro, mais ou menos abastado.


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Inclusão: